1.
“Não é a salvação, somente a pausa a construir no cansaço a sua ternura” (Rui Nunes).
Paul Schrader é o segredo menos bem guardado do melhor Scorcese. É o realizador mais surpreendente em busca do mesmo filme.
2.
A base é Bresson e Dostoiévski. Um herói fracassado numa ordenada perversidade metafísica. Aqui trata-se de um ex-fascista chegado, após vários assassinatos de ódio racista feitos dentro de uma célula paramilitar, ao nada potente em que se deve reconstituir subjetivamente. Tem sempre a supervisão da polícia na nova vida, uma sorte que nem sempre assiste a criminosos que não sejam brancos. É como se a mãe pátria assumisse responsabilidades por crimes por ela induzidos e que lhe assistem também. Mantém as tatuagens de um passado violento, as insígnias e símbolos daquilo que não pode esquecer senão no inverno e no ofício. Voltam sempre na intimidade de um corpo nu, ao fim do dia. Pelo corpo tudo se lembra com mais vividez – e tudo fica, assim, mais difícil de esquecer, como se mais próximo dos gestos.
Daí a necessidade do diário quando não há outro complementador, do exercício de construção interior, partilhado, aliás, por todos os heróis de Schrader. O diário é o dispositivo do desdobramento interior: multiplicar eus até ao eu como abismo. A condição moderna, como sabemos, é pessoana. O diário pertence aos heróis da mansarda, a todos aqueles a quem o exterior fez sentir um trapo. Ver mais o dentro enquanto um destino se prepara.
O filme prossegue de forma calma, com aquela geometria em que a melancolia imagina um fim. E como amar, pois, um corpo com desenhos odiosos? Não se ama à distância: na exaltação do animal humano, interferem símbolos.
3.
O desvio para a jardinagem, exercida além das suas técnicas, com aquela fundura adequada a qualquer mortal, é também consequente com uma forma de ver a política enquanto eliminar extremo de ervas daninhas. Um deslocamento quem sabe inconsciente. As personagens falam por murmúrios, o mais conveniente à verdade, o bom que se pode seguir a um passado exaltado em que pelo ruído grassava a autocomplacência, em que o real nada valia se não fosse alterado.
Na modernidade, pela qual alastram espaços tóxicos, o humano depende da instalação de meios-ambientes. Além de se focar na disposição dos elementos num jardim, o herói interessa-se sobretudo pela potência germinativa das sementes e pelo modo como uma flor poderá manter-se exuberante na sua aérea e leve suspensão, que nega o ofício da física sobre os corpos e a violência minuciosa de qualquer poder. Nesse motor invisível, o herói estanca, sem fé. Está, pois, numa espécie de sonambulismo enquanto não morre ou não é chamado a tomar uma posição: a escolher a parte mais amada e mais frágil. Pode ser reparação até porque, de acordo com uma célebre formulação nietzschiana, quando queremos disciplinar a consciência ela abraça-nos mordendo. Mas é bem mais do que isso, porque é amizade e, depois, amor por uma jovem afro-americana. Este é outro elemento sempre presente nas obras de Schrader por nítido decalque, reiterado, do clássico Pickpocket (1959): o desespero de um mundo, feliz e infelizmente, desordenado, sem emenda, mas com alguma inocência. Jovem escolhida quando a rival era uma mulher que garantiria com maior probabilidade um largo futuro estável. E ele parecia inicialmente inclinado a esta opção porque obedecer sem equívocos alija o peso de um conflito insustentável após um passado já tão sobrecarregado e na circunstância de um presente perto da ausência de saída. Obedecer ao exterior é a tranquilidade de um lugar no mundo ainda que desobediência íntima. Na sequência de um massacre, querer sobreviver. Porém, não é no território da sobrevivência mercantil e cínica que Schrader coloca as suas personagens. São personagens que estão quase a não mais fugir da sua intimidade (glosa de Rui Nunes) ainda que a miséria material proporcione mais escolhas entre sofrimentos disponíveis e as próprias personagens venham a ter a possibilidade duma vida mais tranquila graças à desordem grande dos jardins Gracewood. Ou seja, os que disseram «não» são chamados à emenda minuciosa de um jardim. Felizmente, as flores e os humanos têm essa disponibilidade para rejuvenescer com a exuberância de um cavalo novo.
4.
Mãos que tremem – as dele, diante da família.
As dela, diante dos drogaditos.
5.
Rimbaud, extenuado e com uma perna infecta, rindo-se sarcasticamente do chefe da estação de Marselha, que cuidava do seu pequeno jardim. Essa atenção ao pequeno território ordenado, à vida mensurada, ao voto de desprezo pela ineficácia das misturas, ao mundo que não se pode sobrepor à geometria. Essa abominação de estar vivo.