Estátuas polémicas. Quando a arte separa mais do que une

Sabemos que o conceito de arte é algo bastante subjetivo. Se para uma pessoa uma obra pode ser genial, para outra pode não passar de lixo. Ao longo da história, muitas têm sido as esculturas que geram controvérsia no país. A Luz dá-lhe a conhecer cinco delas.

Escrevia Fernando Pessoa que «a arte é a autoexpressão lutando para ser absoluta». Para este, que foi considerado um dos mais importantes escritores portugueses do modernismo e poetas de língua portuguesa, «a ciência descreve as coisas como são»; a arte, «como são sentidas, como se sente que são». Já Leonardo da Vinci defendia que a lei suprema da arte «é a representação do belo». Enquanto para Leon Tolstói, a arte era «um dos meios que une os homens». No entanto, o belo é subjetivo e, como vemos muitas vezes, uma peça de arte pode afastar mais do que unir, levando a uma divisão de opiniões que nos faz interrogar até que ponto uma obra, neste caso uma estátua, deve ou não ser retirada do espaço público depois de uma petição que o exige.

Um exemplar mais ou menos pornográfico?

A mais recente polémica estalou no Porto há uns dias, com uma estátua de Camilo Castelo Branco no centro da controvérsia. Há mais de uma década que a estátua ‘Amores de Camilo’ está exposta na invicta, junto ao Centro Português de Fotografia. Nela, Camilo surge vestido, abraçado a uma mulher nua – uma figura que recorrentemente tem sido confundida com Ana Plácido (mulher com quem viveu parte da vida, após ambos estarem presos). Feita por Francisco Simões, pretende homenagear as várias figuras femininas que pautam a obra do histórico autor português. No entanto, apesar de ser para muitos uma obra de arte, para outros – uma petição assinada por mais de três dezenas de pessoas e entregue ao presidente da autarquia, Rui Moreira pede para esta ser retirada -, a estátua é uma «vergonha» no Largo Amor de Perdição. Os reacionários acusam a figura feminina à qual Camilo está abraçado de «exemplar mais ou menos pornográfico» e que esta é «uma menorização» da figura de Ana Plácido. Apesar de ter inicialmente aceitado a exigência, parece que o autarca – que garantiu agir por «decisão própria» – recuou. A escultura, que classificou como «feia e de mau gosto» vai continuar onde está, por se tratar de uma doação. Entretanto, os portuenses uniram-se e há já um grupo que se move em sentido contrário. Em poucas horas, surgiu na Internet uma petição «pela não remoção da estátua de Camilo» e que já soma mais de seis mil signatários. «O Homem estar vestido e a Mulher estar nua, não tem que parecer, só agora, ao fim de 11 anos, que se trata de uma humilhação da Mulher desnuda em favor de um Homem vestido? Não pareceu na altura, não parece hoje», lê-se no texto que acompanha a petição. Segundo Sofia Ferreira, professora de artes visuais, neste caso em particular temos uma escultura a retratar um ‘Amor de Perdição’. «E o amor é uma coisa muito séria, intensa e transparente. Ainda mais se for um Amor de Perdição…», começa por defender a especialista. Para si, esta escultura pode eventualmente simbolizar um amor «completamente rendido» e nu, «despido de preconceitos, perante um indivíduo que está vestido, podendo-se até interpretar que pelo menos não se encontra totalmente transparente e inócuo». Ao mesmo tempo, continua, pode também representar «os diferentes timings que existem entre a ‘perdição’ do elemento feminino e o da perdição do masculino… Quiçá! E é esta uma das características da obra de arte: ser passível de poder ter várias interpretações… entre outras características, claro!», lembra a professora. No que a esta estátua diz respeito e, em particular, à controvérsia do elemento feminino estar nu, e o elemento masculino estar vestido, «poderá realmente possuir várias interpretações, sendo sempre de ter particular atenção ao facto de a mulher estar abraçada, de livre vontade, em bicos de pés, numa posição perfeitamente natural de quem beija um amor seu», explica. O que incomoda Sofia Ferreira nesta polémica é que «se enalteça uma situação relacionada com a Arte, que seria perfeitamente natural na época da Inquisição, onde não existe qualquer informação disponível, mas sim uma forte censura ‘censurável’ da época». «E o que me incomoda ainda mais é existirem cada vez mais ‘Censuras Mal Vestidas’ que perante os nus naturais e fugazes da vida, cada vez mais avançam num manto silencioso e egocêntrico para uma ‘Censura muito bem vestidinha, mas provavelmente mal lavada’», lamenta.

As obras controversas de João Cutileiro

Mas como esta, são muitas as obras espalhadas pelo país que, ao longo do tempo, têm gerado polémica. Por exemplo, o escultor João Cutileiro, que recebeu em 2018 a medalha de Mérito Cultural, assinou duas das obras mais polémicas das últimas décadas em Portugal: a estátua de ‘D. Sebastião’, em Lagos, e o monumento ao 25 de Abril, no Parque Eduardo VII, na capital portuguesa. A primeira fixada na praça Gil Eanes, na cidade de Lagos, Algarve, onde viveu durante 15 anos, ainda hoje não é consensual. A estátua ‘D. Sebastião’ foi inaugurada em 1973, três anos após o seu regresso de Inglaterra e após a morte de Oliveira Salazar. Foi a própria Câmara Municipal de Lagos que formalmente encomendou a obra ao artista. Recorde-se que João Cutileiro vinha de uma família antifascista. Por isso, a polémica em torno da obra arrastou-se pelo durante o tempo de ditadura, atravessando a revolução e ficando até hoje, na democracia. As opiniões dividem-se precisamente pela forma como este decidiu representar D. Sebastião, para muitos, numa versão escultórica de um «anti-herói», com formas «efeminadas» e uma «exagerada cabeleira» em mármore travertino. 24 anos depois, desta vez por encomenda da Câmara Municipal de Lisboa, criou aquela que é considerada a «mais controversa das suas obras públicas», mesmo no coração da democracia – trata-se de um monumento comemorativo da revolução de Abril, inaugurado no feriado de 25 de Abril de 1997, no Parque Eduardo VII. Devido à sua forma, a obra – feita a partir de um pedestal destinado a uma estátua do Santo Contestável -, rapidamente foi batizada de “pirilau” da cidade. Além disso, os jatos de água do fontanário não ajudaram. Ao Nascer do SOL, em 2017, o artista falou sobre o celeuma que foi criado à volta das suas obras. Sobre a primeira – ‘D.Sebastião’ -, João Cutileiro admitiu que esse barulho foi «completamente inesperado». «Disseram-me que o Américo Thomaz se recusou a ir inaugurar porque lhe tinham dito que era uma ofensa ao D. Sebastião e portanto uma ofensa a um chefe de Estado, e ele, como chefe de Estado, não devia ir. É preciso ser-se muito Leopoldo de Almeida e salazarento para achar que aquilo era uma ofensa ao chefe de Estado. Seringaram-lhe os ouvidos de tal maneira, que no dia em que destaparam o D. Sebastião, deram a volta à escultura e ele diz: ‘Afinal não é tão mau como isso tudo!’», lembrava. Interrogado, na altura, se quando fez o monumento do Parque Eduardo VII tinha consciência de que ia provocar, o artista garantiu que não. «Não tinha consciência nenhuma de que pudesse ser tão agressivo para as mentalidades. Depois concluí que a esquerda não achava o 25 de Abril tão modesto, era muito mais heroico; e a direita também não gostava do 25 de Abril; por ser o [monumento ao] 25 de Abril não foi tão bem recebido como isso», contou. Além disso, Cutileiro frisou que a obra não era um “pirilau”. «O que está nos Restauradores também é um pirilau? E no Rossio, o D. Pedro IV, lá em cima também é um pirilau? São todos pirilaus (risos). E o Cristo-Rei, não é apirilauzado? (risos) A escultura, normalmente ou é assim (coloca a mão na vertical) ou é assim (deitada). Assim (deitada) a peça de escultura da segunda metade do século XX mais réussi (bem conseguida) é aquele memorial da Guerra do Vietname em Washington. Só o granito preto com os nomes. E isso é fabuloso. Mas não há muito por onde escolher: ou é horizontal ou é vertical. Horizontal é a confissão da derrota. A vitória é para cima», explicava. O escultor afirmou ainda que se calhar a obra possui alguma conotação viril. «Os menires da Idade da Pedra são considerados fálicos. Mas não são para ser fálicos. É para marcar», afirmou.

Uma escultura feita sem noção?

Além destas, uma outra obra que tem gerado discussão é a ‘A Foda dos Nus’, do artista Custódio Almeida, conhecido pelas suas obras impactantes focadas no universo feminino e na nudez. Por isso, a estátua erótica de 9 metros construída em pedra, que pesa cerca de 60 toneladas e demorou dois anos a ser construída, fixada em São Pedro do Sul, no Espaço Arte Dança, em maio de 2022, pretende precisamente romper preconceitos em relação à sexualidade. Tal como referiu numa entrevista à RTP, a polémica escultura representa «dois corpos nus que contam histórias de intimidade». «Esta obra é um pouco a minha pessoa que se transforma, é a minha metamorfose onde retrato a minha personagem nu. É um pouco o mundo, o quebrar pedra para que as pessoas sejam mais libertas», explicou o artista, na altura. Depois da inauguração da escultura, começou a partilha de opiniões nas redes sociais: se uns defendiam a originalidade da obra, criticando «as mentes atrasadas e ultrapassadas que não sabem apreciar a escultura»; outros brincaram dizendo que esta se parece com «aqueles bonecos da escola que se faziam com plasticina». Mas houve também quem criticasse João Cutileiro, afirmando que «nenhum artista tem o direito de expor seja o que for sem o consentimento das populações para onde as ditas obras se destinam» e que esta é «uma estátua sem noção».

Uma homenagem catastrófica?

Mas se há casos onde são as populações da região onde foi fixada uma obra a queixarem-se do projeto, há também situações onde as próprias famílias não ficam satisfeitas quando um ente falecido é homenageado com uma escultura. Em 2020, naquele que seria o 91º aniversário do artista Zeca Afonso, o mesmo foi homenageado com a inauguração de uma estátua em Belmonte, terra onde viveu durante algum tempo da sua juventude. Segundo o presidente da Câmara de Belmonte, António Dias Rocha, responsável pela iniciativa, este seria «um tributo ao seu ideal humanista, à sua excelência musical, à sua grandeza social, à sua fraternidade, à sua generosidade, à sua simbologia política, à sua dimensão universal, à democracia». No entanto, ao que parece, segundo alguns críticos aquela que deveria ser uma homenagem, transformou-se numa «representação canhestra e atarracada, sem alma, nem rasgo». «O tamanho natural, os óculos, o cravo na mão erguida são os únicos atributos que se aproximarão da fisicalidade de Zeca Afonso, pretensamente retratado no concerto do Coliseu dos Recreios, em Lisboa, a 28 de janeiro de 1983», lê-se, por exemplo, no texto publicado no blogue HIPOTHESES A.MUSE.ARTE, por Maria Isabel Roque. «Falta criatividade, falta sensibilidade estética, falta noção da proporcionalidade e da harmonia do corpo, falta técnica e execução. Há, aqui, algo que já parece familiar, traços comuns à escultura de Cristiano Ronaldo, da autoria de Emanuel Santos, que se encontrava no Aeroporto Internacional da Madeira, ou à do Padre António Vieira1, de Marco Fidalgo, no Largo Trindade Coelho, em Lisboa. A todas é comum a mesma carência de estética e de técnica», continua o texto. Além desta, o próprio irmão do cantor e compositor português criticou o trabalho do escultor guardense Pedro Figueiredo. «Mas o que estranho é que tenham posto no largo uma estátua de corpo inteiro do meu irmão», afirmava ao jornal i em março de 2021, João Afonso. «Com esta pecha de quererem reproduzir fisicamente a pessoa, em vez de pôr uma coisa simbólica, está lá um tipo que não é de forma nenhuma o meu irmão na tromba – desculpe a expressão (risos). É que nem sequer posso considerar que seja parecido. A intenção foi boa, mas realmente não é o Zé Afonso que está ali, é uma outra pessoa, com outra pele. O melhor é ir para composições abstratas, simbólicas. Mas as pessoas fazem questão em reproduzir. E traduzir uma figura em mármore ou em bronze não é para todos», defendeu.