Mulheres no altar

Cada vez há mais mulheres em lugares de destaque na Igreja Católica e este é um dos motes do Pontificado do Papa Francisco que apela à “desmasculinização” da Igreja. Maior presença das mulheres no altar é um dos passos e o acesso ao diaconato está em destaque no sínodo dos Bispos.

O Papa Francisco insiste no tema: é preciso rever o papel das mulheres na Igreja Católica. “Um dos grandes pecados que cometemos é ‘masculinizar’ a Igreja”, declarou o Santo Padre no final do mês passado aos membros  da Comissão Teológica Internacional, um órgão criado por Paulo VI em 1969, com a missão de ajudar a Congregação para a Doutrina da Fé no estudo das questões doutrinais. As mulheres “têm uma capacidade de reflexão teológica diferente da que nós, homens, temos”, disse o Papa. “Se não entendermos o que é uma mulher, o que é a teologia de uma mulher, nunca entenderemos o que é a Igreja”. E apelou: “Desmasculinizem a Igreja”. Como? A resolução não passa pela “via ministerial, isso é outra coisa. É solucionado pela via mística, pela via real”, declarou o Santo Padre.

O tema é incontornável quando se fala de Igreja. É quase unânime que as mudanças estão em curso, que a sociedade as reclama e que a Igreja católica precisa de evoluir para que as mulheres se sintam parte dela.  Mas as sensibilidades existem em vários setores e dimensões. Desde as comunidades mais pequenas à cúria, das vertentes mais conservadoras às que reclamam um processo mais acelerado. “Há um percurso que tem sido feito e nos últimos anos têm sido dados passos que nunca aconteceram na História ao nível da cúria, das congregações e das paróquias na abertura da Igreja à realidade”, afirmou ao jornal i Sónia Monteiro, professora e doutoranda em Teologia na Universidade de Fordham em Nova Iorque.  No entanto, acrescenta: “Há um peso de séculos de uma cultura patriarcal – em que nem tudo é mau – na forma como lemos Igreja, uma interpretação a partir do entendimento masculino”, explica. “Até o discurso é patriarcal: Rei, Senhor, Pai, fazem parte integrante de uma cultura secular, e isto deixa uma marca na forma como vemos a mulher na Igreja”.  

A questão que se discute é, por tudo isto, qual o caminho para abrir a própria Igreja ao carisma feminino? Sendo este um dos motes do pontificado de Francisco. O caminho tem sido percorrido em passo acelerado, apesar de polémicas, interpretações diversas ou expectativas goradas. Entre as visões mais tradicionalistas da Igreja americana e outras mais apressadas protagonizadas pela Igreja alemã o debate é acesso. A discussão sobre a ordenação das mulheres, a abertura ao diaconato, mais mulheres nomeadas nas estruturas de topo ou intermédias da Igreja, maior relevância na vida diária e na gestão são os pontos chave dos estudos, análises e encontros. E é um dos temas nucleares debatidos na primeira sessão do Sínodo para a Sinodalidade que aconteceu durante o mês de outubro no Vaticano que terá a última sessão no próximo ano. 

O Arcebispo do Luxemburgo, o cardeal Jean-Claude Hollerich, relator-geral do Sínodo, lançou o mote: “A maioria de nós são homens. Mas homens e mulheres recebem o mesmo batismo e o mesmo Espírito. O batismo das mulheres não é inferior ao batismo dos homens”. Ainda assim, este é o primeiro sínodo de bispos em que há mulheres com direito a voto, 54 em 363 participantes. Para Sónia Monteiro, este modelo sinodal vai “criar condutas para as mudanças serem possíveis, mas não é em si mesmo revolucionário”.

O relatório síntese desta assembleia dedica várias referências às mulheres na Igreja, nomeadamente o seu acesso ao diaconato que foi a questão menos consensual. O documento aponta a necessidade de “garantir que as mulheres participem nos processos de tomada de decisão e assumam papéis de responsabilidade”. E, tal como o Papa Francisco tem vindo a afirmar, foi referido pelos participantes que “o clericalismo, o machismo e o uso inadequado da autoridade continuam a marcar a face da Igreja e a prejudicar a comunhão”. Concluindo-se, então, que é preciso fazer uma “profunda conversão espiritual e mudanças estruturais”, assim como “um diálogo entre homens e mulheres sem subordinação, exclusão ou competição”.

Rita Valadas, presidente da Cáritas, uma instituição pertencente à Igreja, não considera que por ser mulher seja difícil assumir um espaço de responsabilidade na Igreja. “É necessário muita coragem, despojo e fé, mas é indiferente ser mulher”, afirmou ao jornal i. “Olha-se muitas vezes para os lugares na Igreja como se fossem uma profissão. Mas como Igreja missionária, com tudo o que a Igreja faz no mundo, não creio que haja dificuldades para as mulheres”. No entanto, comunga do desconforto do Papa Francisco com a “masculização” da Igreja: “Aquilo que está vedado às mulheres é um caminho onde as mulheres poderiam fazer a diferença. Abrir a Igreja ao mundo é permitir que o género não faça a diferença, não seja condição, uma vez que os homens são tão habilitados quanto as mulheres para todas as funções”. Mas, no seu entender, esta abertura deve ser natural e não automática, deve ser feita com “olhar atento, sem preconceito, através de uma escuta ativa e até discussão. É necessário um espaço de liberdade e partilha para se poder arriscar e até errar”. Conta ainda que o convite para dirigir a Cáritas a surpreendeu, uma vez que sempre achou que “esta função não fosse entregue a uma mulher”.    

Para Sónia Monteiro, a questão fundamental é entender que o lugar das mulheres não está divorciado dos modelos de organização da Igreja: “É preciso que as estruturas patriarcais estejam abertas à mudança para que este contributo tenha efeito e as mulheres não sejam apenas parte integrante da estrutura patriarcal”. No seu entender, são necessárias estruturas novas e é o contributo feminino que ajudará a construi-las da mesma forma que essas estruturas ajudam a desenvolver um modelo mais feminino. Ou seja, é uma mudança que terá de acontecer de forma recíproca. “Não é pondo um cabeção nas mulheres que se consegue ter um maior contributo feminino, mas é com o contributo feminino que consegue a mudança estrutural”.  

Um dos grandes obstáculos a esta mudança é a formação, ou a falta dela. É preciso conhecer a história da Igreja para perceber que não há práticas imutáveis, defende. “A fidelidade à tradição não é repetir o que sempre se fez, mas sim como fazer à luz da realidade atual”, explica a professora de Teologia. E assegura que a formação “ajuda a desmistificar muitos preconceitos em relação às mulheres”. Nas suas aulas, costuma desafiar os alunos a dizerem em poucos minutos nomes de figuras masculinas presentes nas Escrituras e o mesmo de figuras femininas. O resultado é invariavelmente desequilibrado com grande prejuízo para o lado feminino. “Conhecer e reconhecer o papel das mulheres na Escrituras é fundamental para se poder valorizar a dimensão feminina”, afirma. “É a Humanidade que reflete a imagem de Deus e está teologicamente errado reduzir a imagem de Deus ao homem ou à mulher. Até porque a nossa linguagem e não é capaz de conter a realidade Divina: Deus é Pai o que não quer dizer que seja homem”, explica. 

Quanto à vida sacramental, há também um caminho a trilhar. Os três graus do sacramento da ordem – diácono, sacerdote e bispo – apenas estão acessíveis aos homens. E só em 2021 é que o Papa Francisco aprovou o Motu proprio Spiritus Domini em que retira a exclusividade aos leigos masculinos na receção dos ministérios de leitor e acólito. Apesar de esta norma reservar aos fiéis de sexo masculino estas funções, há muito tempo que é prática comum o seu exercício também por mulheres. A inovação desta iniciativa do Papa, “é a possibilidade de conferir o ministério, através de um rito litúrgico presidido pelo bispo, dando assim uma maior visibilidade e estabilidade às funções de proclamar a Palavra de Deus e servir o altar na celebração eucarística. Na verdade, a reserva até aqui existente tornava muito difícil que fosse valorizado o ministério instituído, acabando este por ficar reservado, na prática, para os candidatos ao sacerdócio», como escreve António Ary, sj, no site dos Jesuítas em Portugal. 

Neste sentido, considera-se que é efetivamente fraca a presença de mulheres no altar o que é preciso alterar para uma maior valorização das mulheres. A comissão criada pelo Papa Francisco em 2016 para estudar a possibilidade do acesso das mulheres ao diaconato ainda não chegou a qualquer conclusão e na assembleia do Sínodo as opiniões foram bastante divergentes. Segundo o relatório, alguns dos intervenientes consideram que este é um passo “em descontinuidade com a Tradição”, outros acham que é o reencontro com a Igreja primitiva e há ainda ache esta abertura “uma resposta apropriada e necessária aos sinais dos tempos”. No final, foi pedido para se continuar “a pesquisa teológica e pastoral sobre o acesso das mulheres ao diaconato, tendo em conta os resultados das comissões criadas pelo Papa e a pesquisa teológica, histórica e exegética”.  Espera-se que haja resultados na próxima sessão da assembleia, em 2024.

Já a ordenação sacerdotal ou episcopal de mulheres parece mais difícil de concretizar, mas não está fora do horizonte. Apesar de João Paulo II ter feito a “declaração definitiva” de que esta era uma porta fechada às mulheres e de o Papa Francisco ter remetido para esta declaração a posição da Igreja, Sónia Monteiro adverte que “uma declaração definitiva não representa um dogma de fé”. Ou seja, que esta pode ser uma questão ainda em aberto. No seu entender, “não há qualquer impedimento ou obstáculo teológico incontornável. É uma questão antropológica e cultural”. Mas adverte: o acesso das mulheres a este grau não pode ser “a reclamação de um direito individual, mas sim uma alteração comunitária, dentro da Igreja”. Há passos que podem indo ser dados e que fazem grande diferença para que não continue a “parecer estranho” a presença das mulheres no altar. São eles a celebração da Palavra e a distribuição da Eucaristia, ou seja, uma maior participação das mulheres na vida litúrgica. Se as homilias estão reservadas aos diáconos e aos sacerdotes, nada impede que seja pedido aos leigos – independentemente do sexo – que deem os seus testemunhos a partir do altar. “Há várias formas de chamar as mulheres à interpretação da Escrituras e de a sua participação não ser estranha às comunidades”, garante. 

Também Rita Valadas não vê qualquer problema na ordenação sacerdotal das mulheres: “Não há nenhum obstáculo, além da tradição cega, que impeça as mulheres de desempenharem qualquer função. Mas não é dando funções às mulheres que se abre a Igreja. É preciso cuidado e uma escuta ativa”, reitera. 

Já Isabel Figueiredo, diretora do Secretariado Nacional das Comunicações Sociais da igreja portuguesa não é da mesma opinião: “A ordenação sacerdotal das mulheres é algo que não encontra eco no meu coração. O que me faz refletir, rezar e pedir é sermos capazes de viver em Igreja, sem diferenças entre nós”, afirmou ao jornal i. 

Apesar de a ordenação ser o tema mais mediático e sobre o qual todos, católicos e não católicos, têm uma opinião, a configuração da Igreja tem mudado nos últimos anos e é cada vez mais feminina. Em 2010, sob o Pontificado de Bento XVI, 4 mil e 500 pessoas estavam empregadas no Vaticano, incluindo 697 mulheres, hoje, são cerca 5 mil os funcionários e quase 25 por cento são mulheres.  Além disso, há mais mulheres em posições de destaque. Em 2016, o Papa Francisco nomeou pela primeira vez uma mulher como diretora dos Museus do Vaticano;  no ano seguinte, nomeou mais duas como subsecretárias no Dicastério para o Laicado, a Família e a Vida; em julho de 2019 indicou  sete mulheres para a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica; em 2020, aconteceu a  nomeação pela primeira vez de uma mulher para ocupar um cargo diplomático no Vaticano; em 2021 foi entregue a  Secretária Geral do Estado da Cidade do Vaticano uma religiosa e nomeada uma subsecretária do Sínodo dos Bispos; em 2022 três consagradas foram indicadas para integrarem o Dicastério para os Bispos, organismo responsável pela sua nomeação.  Estas são algumas entre outras nomeações que todos os anos fazem paragonas na comunicação social. 

Todas estas nomeações são um sinal e uma mudança que o Papa prometeu e quer cumprir de forma a contrariar o clericalismo e a desvalorização das mulheres. “Não foi há muitos anos que um padre me lembrou que ‘eles’ estavam lá em cima e ‘nós’ cá em baixo. Isto é que me incomoda, provoca e entristece”, lembra Isabel Figueiredo. 

Memórias de um tempo que parece estar a terminar.