Calma! O enriquecimento ilícito já é crime (parte II)

E a confusão, já se sabe, é a melhor amiga do ‘princípio de Lampedusa’, que ensina que é preciso mudar para que tudo fique na mesma.

Escrevi aqui há um mês que estava outra vez na crista da onda o enriquecimento ilícito, mas que não valia a pena, porque já estava criminalizado, sob a forma de desobediência qualificada e ocultação intencional de património. Entretanto, constatei que talvez tenha razão, pois a chamada ‘agenda anticorrupção’ não propõe nada diretamente nesta matéria (propõe noutras, mas abstenho-me hoje e aqui de comentar, nomeadamente a ‘reformulação’ do regime da perda alargada – baseado no ‘convencimento’ do Tribunal… –, porque ainda estou quanto a esse particular de boca aberta e com dificuldade em articular palavras). Escrevi eu então também, quanto àquele crime, que, na versão original, a Lei punia criminalmente a omissão de declarações patrimoniais de titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos, à entrada e à saída de funções, e pelo meio quando houvesse acréscimos patrimoniais. Depois, passou a punir também a não identificação dos factos que originaram as alterações patrimoniais. Ora, é recente a Lei, de 2019, e ainda mais recente a sua alteração habilidosa de 2022. É capaz de não ter havido ainda tempo para olhar para os problemas que talvez essa incriminação levante, que são essencialmente dois – para além de um outro, clássico, que é o de se tratar de um crime que não serve para nada, porque quem cometa crimes e tenha com eles acréscimos patrimoniais não vai colocá-los na sua esfera e, portanto, não tem nada a declarar. Mas pronto, esqueçamos esta questão; coisa aliás pequena, quando comparada com a sensação calmante de que se legislou e, portanto, se fez imenso, e ainda por cima imenso contra essa coisa que, a avaliar por alguns discursos e um certo clima, parece ser o maior problema nacional, a corrupção (país feliz, este nosso, no qual estão menos mal a economia, a saúde, a habitação, a educação, et cetera, e onde o problema dos problemas é a corrupção).

Concentremo-nos nos dois outros problemas que talvez o crimezinho salvador tenha – digo eu, agarrado a coisas jurídico-constitucionais, que é matéria em desuso, como se vê frequentemente, a começar pela casa onde está sediado o poder (e o dever) de fazer as Leis (e de as cumprir, já agora). Primeiro problema: aquele que o Tribunal Constitucional já identificou quanto a tentativas anteriores, ou seja, o princípio da necessidade da pena, sob a dupla exigência de dignidade e de carência de tutela penal (dizendo para os não juristas: tem o crime, para ser legítimo, de proteger um bem jurídico essencial contra um ataque grave e tem de não haver outras formas de intervenção eficaz do Direito). Exigências estas que é muito duvidoso que um crime que se baseia no mero não cumprimento de obrigações declarativas cumpra. Mas é uma dúvida minha, um dia alguém dirá se cumpre ou não a Constituição – esta que ainda temos, se esta ainda existir. Outro problema: a proibição da autoincriminação, pois o que se criminaliza, na verdade, é a não confissão, sob a forma de não declaração da origem do aumento patrimonial, da natureza ilícita do enriquecimento. Ou seja, o agente do crime é sancionado por não se auto incriminar. Parece-me, a mim, um bota de elástico que vê no miolo do Estado de Direito a defesa das liberdades do individuo, e parece-me que isso não pode ser; mas, naturalmente, sempre salvo melhor opinião – fórmula sagrada no mundo ritualizado (e algo barroco, como agora se diz) do Direito.

Calma, portanto, não só porque muitas vezes já existe o que se anuncia como necessário, bom e querido, mas também porque convém olhar com olhos de ver para o que já temos (e dar tempo ao tempo, já agora), antes de desatar a épater la bourgeoisie e a somar no papel mais letras, palavras e linhas, que não só não resolvem nada, como acrescentam problemas e confusão. E a confusão, já se sabe, é a melhor amiga do ‘princípio de Lampedusa’, que ensina que é preciso mudar para que tudo fique na mesma. Coisas às pressas para encher o papel, e encher a boca, costumam dar mau resultado, seja porque esbarram na civilização, seja porque criam uma (pouco) admirável ‘civilização’ nova.