O vinho tem sido apreciado há milhares de anos, não apenas pelo seu sabor, mas também pelos potenciais benefícios para a saúde associados ao seu consumo moderado. No entanto, a relação entre vinho e saúde continua a ser um tema de debate e pesquisa. Especialistas apontam para a necessidade de mais estudos para esclarecer os verdadeiros efeitos do vinho no organismo humano. Uma das pessoas que estudaram este tema é Carla Vagante, que se tornou mestre em Tecnologia e Segurança Alimentar, pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, com a dissertação Efeitos do consumo de vinho na saúde humana: aspectos positivos e negativos, em 2012.
Na dissertação, que constituiu um desafio pela falta de trabalhos em português sobre o tema, abordou a biodisponibilidade dos compostos do vinho, como o resveratrol, e a sua eficácia na saúde. Destaca a diferença entre estudos in vitro (em laboratório) e in vivo (em seres vivos), e a complexidade da biodisponibilidade dos compostos do vinho.
Encontrou informações surpreendentes, como o impacto do vinho na bactéria Helicobacter pylori, que está associada ao cancro de estômago. “O vinho não erradica a bactéria, mas pode reduzir a sua atividade e proliferação”, salienta Carla, acrescentando que “além disso, o vinho possui compostos antioxidantes que têm benefícios para a saúde”. “O vinho tem propriedades benéficas, especialmente devido ao resveratrol e outros antioxidantes, mas o consumo deve ser moderado para evitar os efeitos prejudiciais do álcool”, explicita a mestre que considera que o seu trabalho oferece uma visão acessível e compreensível sobre o impacto do vinho na saúde, tanto para especialistas quanto para o público em geral.
“O stresse oxidativo é um precursor de muitas doenças, incluindo cancros, devido à oxidação das células. Compostos antioxidantes podem ajudar na prevenção, mas não garantem imunidade total, já que outros fatores também influenciam. O resveratrol, encontrado na uva, é um antioxidante potente que pode proteger contra o stresse oxidativo e tem propriedades antimicrobianas”, aponta Carla, técnica de qualidade no laboratório da VINIVISTA, adiantando que, historicamente, o vinho era visto apenas como uma bebida para festas, mas com o “paradoxo francês” começou a ser estudado pelos seus benefícios para a saúde.
O “paradoxo francês” é um termo criado para descrever um fenómeno observado em França, em que, apesar de uma dieta rica em gorduras saturadas, a taxa de doenças cardíacas era relativamente baixa em comparação com outros países ocidentais, como os EUA. Esse paradoxo intrigou os investigadores porque parecia desafiar a relação convencionalmente aceite entre uma dieta rica em gorduras saturadas e um aumento no risco de doenças cardiovasculares.
A ideia do paradoxo francês começou a ganhar atenção na década de 1990, após a publicação de um estudo do epidemiologista Serge Renaud e outros investigadores, que notaram que França tinha taxas relativamente baixas de doenças cardíacas em comparação com países com dietas semelhantes, apesar do alto consumo de gorduras saturadas. Este fenómeno foi observado principalmente nas regiões rurais de França, onde os padrões alimentares eram mais tradicionais.
A dieta francesa tradicional inclui uma quantidade significativa de produtos lácteos, carnes vermelhas e manteiga, todos ricos em gorduras saturadas. Apesar disso, os franceses apresentavam menos incidência de doenças cardíacas em comparação com outros países ocidentais com dietas semelhantes, como os Estados Unidos e o Reino Unido. O vinho tinto foi rapidamente apontado como uma possível explicação para o paradoxo. Além do vinho, outros fatores culturais e de estilo de vida foram considerados. Os franceses tendem a consumir porções menores e a comer de forma mais lenta e consciente.
“Isto trouxe uma nova perspetiva sobre o vinho, não apenas como uma bebida alcoólica, mas também como algo benéfico quando consumido com moderação. A diferenciação entre os tipos de vinho, como tinto e branco, dá-se pelos compostos antioxidantes presentes. O vinho tinto, feito com a casca das uvas, contém mais antioxidantes que o vinho branco, que é feito sem as cascas e tem mais conservantes, como o sulfito, para evitar a oxidação”, observa Carla, indicando que a acidez volátil e o teor de sulfito são importantes na conservação e qualidade do vinho. “O vinho branco pode ter mais sulfito, o que o torna mais suscetível a reações alérgicas e menos antioxidante em comparação ao tinto. O vinho rosé tem características intermediárias entre o tinto e o branco, com menos antioxidantes”, frisa.
E, de facto, as conclusões de Carla vão ao encontro daquelas que são apresentadas em estudos mais ou menos antigos. Por exemplo, recentemente, um estudo publicado no Nutrients Journal investigou a relação entre o consumo de vinho e a mortalidade cardiovascular, doenças cardiovasculares (DCV) e doenças cardíacas coronárias (DCC). Os investigadores realizaram uma revisão sistemática e meta-análise de estudos longitudinais, incluindo coorte e caso-controle, procurando dados em diversas bases até março de 2023.
As doenças cardiovasculares são responsáveis por uma alta taxa de mortalidade global, com 18 milhões de mortes em 2017. Estudos anteriores sugeriram uma relação positiva entre o consumo de vinho e eventos cardiovasculares, indicando que o consumo moderado pode promover a saúde cardiovascular. Componentes do vinho, como o resveratrol e polifenóis, têm sido associados a efeitos protetores contra doenças cardíacas e cancros.
A análise revelou uma associação inversa entre o consumo de vinho e a incidência de DCV, DCC e mortalidade cardiovascular. Esta associação foi observada tanto para vinho tinto quanto branco, embora o vinho tinto tenha mostrado benefícios mais evidentes devido aos seus compostos fenólicos, como ácido gálico e catequinas. Estes compostos têm propriedades antioxidantes e reduzem riscos como a oxidação do LDL e trombose.
Os pontos menos positivos Portugal lidera o consumo de vinho per capita a nível mundial e o consumo total de álcool tem aumentado, de acordo com Manuel Cardoso, subdiretor-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD). Durante uma audiência na subcomissão parlamentar de Saúde Global, no início do ano passado, Cardoso e o diretor-geral do SICAD, João Goulão, discutiram o panorama atual do consumo de álcool no país. O vinho representa cerca de 60% do consumo de álcool em Portugal, enquanto a cerveja e as bebidas espirituosas representam, respetivamente, 30% e 10%. As bebidas espirituosas têm uma presença muito menor comparada à média europeia.
O consumo médio de álcool per capita aumentou ligeiramente de 11,9 litros em 2015 para 12,1 litros em 2019, contrastando com a tendência de queda na Europa. Enquanto os mais velhos preferem vinho, os jovens consomem mais cerveja e os adolescentes tendem a consumir bebidas espirituosas em forma de “shots”. A proporção de consumidores de álcool em geral aumentou de 60% em 2012 para 61,5% em 2022. A embriaguez, no entanto, aumentou em todos os grupos etários.
O número de internamentos hospitalares relacionados com o álcool subiu de 31.500 para quase 40.000 e as mortes aumentaram de 2.600 para mais de 2.700. Cardoso destacou que as medidas atuais não estão a ser suficientes para melhorar a situação. Por isto, não é de estranhar que também no ano passado tenha sido revelado que a dependência de álcool em Portugal crescera quase 50% na última década, passando de 3% da população em 2012 para 4,2% em 2022. Joana Teixeira, da Sociedade Portuguesa de Alcoologia (SPA), destacou essa questão durante o congresso “Álcoologia em Tempo de Mudança”, realizado no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa (CHPL). Alertou para a necessidade de fortalecer as estruturas de tratamento e melhorar a deteção precoce dos casos de dependência, para evitar problemas graves como cirrose hepática e cancros relacionados com o álcool.
Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2013 os homens perdiam 7 070 potenciais anos de vida, anualmente, por doença crónica do fígado e cirrose. Este valor era de 1 745 para as mulheres. Por outro lado, a Doença Hepática Esteatósica, ou fígado gordo, afeta atualmente pelo menos 15% da população adulta em Portugal, o que equivale a mais de 1,2 milhões de pessoas. Entre essas, cerca de 200 a 300 mil apresentam formas mais graves, com potencial para evoluir para cirrose. Esta condição é frequentemente associada ao consumo excessivo de álcool, mas também tem a ver com hábitos de vida não saudáveis. Segundo a Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado (APEF), a Doença Hepática Esteatósica é uma condição silenciosa que afeta mais de 115 milhões de pessoas globalmente e pode levar a complicações graves como cirrose hepática ou cancro de fígado. Estima-se que até 2030, cerca de 357 milhões de pessoas em todo o mundo serão afetadas por esta patologia.
No passado mês de julho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) revelou que o consumo de álcool é responsável por quase 3 milhões de mortes anualmente, com uma em cada 20 mortes relacionadas com fatores como acidentes de trânsito, violência e doenças associadas ao álcool. O relatório global sobre álcool e saúde destacou que, em 2019, 2,6 milhões de mortes foram atribuídas ao consumo de álcool, representando 4,7% do total de óbitos. A maior parte das vítimas eram homens. Entre os países de língua portuguesa, Portugal lidera o consumo de álcool, com 78,1% da população a consumirem a substância. Preocupada com estes dados, Carla Vagante salienta a necessidade de mais estudos para confirmar os efeitos do vinho no organismo, especialmente em relação aos compostos antioxidantes. Observa “que muitos estudos são contraditórios e que ainda não há provas conclusivas”. Acredita que os antioxidantes presentes no vinho têm benefícios para a saúde, mas ressalta “que o vinho é apenas um fator entre muitos que podem influenciar a saúde e não uma solução mágica para prevenir doenças”.