A Ucrânia foi esta semana alvo de alguns dos mais intensos bombardeamentos por parte da Rússia. Vladimir Putin reafirma objetivo de conquistar o Donbass, escapando a um mandado de detenção do Tribunal Penal Internacional na Mongólia, numa altura de mudanças no governo de Kiev e de olhos postos nas eleições norte-americanas de novembro e realinhamento de potências regionais.
Um dia após um ataque que deixou mais de 50 mortos em Poltava, a Ucrânia sofreu novos bombardeamentos russos que mataram sete pessoas, incluindo três crianças, e deixaram 53 feridos em Lviv, na região oeste do país e a centenas de quilómetros da linha da frente de guerra.
Moscovo intensificou os ataques à Ucrânia desde que Kiev iniciou uma incursão surpresa na região russa de Kursk no mês passado, ocupando centenas de quilómetros quadrados.
A cidade ocidental da Ucrânia, a quase 1.000 km da frente de combate, tinha sido relativamente poupada, em comparação com outros locais do leste, sul e centro do país.
Nesse dia, outro bombardeamento em Kryvyi Rih, cidade natal do Presidente Zelensky, deixou seis feridos. O chefe de Estado denunciou «ataques terroristas russos» e voltou a pedir que os países ocidentais disponibilizem mais recursos militares a Kiev para «acabar com o terror».
Um pedido que coincidiu, no campo político, com pedidos de demissão de vários ministros ucranianos, incluindo o chefe da diplomacia, Dmytro Kuleba, no cargo desde 2020 e já substituído pelo seu adjunto, Andriy Sybiga.
O parlamento ucraniano aprovou a demissão, numa decisão tomada após uma reunião entre legisladores e Zelensky, que justificou as mudanças alegando que o país precisa de «energia nova» após dois anos e meio de invasão russa.
A Rússia intensificou os ataques em larga escala, visando as infraestruturas de energia da Ucrânia ou cidades distantes da frente de combate. Na terça-feira, pelo menos 53 pessoas morreram e quase 300 ficaram feridas num ataque com dois mísseis balísticos Iskander-M que teve como alvo um instituto militar em Poltava.
Apoio norte-americano
O Presidente dos EUA reafirmou o apoio norte-americano à Ucrânia, condenando o «deplorável ataque nos termos mais fortes possíveis». Joe Biden afirmou que «os Estados Unidos vão continuar a apoiar a Ucrânia, incluindo o fornecimento dos sistemas de defesa aérea e as capacidades que necessitam para proteger o seu país».
A agressão «é uma lembrança trágica das tentativas contínuas e flagrantes» do Presidente russo, Vladimir Putin, «de quebrar a vontade de um povo livre». Mas, sublinhou Biden, «durante dois anos e meio, o povo da Ucrânia não cedeu» e «não se enganem: a Rússia não vai ganhar esta guerra».
Só que o líder russo continua empenhado na ofensiva e reiterou que a conquista do Donbass ucraniano é a sua «prioridade número um».
Putin comemorou no início da semana a aceleração do avanço de seu Exército no leste da Ucrânia, prova, segundo ele, de que a ofensiva ucraniana em Kursk está condenada.
As principais autoridades militares russas têm tentado minimizar a importância desta ofensiva, mas Putin garantiu que «tratará» dos soldados ucranianos «que tentam desestabilizar a situação nos territórios fronteiriços como um todo».
Durante um encontro com estudantes na Sibéria, ressalvou que a Ucrânia «não alcançou a principal tarefa que se propôs: parar a ofensiva [russa] no Donbass» e que a captura total desta região, que inclui as regiões ucranianas de Donetsk e Luhansk, é uma das prioridades da ofensiva de Moscovo. Putin disse estar «certo» de que a ofensiva em Kursk «fracassará».
Com a sua operação surpresa, o Exército ucraniano ocupou centenas de quilómetros quadrados e dezenas de localidades em Kursk. Kiev afirmou que a operação procurava, entre outras finalidades, forçar a Rússia a redistribuir as suas forças envolvidas na ofensiva no leste da Ucrânia e a enviar tropas para Kursk.
Um objetivo que parece ter falhado, uma vez que o Exército russo acelerou o seu avanço no leste ucraniano e anunciou quase diariamente a captura de novas cidades. Segundo dados do Instituto para Estudos de Guerra (ISW, na sigla inglesa, as tropas russas avançaram 477 km2 na Ucrânia em agosto, o maior aumento mensal desde outubro de 2022.
Atualmente, o Exército russo está a menos de 10 quilómetros da cidade de Pokrovsk, um importante centro logístico. O Presidente ucraniano admitiu que a situação em torno de Pokrovsk continua a ser «difícil».
Segundo Putin, em cada um dos seus ataques, as tropas conquistam muitos quilómetros quadrados, enquanto até recentemente avançavam apenas algumas centenas de metros. «Há muito tempo que não tínhamos um ritmo assim na ofensiva no Donbass», declarou o Presidente russo horas antes de chegar à Mongólia, a sua primeira viagem a um país membro do Tribunal Penal Internacional (TPI) desde a emissão, em março de 2023, da sua ordem de prisão por crimes de guerra decorrentes da invasão da Ucrânia por Moscovo, em fevereiro de 2022.
Golpe na reputação
Vladimir Putin foi recebido com honras de Estado na Mongólia, país que ignorou os apelos à detenção do Presidente russo face ao mandado do TPI. A Ucrânia pediu uma reação internacional forte.
Na véspera da visita, a Ucrânia instou a Mongólia a entregar Putin ao tribunal de Haia e a União Europeia (UE) manifestou a sua preocupação com a não execução do mandado contra Putin pelo seu papel no rapto de milhares de crianças ucranianas.
Kiev apelou a uma forte reação internacional, alertando para o facto de a Mongólia não ter cumprido o mandado de captura do TPI.
«Isto é um golpe sério para a reputação do TPI e para todo o sistema de direito internacional», disse um responsável ucraniano, acrescentando ser fundamental não permitir que a «provocação» de Putin crie um precedente. Já a «UE lamenta que a Mongólia, Estado signatário do Estatuto de Roma do TPI, não tenha cumprido as suas obrigações relacionadas ao Estatuto de executar a ordem de prisão», reforçando o «apoio inabalável ao TPI».
O mandado do TPI colocou o governo da Mongólia numa posição difícil. Após décadas de comunismo, com laços estreitos com a União Soviética, o país fez a transição para a democracia nos anos 1990 e estabeleceu relações com os EUA, o Japão e outros novos parceiros.
Mas, sem litoral, continua economicamente dependente dos seus dois vizinhos muito maiores e mais poderosos: Rússia e China. E estes dois países, que prosseguem uma política de alteração da ordem internacional, exercem atração a este movimento por parte de outras potências.
Exemplo disso é a Turquia, que esta semana apresentou de forma oficial a sua candidatura à adesão ao grupo dos BRICS, aliança económica formada ao início pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. A organização, que defende uma refundação das instituições internacionais, conta atualmente com um total de dez países-membros.
A concretizar-se, a Turquia poderia ser o primeiro país da NATO a entrar nesta organização, apresentada frequentemente como uma alternativa ao G7 (Alemanha, Canadá, EUA, França, Itália, Japão e Reino Unido), o que suscita reservas por parte dos parceiros ocidentais de Ancara.
O Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, já tinha afirmado que pretende redesenhar o papel do seu país na cena internacional. A Turquia, que atravessa uma grave crise financeira e enfrenta uma inflação de cerca de 52%, quer ser menos dependente da UE e dos EUA. Apesar de a UE ser um dos principais parceiros comerciais da Turquia, a adesão do país ao grupo dos 27 está bloqueada há anos. Por outro lado, o mal-estar entre Ancara e Washington está cada vez mais patente.
Corrida à Casa Branca
Os EUA veem com maus olhos as relações entre a Turquia e Moscovo, em contexto de conflito na Ucrânia, sendo que Ancara condena o apoio americano e europeu a Israel, à luz da guerra em Gaza.
Muito do que poderá vir a ser uma alteração da ordem internacional depende do resultado da eleições norte-americanas em novembro. Neste contexto, o Presidente russo sinalizou ontem o seu apoio à candidatura de Kamala Harris à Casa Branca, um dia depois de Washington ter acusado Moscovo de interferência nas eleições.
Joe Biden, «recomendou aos seus eleitores que apoiem a senhora Harris», portanto a Rússia «também a apoia», afirmou Putin. «Além disso, [Kamala Harris] tem um riso tão expressivo e contagioso», ironizou.
O chefe de Estado russo indicou que o adversário republicano nas presidenciais norte-americanas, Donald Trump, que foi Presidente entre 2017 e 2021, impôs «mais sanções à Rússia do que qualquer outro presidente». Kamala Harris «talvez não faça esse tipo de coisas», referiu.
As autoridades dos EUA impuseram mais sanções à cadeia russa RT, argumentando que houve tentativas de ingerência da Rússia nas presidenciais de 3 de novembro de 2020, sem especificar se foi a favor da candidatura republicana ou democrata. O procurador-geral norte-americano, Merrick Garland, afirmou que na análise dos serviços de informações, «as preferências da Rússia não mudaram em relação à última eleição», sugerindo que a Rússia terá procurado favorecer Donald Trump.
Trump, esse, diz ter planos «muito precisos» para pôr fim à guerra na Ucrânia, mas que só os revelará se ganhar. «Se eu vencer, como Presidente eleito, farei com que se conclua um acordo; garantido. Esta é uma guerra que não deveria ter ocorrido», disse. «Tenho um plano muito preciso para parar a Ucrânia e a Rússia. E tenho uma certa ideia — talvez não um plano, mas sim uma ideia — para a China», acrescentou, a menos de dois meses das eleições.
Campanha de influência
A propósito das eleições, após ter detido dois cidadãos russos, o FBI terá descoberto um outro plano do Kremlin para manipular políticos, empresários, jornalistas e outros influenciadores alemães, franceses, italianos e britânicos de forma a influenciar o escrutínio.
O plano visava «semear a divisão, desacreditar a América e minar o apoio à Ucrânia, de acordo com uma série de documentos russos, memorandos e atas de reuniões de guerra psicológica russas», lê-se num artigo do Politico. O dossiê de 277 páginas terá sido delineado pela Social Design Agency, que atua sob as ordens do vice-chefe de gabinete de Putin, Sergey Kiriyenko.
De acordo com o FBI, o plano seria difundir publicações e comentários nas redes sociais, de modo a «provocar no público reações racionais e emocionais».
Os domínios detidos pelos dois cidadãos russos «incluíam falsificações da Reuters, Der Spiegel, Bild, Le Monde, Le Parisien, Welt, FAZ, Süddeutsche Zeitung, Delfi e outros, e foram pagos com criptomoedas».
As autoridades norte-americanas afirmam que a «equipa russa de operações psicológicas identificou a Alemanha como um alvo particularmente vulnerável à influência russa», sendo preciso «desacreditar os EUA, a Grã-Bretanha e a NATO e, em segundo lugar», convencer os alemães a se oporem à «política ineficiente de sanções».
O documento salienta mesmo que o objetivo era «desestabilizar a situação social» na França e na Alemanha «espalhando narrativas falsas, vídeos, documentos e gravações de conversas telefónicas falsas, comentários nas redes sociais e citações falsas e reais de influenciadores».