Quando éramos meninos a ria transformava-se no outro lado do mar. De manhã percorríamos as dunas e as areias infinitas da praia da Barra até à Costa Nova, um tempo em que ninguém procurava ainda derreter ao sol, como depois se tornou moda. De tarde transferíamo-nos para a faixa de lodo onde procurávamos caranguejos e sentíamos uma sensação de doçura de águas emolientes que prometia o rio Águeda para Setembro.
A ria. Ah! A ria. Foz do Vouga, de Mira a Ovar, 45 quilómetros de comprimento com um máximo de onze de largura no seu canal mais largo, um paraíso de águas que se prolonga em labirintos nos quais se perdem os pássaros. Um cheiro a salsugem, as figuras geométricas das salinas. As pirâmides brancas de sal já desapareceram quase por completo. Mas o moliço ainda se acumula no que sobra de lugar para ele. A pouco e pouco o segredo tem sido desvendado. À frente do Rossio, hoje sem as palmeiras que lhe davam o toque africano, desfilam os mercantéis (que muitos tomam por moliceiros) carregados de turistas, de fora e de dentro. Os sítios de pousio foram surgindo, aqui e ali, disponíveis para quem procura ostras ou navalhas, camarões temperados com salicórnia, peixes de todas as espécies que vão à mesa com mais ou menos jeito, com mais requinte ou menos requinte, nesse aspecto a Costa Nova vence a Barra com o_Clube de Vela, o Duna do Meio (que fica a meio, pois então), o Dori, o Praia do Tubarão ou o Dom_Fernando. Há em todos os momentos desta viagem diária que é minha ano após ano após ano, desde que nasci, a frescura recorrente do vento norte que se levanta, de repente, a assustar veraneantes que julgam que o_Algarve é o país todo. O farol já não tem ronca para avisar dos perigos do nevoeiro, reduziu-se a um apito indigno dos seus 62 metros de altura. Mas, na esplanada do_Café_Farol continuam a beber-se os melhores finos do mundo: ou será que sou eu que os saboreio assim impregnado de saudades de ter menos 45 anos dos que tenho agora? Como serpentes, os dedos da ria percorrem as Gafanhas. Às vezes um silêncio quase absoluto. E o grito aflito de uma gaivota que acaba por o quebrar.
Os dedos da ria
Aveiro continua a ser das cidades mais bem conservadas de Portugal, fugindo à voracidade do betão, mesmo apesar de as últimas intervenções terem assassinado as árvores da histórica Avenida Lourenço Peixinho e derrubado as palmeiras do Rossio. Toda a cidade se abre à intimidade dos dedos da ria, essa mistura de mar e rio que se prolonga a perder de vista para quem quer ir ao seu encontro. Os flamingos equilibram-se num pé só. São professores de um equilíbrio das águas que não se agitam se não ao passar de um barco mais volumoso. A quietude tem cor: azul-sossego. Há uma brisa a soprar nuvens para longe nesta tarde de Setembro no fim em que escrevo. Dizem que a chuva está a caminho. Talvez por isso já não se vislumbrem os contrafortes do Caramulo.