Tring! Tring! Tring! Triiiinnnng! O telefone tocava e eu fazia de conta que não ouvia. Tring! Tring! Tring! Mas quem toca assim teimosamente, com tão estranha insistência? Fico à espera que desista mas, do outro lado, está alguém que conhece a forma de combater esta minha profunda alergia matinal. Levanto-me num embrulho de lençóis que me impedem os movimentos, escorro pelo corredor numa irritação de areias movediças, estico a mão para levantar o auscultador. Do lado de lá um voz profunda, um quase soprano: «Afonso? Daqui fala o Afonso!». Uma espécie de código. Era o Vítor. Era o Charuto. Ainda hoje a sua voz se mantém inimitável. Vinha-lhe das cordas vocais, dos pulmões atafulhados de tabaco, mas sobretudo da alma. Da nobreza acústica da sua alma. A frase era u chiste: Vítor Manuel Afonso Damas de Oliveira, talvez o guarda-redes mais bonito que já vi, não esquecendo o Dassaev. Morreu no dia 13 de setembro de 2003 e ninguém nunca virá para tomar o seu lugar porque ele era único como poucos. Já se passaram vinte anos e nem dei porque eles passassem. Eram os tempos em que A Bola era a A Bola, cinco letras mágicas como dizia o chefe Vítor Santos. Era o tempo do Neres, que não tinha três dedos e era contínuo e também empregado da Papelaria Fernandes; do Vítor Hugo, o Boi-Cavalo, camarada de noites sem fim no Pedro V; era o tempo Não dispensaria do David Ramalho que gritava para o Homero Serpa, no pino do calor da Volta a Portugal: «Ó sôr Homério, vai um sirivete?». Ou do Cunha que usava o cabelo engraxado e do Joãozinho e da sua sovela sempre pronto a explodir de nervos. E os cigarros fininhos e coloridos da Doutora Margarida Ribeiro dos Reis que nos prolongava almoços no Farta Brutos do irrepetível Oliveira e do Ramiro. De cada vez que vou acrescentando personagens a esta crónica recordo-me daquela curiosíssima declaração do Reynaldo Ferreira, o formidável Repórter X: «Já uma vez escrevi um folhetim quilométrico em três dias – trezentos quartos de papel. Também confesso que cheguei ao final e já não me lembrava do que sucedera aos heróis da obra. E o público gostou. Eu nunca o li: e, por isso, não sei se era bom ou mau. Admiro-me apenas por não ter assassinado duas vezes os mesmos personagens e por não os fazer avós antes de terem filhos».
Claro que, aqui, não decido sobre a vida ou sobre a morte de ninguém. Limito-me a trazer-vos episódios de gente que foi ficando, por uma razão ou por outra, na memória das pessoas, mesmo que muitas vezes tenha sido a morte a torná-los perpétuos. Muito bem, era aqui que queria chegar: na pré-história da Humanidade, ou seja, antes dos telemóveis, volta e meia, aí pelo meio-dia, recebia em casa uma chamada que autenticamente me chamava: «Afonso, hoje temos almoço?». Do outro lado, a voz em tom baixo de Chaliapine do Vítor Damas, que também era Afonso e era o Charuto porque jogava sempre de preto, elegante como um Alain Delon. E íamos ali ao Areeiro, ao Manel Caçador, às cabeças de pescada ou de garoupa até ao momento de eu me levantar da mesa e o deixar na companhia fatal de uma amiga traiçoeira em forma de garrafa à qual se agarrava como se teimasse em querer ver sempre o fundo de ambos.
Duas, três, meia dúzia de vezes, o Vítor trazia consigo Carlos Gomes, aquele a quem os espanhóis chamavam ‘El Más Grande Portero del Mundo’, e então a conversa ia para além da memória e desenvolvia-se por entre fantasmas e lendas num lugar que não existe mais porque ambos deixaram já de viver na realidade simples das palavras.
Carlos Gomes tinha uma relação complicada com a modéstia, mas talvez fosse isso que o fazia especial. «Os melhores guarda-redes de sempre do futebol português fomos nós dois», dizia. Eu provocava o Damas: «És capaz de dizer o mesmo?». E o Vítor sorria: «Eu? Nunca! Essa é a maior diferença entre o Carlos e eu…».
Uma figura, uma figura, esse Carlos Gomes! Quando jogava, antes de entrar em campo, em Alvalade, vinha à porta buscar os miúdos que ali se juntavam à sua espera e levava-os para dentro, sem pagarem nada. Tinha sempre um público especial entre a rapaziada de Lisboa. «Uma vez o dr. Góis Mota, que era dirigente do clube, apanhou-me a sair do balneário e ficou furioso: ‘Onde é que vais?’ E eu, encolhendo os ombros: ‘Vou só num instante arrumar a motorizada…’ Começou aos gritos: ‘Não vais nada, vais é buscar essa cambada de garotos. Proíbo-te! Nunca mais!’ Então voltei para trás e comecei a despir o equipamento. E ele: ‘Mas, que estás a fazer? És louco?’ E eu: ‘Não jogo. Se eles não entrarem não jogo. Jogue você!’ A partir daí deixou de me chatear».
Puseram-lhe a alcunha de O Bocas: não perdia a oportunidade discutir com os dirigentes, era um boémio, apreciador de vinho, adorava surgir por toda a parte na companhia de mulheres vistosas, descontavam-lhe metade do ordenado em multas mas ele estava-se nas tintas, dizia que recebia uma mesada da avozinha. E era um brincalhão nas balizas, procurava os truques de circo, ansiava pelos aplausos. Segurava a bola com uma mão, passava-a por cima da cabeça do avançado que estivesse na sua frente, apanhava-a do outro lado e ficava à espera da reação das bancadas. Ou atirava-se em direção de uma bola chutada com perigo, mergulhava por debaixo dela e repelia-a com os calcanhares. Em Espanha, no Granada, farto de não receber o que lhe deviam, recusou-se a jogar: «No hay dinero, no hay portero!». Eu e o Damas ouvíamo-lo. Dois Afonsos atentos como garotos. Apenas eu resto vivo…