A Traição da Esquerda

As mutações da esquerda que se tornou elitista e clientelar alteraram a sua base de apoio. O povo de esquerda deslocou-se para a nova direita.

Existem quatro tipos de esquerdas, a da leitura soviética do marxismo, que morreu, as concretizações exóticas e anacrónicas que permanecem em regimes como o venezuelano, o coreano e o cubano, a nova esquerda subsumida pelos desenvolvimentos do liberalismo, o seu espectro vai da social-democracia à nova esquerda radical, e uma tradição da esquerda socialista, do socialismo democrático que já só tem meia dúzia de herdeiros. Estes últimos são precisamente os mais importantes intérpretes da grande traição da esquerda.

A esquerda estava associada a uma realidade sociológica relacionada com as classes mais desfavorecidas, a luta contra as desigualdades sociais e por uma justa redistribuição económica e uma desconfiança fundada sobre as mutações do capitalismo cada vez mais global e impondo uma desdemocratização da economia. Os trabalhadores, as pessoas comuns, os desfavorecidos, os pobres e a sua realidade cultural constituam o povo da esquerda. Mas essa esquerda desapareceu e é hoje indistinta da vertente societal e cultural do liberalismo. O progressismo é o resultado dessa nova esquerda, que pouco mais é que um tipo de liberalismo cultural. Esta nova esquerda, a moderada como a radical, abandonaram e por isso perderam uma parte significativa do seu eleitorado, embora tenham conquistado, em contrapartida um poder quase hegemónico nos média e nas universidades.

 A luta de classes e a crítica do capitalismo desapareceu do vocabulário da esquerda ou é apenas simbólico, sendo substituído por clientelas específicas dos activismos e um projecto de desidentificação radical das raízes do ser humano.

As mutações da esquerda que se tornou elitista e clientelar alteraram a sua base de apoio. O povo de esquerda deslocou-se para a nova direita. Esse povo não é estupido, ignorante, nem por magia se transformou numa legião de deploráveis fascistas, conforme apresentado por uma certa propaganda maniqueísta dos média liberais progressistas. Esse eleitorado é gente, sim, que se sente legitimamente abandonada e traída, É o homem comum, o trabalhador, o jovem, cada vez mais endividados e com menos dinheiro, sem perspectivas e que se confrontam com trabalhos precários, vencimentos baixos, juros elevados, e empobrecidos com as crescentes subidas de preços de alimentos, habitação e transportes que só o mercado livre controla.

 As grandes causas da esquerda já não são o combate à miséria, à pobreza, a defesa intransigente dos serviços públicos e das funções sociais do Estado, a denúncia da destruição do trabalho e do bem comum, mas os direitos LGBTQ, o casamento ‘gay’ e a mudança de sexo, a descoberta que somos todos racistas e temos de detestar o nosso passado e a nossa história e identidade, e que temos que apoiar com verbas ilimitadas e benefícios a imigração descontrolada. Quando falamos de povo, referimos também a classe média cada vez mais proletarizada.

A lógica dessa nova esquerda não aceita a diferença nem a divergências, apenas admite a submissão aos seus dogmas e tem um papel fundamental na afirmação hegemónica desse hiperliberalismo, pois é uma espécie de vanguarda liquidatária da resistência à ideia da acumulação infinita de capital do tipo de liberalismo vigente. Destruir tudo o que enraiza, proclamar a liberdade individual infinita e dividir o mundo entre os sempre bons e os sempre maus, cumpre exemplarmente o papel de cilindro de terraplanagem para o mundo mercado.

Os poucos pensadores de esquerda genuína que ainda existem ajudam-nos a compreender essa traição. A nova esquerda tem realizado um trabalho radical de desenraizamento do ser humano que é decisivo para o triunfo incontestado da desregulação económica a nível global.

Pier Paolo Pasolini referia esse fim da esquerda que é agora peça central da sociedade de consumo: «Nenhum centralismo fascista conseguiu fazer o que o centralismo da sociedade de consumo fez. O fascismo propôs um modelo reaccionário e monumental, mas que permaneceu letra-morta. As diferentes culturas particulares (camponeses, sub-proletários, trabalhadores) continuaram imperturbavelmente a identificar-se com os seus modelos, porque a repressão se limitava a obter o seu apoio em palavras. Hoje, pelo contrário, a adesão aos modelos impostos pelo centro é total e incondicional. Negamos verdadeiros modelos culturais. A abjuração está realizada. Podemos, portanto, afirmar que a “tolerância” da ideologia hedonista desejada pelo novo poder é a pior repressão de toda a história humana».

 Roger Debray via no Maio de 1968 a primeira revolução hiperliberal, o corte definitivo entre os trabalhadores e as elites universitárias e culturais. Reparem-se como os jovens esquerdistas (por exemplo, Barroso e Guterres) desses anos se transformaram nos principais políticos, gestores e empresários liberais de organismos nacionais e internacionais. Os órfãos do marxismo, que por sua vez, ficaram pelas universidades, construíram uma amálgama de práticas maoistas, estalinistas e jacobinas que têm ensinado a sucessivas gerações de alunos e que transitam para os partidos que ainda se reivindicam de esquerda, mas sem qualquer contacto com o mundo das pessoas comuns.

A importância de valores universais, a liberdade de expressão e a igualdade de oportunidades foram eliminados do discurso progressista e substituído por práticas tipicamente totalitárias, persecutórias, maniqueístas e fundamentalistas, dos quais os média são um amplificador recorrente. A nova esquerda que se transformou em novas formulações políticas, desconhece por completo o que é a vida das pessoas comuns, os seus sacrifícios, as suas dificuldades e preocupações e a importância da ideia de família, da comunidade, de laços sociais, de vínculos, históricos e culturais que agora são reaccionários. A luta de classes foi substituída por questões identitárias, usando grupos específicos, como a raça, o género e orientação sexual e por um trabalho de desfiliações sucessivas na construção de um novo homem sem identidade, sem fronteiras e sem limites.

Mark Lilla e Yascha Mounk referem como as políticas identitárias com a sua sobranceria moralista estão a destruir as bases do que é a democracia como a igual dignidade de direitos, a não discriminação em função de especificidade de cor e sexo e a importância do que une em detrimento do que divide.

A esquerda digna morreu de facto como refere Wolfgang Streeck: «A luta contra o “teor do consumo” ainda teve alguma ressonância junto dos estudantes de 1968, pouco tempo depois começou um período de consumismo e comercialização nunca visto no mundo, com a participação activa e maioritária precisamente da geração que, ainda havia pouco, lamentava e combatia a mercantilização da vida do capitalismo».

Guy Debord explicava já nos anos noventa que os desenvolvimentos futuros do capitalismo moderno encontrariam o seu principal álibi ideológico na luta contra “o racismo, o anti-modernismo e a homofobia”, o que explicaria o neo-moralismo indignado que simulariam, e que ele designava como, “as actuais ovelhas da intelectualidade”. Robert Kurz explica-nos como os grandes movimentos do progressismo como o pós-estruturalismo, os desconstrutivismo, a teoria do género e a teoria queer são exemplos de teorias pós-modernas “culturalistas” que substituíram a crítica fundamental do desenvolvimento do capitalismo e são os alicerces desse hiperliberalismo que não concede a possibilidade de qualquer alternativa fora do próprio sistema que gere.

Jean-Claude Michéa denuncia o abandono das classes trabalhadoras pela esquerda. O povo desapareceu do campo de visão das elites e das novas categorias sociais privilegiadas. Para Michéa o liberalismo não é apenas mais uma ideologia específica da política moderna, porque expressa uma unidade fundamental que se identifica com a própria modernidade. O liberalismo é o núcleo de várias correntes, nas quais incluí o progressismo e a nova esquerda. As expressões decorrentes contra a ideia de Estado-Nação, a ideia de continuidade histórica, a tradição e a moral tradicional, a família os próprios valores ocidentais, são principalmente alvos do liberalismo cultural, ou seja, do progressismo que absorveu a nova esquerda.

Marx e Engels perceberam muito tempo antes esta possibilidade. Marx deixou-nos, aliás, pistas claras, para se estabelecer a ligação do liberalismo político e cultural da burguesia “republicana” com aquilo que hoje é a esquerda que substituiu o comunismo e o socialismo tradicional. O liberalismo nunca foi a antítese do esquerdismo cultural, como é no seu seio que ele nasce. Lenine refere as várias formulações de esquerda que eram em parte liberais e recordava a chacina dos trabalhadores pela burguesia republicana em Paris em Junho de 1848, afirmando que apenaso proletariado era socialista por natureza e que a burguesia liberal, a nova esquerda actual, tinha como grande inimigo essa classe.

Lenine identificou o emergir dessa nova esquerda, basta transpor para agora o conceito “pequeno burguês revolucionário” , opondo-lhe até a defesa do pequeno proprietário e do pequeno patrão, esmagados pelo capitalismo, e não conhecia Lenine o que seria a globalização actual. O “pequeno burguês “enfurecido”, mesmo que simulando alguma antipatia pelo capitalismo, é um fenómeno social próprio de todos os países capitalistas. A inconstância deste revolucionarismo e a sua esterilidade, notava Lenine, transformar-se-ia rapidamente em submissão, em apatia, em fantasia, e mesmo, num entusiasmo «furioso» por uma ou outra corrente burguesa «na moda».

Uma esquerda genuína nunca pactuaria com nenhuma força política que aceitasse o modelo económico vigente. Esta esquerda, mais que o idiota útil do novo capitalismo prepara-lhe o terreno, não é por acaso que a ideologia da economia baseada na apropriação privada dos grandes meios de produção e na acumulação infinita do capital, necessita e promove as obsessivas causas ditas progressistas e os novos opressores e vítimas.

A ideia de liberdade ilimitada une a nova esquerda e liberalismo vigente, mas este ideia nada tem a ver com o projecto de emancipação do iluminismo, mas a da destruição de qualquer limite. Esta ideia como referia Christopher Lasch, não é a da defesa que cada pessoa escolha um curso de acção em vez de outro, mas a liberdade do consumidor que é a de escolher tudo de uma vez. A ideia de vida sustentada pela propaganda de ‘commodities’, que cerca o consumidor com imagens de possibilidades ilimitadas.

Richard Sennett refere as consequências devastadoras do predomínio dessa formação narcísica na construção da personalidade e identidade do novo homem. A personalidade torna-se estruturalmente patológica e a busca pessoal é feita agora com base no afastamento e destruição das relações sociais, dos vínculos e das identificações primordiais. A ascensão do individualismo extremado, do qual a ideia de liberdade individual ilimitada é um sintoma é incompatível com a dimensão da vida pública e social, como a dimensão comunitária, base da vida humana.

O triunfo deste tipo de homem, o homem psicológico, o self-ownership, assenta na ideia Freudiana que podemos compreender quem somos apenas nos centrando no ego e até pode dispensar o superego. A moral, a religião e família constituem, doravante, as instâncias castradores e repressivas que devem ser removidas. A normalização, até política, deste novo homem, libertou os indivíduos para a ideia que viver de modo autêntico e livre significa viver de acordo com “os seus próprios desejos”. As multidões estão agora preocupadas, mais do que nunca, apenas com as histórias das suas próprias vidas e com as suas emoções particulares, mas esta preocupação tem demonstrado ser mais uma armadilha do que uma libertação.

Christopher Lasch referia esta nova identidade do Ocidente, caracterizada pelo conceito de mobilidade, de trânsito permanente, como uma espécie de ideal desse novo capitalismo, onde ninguém tem terra, cultura e pátria, onde os valores são substituídos unicamente por regras que agilizam a quebra de barreiras e limites, sejam eles geográficos, axiológicos, culturais e económicos. Todos os significados comuns, partilhados e herdados devem ser desqualificados, inclusive até a ideia de feminino e de masculino. O fim da identidade sexual, nacional, cultural e espiritual são fundamentais para a ideia de economia global.

A única função da nova esquerda é agora a de vanguarda progressista e consiste em liquidar qualquer resistência à sociedade e mundo mercado e à expansão mundial da economia do mercado livre.

Um exemplo claro, as causas societais e as guerras culturais que têm o seu berço nos EUA pertencem ao partido democrata e são a expressão desse novo espírito do capitalismo. Oiçamos um político liberal a falar desses temas ou alguém da extrema-esquerda ou de partidos ditos de esquerda sobre questões societais e são indistintos.

As ideias de capitalismo verde, do multiculturalismo, do mundo sem fronteiras e a liberdade sem limites, por exemplo, são a expressão de esquerda ou do liberalismo económico?