Reforma na Saúde sem pernas para andar 

A reforma do SNS pode estar em causa. Caindo as competências delegadas em Fernando Araújo, com entidades extintas e novas criadas, o imbróglio jurídico está instalado.

Com a demissão do Governo a grande reforma na Saúde pode ficar para a história como um modelo que morreu na praia. Ou, na melhor das hipóteses, fica dependente da vontade e das opções do futuro Executivo.

A generalização das Unidades Locais de Saúde (ULS), assim como a criação dos vários Centros de Responsabilidade Integrados (CRI) e a passagem já em janeiro de 2024 de 250 USF para USF modelo B, são projetos que ficam comprometidos com ou sem a aprovação do Orçamento do Estado (OE). Sem a possibilidade de fazer as nomeações necessárias para as futuras ULS e com as ARS extintas por decreto, o imbróglio administrativo paralisa a ação de Fernando Araújo, presidente da Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS) e compromete seriamente toda a reforma.

As negociações com o Executivo ficam suspensas até que exista um Governo com capacidade de decisão. Ou seja, o próximo que sair das eleições.

Em relação à reforma do sistema, a aprovação do OE permitiria o cabimento das verbas, mas não resolve o problema de definir quem as pode executar. Com a demissão do Governo, as delegações de competências na DE-SNS caducam e Fernando Araújo deixa de ter poderes para nomear as novas direções das ULS. Na resolução do Conselho de Ministros de 16 de agosto delegou neste órgão «a competência para a designação dos membros dos órgãos de gestão dos hospitais, centros hospitalares, institutos portugueses de oncologia e ULS. À DE-SNS compete a direção operacional do SNS, neste incluídos os hospitais, centros hospitalares, institutos portugueses de oncologia e ULS, integrados no setor empresarial do Estado ou no setor público administrativo». E vai mais longe. Lê-se na resolução que «há vantagem em estabelecer uma ligação direta entre a responsabilidade de orientar de forma global o seu funcionamento e o poder de nomear os seus conselhos de administração. Ao mesmo tempo, face às exigências legais que precedem a referida nomeação, designadamente a submissão dos designados a parecer prévio da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública, não se vislumbra vantagem adicional na intervenção direta, nesse processo, dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da saúde».

Ou seja, tudo o que Fernando Araújo tem de fazer para concretizar a sua reforma, deixa de ter poderes para o fazer. Com a demissão do Governo, «todas estas competências delegadas deixam de ter efeito, caiem. Só se podem praticar atos de gestão corrente até que exista outro titular que delegue novamente as competências no órgão, quer seja o Conselho de Ministros quer pelo titular da pasta», afirmou ao Nascer do SOL uma fonte constitucionalista. «Pode colocar-se a hipótese de as nomeações poderem ser feitas pelo ministro do Governo de gestão, mas neste caso, e mais uma vez, este só pode praticar atos de gestão corrente».

A exceção são os atos extraordinários. E, a menos que se considere que as nomeações para as novas ULS, assim como os atos de gestão que têm de ser praticados pelo DE-SNS, configurem a natureza de atos extraordinário, Fernando Araújo pode continuar a sua reforma. Mas para isso é preciso que se interprete a sua prática de importância decisiva e inadiável, apesar da inexistência de uma tutela política que o oriente.

Com as ARS extintas restam as ULS, criadas há poucos dias e «congeladas» até 1 de janeiro, como determina o decreto-lei. No entanto, é alterada a sua configuração, uma vez que uma só entidade passa a gerir os hospitais e os cuidados de saúde primários, assim como o todo o enquadramento financeiro. Está previsto que nessa nova configuração estejam sentados no conselho de administração um representante dos municípios e um diretor clínico dos cuidados de saúde primários. Mais dois membros do que os atuais. Caso não haja a possibilidade de fazer as novas nomeações, as novas ULS serão no mínimo atípicas.

Apesar de todo este imbróglio jurídico e administrativo, Fernando Araújo não está preocupado. E segundo fontes contactadas pelo Nascer do SOL, é seu entendimento que a DE-SNS é «um órgão técnico e por isso mantém as competências».

Além das ULS, a criação dos novos CRI pode também ser um projeto que não sairá do papel. O anúncio de que até ao final do ano irão ser implementados no terreno os CRI dedicados às urgências, pelo menos nos cinco maiores hospitais do país: no Lisboa Central (Hospital São José), no Santa Maria e em Coimbra, Santo António e no São João (Porto), além de muitos outros no próximo ano, poderá não passar disso: um anúncio. Tudo depende do novo Governo e da vontade política em avançar com a reestruturação agora congelada.

ines.pereira@nascerdosol.pt