Sabemos que a capital é conhecida por estar sempre em obras. Há quem o diga já em forma de piada. Acabam num sítio, começam noutro. Também por isso, Lisboa é conhecida pela combinação entre o antigo e o contemporâneo. Se em Alfama, por exemplo, somos rapidamente transportados para o século passado, no Parque das Nações estamos dentro de um aquário de contemporaneidade. A distância entre estes dois locais é grande, o que acaba por atenuar o choque arquitetónico e de realidades. Mas se viajarmos até Marvila, ou o Beato, o choque acontece e parece que os planos passam cada vez mais por transformar a zona num local para as elites esquecendo aqueles que há mais de 50 anos vivem em pátios que, escondidos atrás das fachadas, nos dão a impressão de estarmos dentro de uma pequena aldeia com casas minúsculas e onde, em tempos, se viveu em comunidade sem eletricidade e canalização.
Prata Riverside Village
Passa pouco das 14 horas. Estamos no Passeio Pedonal Eunice Muñoz no Braço de Prata, na freguesia de Marvila, perto do rio. O dia parece não ter pressa. O sol queima e há quem aproveite os últimos minutos da pausa para o almoço para contemplar a vista. No entanto, a calma da paisagem é constantemente interrompida pelos ruídos da enorme obra dos novos apartamentos Prata Riverside Village. Apesar de nem todos estarem terminados, já há quem habite alguns andares dos prédios cinzentos com apontamentos em verde. “Um bairro jovem, e cheio de vida. Só vivido”, lê-se nos painéis que separam a obra do passeio. “Uma nova forma de viver, numa villa urbana no novo bairro de Marvila”, promete o projeto assinado por Renzo Piano, vencedor do prémio Pritzker. Segundo a plataforma idealista, o empreendimento residencial que está a nascer e está a atrair investidores e/ou compradores pode vir a ter, no total, 781 casas, mais 282 que o previsto inicialmente (499). O objetivo da VIC Properties, promotora imobiliária que está a desenvolver o projeto, que deverá estar totalmente concluído até 2026, é “aumentar a oferta de habitação, optando por casas com menores áreas”. Mas, pelos carros que se encontram estacionados nas entradas das residências – Teslas, Ferraris, Lamborghinis e Porsches –, é possível adivinhar que esta oferta não é nem será para o bolso de todos. Apesar de ainda haver muitos espaços fechados, já é possível entender como ficará esta pequena vila. Em baixo dos prédios já existem vários restaurantes e cafés que seguem o estilo contemporâneo. Além disso, há uma galeria de arte, uma lavandaria e engomadoria, lojas de decoração, uma loja de bicicletas, uma pequena mercearia, um mercado de arte e um salão de cirurgias estéticas.
8 Marvila Seguimos para o “centro” de Marvila, na Praça Leonardo da Silva. Conhecida pelos seus armazéns transformados em cafés e restaurantes da moda, recentemente viu nascer o 8 Marvila, antigamente conhecido como a “Catedral do Vinho”. Quem passa pela entrada não tem a noção daquilo que pode encontrar nos 22 mil metros quadrados em que operavam os antigos Armazéns Vinícolas Abel Pereira da Fonseca, agora transformado num espaço de referência para a cultura alternativa e empreendedorismo independente. O frio das paredes parece contaminar o espaço. Ao mesmo tempo, a música de jazz aquece a experiência. Apesar de não se ter mexido no chão e nas paredes, ainda em betão e deteriorados pelo tempo, o espaço ganhou uma nova vida ao receber mais de uma dezena de projetos que vão desde a venda de colunas Marshall, a uma loja de tatuagens, loja de vinhos, de roupa, plantas, móveis, restaurantes, discoteca e um bar com vista para um vasto lounge que une o cinzento do industrial com o verde da vegetação. Sentados nos assentos e poltronas, veem-se sobretudo turistas, dando a ideia que o espaço escapa aos residentes.
Recorde-se que este primeiro piso do edifício que visitamos foi erguido em 1910, tendo os Armazéns Vinícolas Abel Pereira da Fonseca sido ampliados pelo arquiteto Norte Júnior em 1917. Nessa altura, deu-se a edificação de uma fachada alusiva ao formato das pipas de vinho. No princípio, o espaço servia para armazenar vinho produzido no Bombarral pela Sociedade Abel Pereira da Fonseca, fundada em 1906 que acabou por fechar atividade em 1993. Desde o final da década de 90, este tem sido palco de vários eventos: em 1998, foi cedido à Câmara de Lisboa para atividades de animação cultural e turística em articulação com a Expo 98. Recentemente, detinha espaços de coworking e restaurantes.
Pátio da Quintinha
Percorremos as ruelas até ao Beato. E não é difícil provar que se vive duas realidades completamente diferentes nesta zona. Artur Carvalho é uma grande testemunha das mudanças do Beato/Marvila. Paramos na Rua do Beato, no Tasco Não Venhas Tarde. Forrado com azulejo branco e azul, e onde se come comida caseira a preços bastante simpáticos, esta casa parece não ter dado conta do passar do tempo. Apesar de já ter passado das 15 horas, o espaço ainda está composto. “Nasci aqui no pátio da Quintinha e aqui me mantive. Já passaram 68 anos”, afirma com o seu bigode e a boina basca que lhe é característica. “A diferença é do dia para a noite. Antigamente toda esta zona do Beato era de operários. Havia muitas fábricas: desde a fábrica da borracha, à dos fechos, à nacional, o sabão, os fósforos, armazéns do vinho etc. Isto era um mundo muito grande”, lembra, revelando que, por dia, passavam por aqui mais de cinco mil pessoas. No pátio da Quintinha, por trás do restaurante, viviam cerca de 200. Ao entrarmos pelo portão já enferrujado que marca o número 14 parece que entrámos numa pequena aldeia. “Nessa altura, os nossos pais tinham imenso filhos, não vivíamos bem monetariamente. As habitações eram muito degradantes e muito pequenas, não havia luz, canalização, casa de banho. As pessoas – maioritariamente vindas do Norte –, vinham para aqui porque esta era a parte industrial de Lisboa. Ao mesmo tempo, não havia fechaduras nas portas, estava sempre tudo aberto e vivíamos em comunidade”, recorda enquanto sobe a rampa de betão que antes era de terra batida. “Lembro-me tão bem de jogar aqui à bola. Ao olhar em redor, parece que estou a viajar no tempo e vejo as pessoas a deambular pelo espaço”, afirma emocionado. Depois do 25 de Abril, foi permitida a construção de casas de banho e muitas casas passaram a ter eletricidade. “Mas as coisas continuam assim, como podem ver. Muita gente morreu, outros foram embora. Agora somos poucos portugueses e chegam cada vez mais imigrantes”, comenta. As condições continuam precárias, mas há algumas varandas cheias de flores e decorações, que contrastam com o cenário de abandono de outras. “Estes edifícios vão todos abaixo. Eles estão a construir habitações de luxo. Os pátios têm de acabar. Aliás, este pátio que tem cento e tal anos, já está para venda”, admite. Segundo Artur, o pátio pertence à Segurança Social. Interrogado sobre o preço das rendas, revela que não existem. “Isto está tudo abandonado”, reforça. “Só quem era daquele tempo é que paga”, acrescenta. Artur compreende que “mudam-se os tempos mudam-se as vontades” e que é natural que as coisas evoluam. No entanto, frisa que “as coisas têm de mudar” também deste lado. “Quando fizeram a Expo foi uma mudança para norte, agora será para sul. Será uma das zonas chiques da capital”, antevê.
O dia termina no Hub Criativo do Beato, mais uma zona em transformação. Parece que estamos diante de um LxFactory em construção. Esta antiga zona industrial do Exército Português, anteriormente conhecida como Manutenção Militar, era onde se fabricavam farinhas, massas, pães, biscoitos e outros produtos cerealíferos. Agora prepara-se para “receber mais de três mil pessoas de todo o mundo que queiram produzir inovação”, lê-se no site oficial. “Estamos a construir um espaço de inovação aberta, no coração do bairro do Beato, no qual as zonas de trabalho, lazer e cultura se cruzam para criar uma nova dinâmica urbana, um espaço de vivência diária comum aos residentes do hub – empreendedores, freelancers, startups, scaleups e grandes empresas – e a toda a comunidade envolvente”. Mais um lugar que promete contrastar com o pátio da Quintinha que, vendo todas as obras ao seu redor, continua vítima da inércia do tempo.