Municipalizar a Segurança?

O que se espera das Polícias Municipais é que retirem encargos e ónus às Forças de Segurança que estas têm assumido e que devem ser assumidas pelas primeiras

Muito se tem falado nas últimas semanas sobre o reforço de poderes das Polícias Municipais, designadamente a necessidade de as vestir com poderes de órgãos de polícia criminal sob o pretexto de ter uma carência securitária que seria preenchida caso esta mudança de paradigma legal viesse a ver a luz do dia. Foram vários os interlocutores e vozes a falar sobre o assunto, uns manifestamente contra, outros (alguns) a apoiarem a ideia. Aliás, recentemente a Assembleia Municipal de Lisboa aprovou uma deliberação cujo objeto é o robustecimento da Polícia Municipal de Lisboa com “acrescidas funções complementares nas comunidades locais e não meras forças subsidiárias com funções essencialmente administrativas”.

Não querendo fazer trocadilhos semânticos, a essência do papel de qualquer Polícia Municipal é, em termos originários, como Polícia Administrativa com poderes específicos, com poderes de autoridade legalmente atribuídos, contribuir grosso modo para a fiscalização do cumprimento de leis e regulamentos que versem sobre matérias e atribuições legais das autarquias, isto no plano originário, reservando-lhe ainda, num plano supletivo, entre outras, a vigilância de espaços públicos e de transportes públicos, em direta coordenação com as forças de segurança, isto para que não se sobreponham esforços e recursos de forma tacanha e pouco orientada, designadamente visando locais críticos asfixiados securitariamente pela necessidade de ver uma farda na sua rua ou seu bairro. Ora, isto é tudo menos pouco quando queremos passar a ideia de que as Polícias Municipais estão folgadas e precisam de mais poderes para gerar o tão desejado sentimento de segurança, ainda para mais quando elas desempenham, nos termos da lei, uma função de complementaridade à atividade de segurança pública, essa sim, prima facie, encabeçada pelo Estado central, em Portugal e em qualquer outro país.

O berço da criação das Polícias Municipais, e não foi só cá, residiu na necessidade das autarquias estenderem o seu braço de autoridade no território, assegurando maior efetividade no plano da fiscalização camarária, mas poderem ser um importante aliado das forças de segurança, não as substituindo, mas sim auxiliando em tarefas diversas que, até à sua existência, eram exclusivamente assumidas por estas, ocupando-as, sem necessidade, com tarefas eminentemente próprias de uma polícia administrativa. É por isso que a Lei de Segurança Interna não as esquece, integrando-as num sistema [complexo] de produtores de segurança.

Então pergunta-se?

  • Ter as Polícias Municipais a assumir funções de órgão de polícia criminal, entenda-se, a deter criminosos, seria, como alguns proclamam, a bala de prata para erradicar o problema [aparente] do aumento da insegurança? Vamos juntar algumas dezenas de Polícias Municipais a um sistema de investigação criminal, já de si confuso, por contar com mais de 20 entidades com esses poderes? Se a coordenação é, já hoje difícil, como seria se juntássemos ao ramalhete mais umas dezenas?
  • E que papel passaria o Estado Central se, a este nível, tivéssemos cada autarquia a definir as suas próprias políticas de segurança, municipalizando-se, assim, a segurança pública?
  • Que ganhos teria então a PSP em continuar a alimentar as fileiras das Polícias Municipais de Lisboa e Porto com os seus Polícias se, no fim do dia, as missões de uns e de outros se confundem, mudando apenas a farda, mantendo até o crachá? Passaríamos a ter mini PSP sob a égide hierárquica das autarquias para fazer o que as Forças de Segurança não conseguem fazer (por não serem dotadas dos recursos necessários), ou pelo menos querem fazer crer?
  • Será que o robustecimento numérico das Polícias Municipais permitiria aos presidentes apregoar a tão aclamada segurança do município, quando esses mesmos polícias saíram, no caso de Lisboa e Porto, da PSP que policiava o seu município? Se os polícias estiverem na PSP há falta de segurança, mas se estiverem na disponibilidade do Presidente da Câmara já temos segurança. Estranha esta forma de (parecer) vender segurança! Importa ainda recordar que na génese os regimes especiais das Polícias Municipais do Porto e Lisboa eram transitórias, ou seja, que progressivamente transitariam para o regime comum como as demais. Porque não revisitar a ideia tendo em conta que o recrutamento para a PSP tem vindo a tornar-se cada vez mais difícil, possibilitando assim o retorno de quase 600 polícias à PSP que os receberia hoje, como pão para a boca, face às carências que tem.

Vamos ser claros, o trabalho das Polícias Municipais é fundamental à prossecução da segurança, para e pelas nossas comunidades, e para isso é importante que não se promovam alterações legislativas que criem ainda mais entropias, redundâncias e dispêndio de recursos, sobretudo quando eles são cada vez mais casos, e fazendo-o à guisa de uma alegada impossibilidade jurídica. As Polícias Municipais perante um crime presenciado em flagrante delito podem deter e conduzir o suspeito junto das instalações do órgão de polícia criminal para que ele possa, não só sujeitar o criminoso às formalidades legais mas incidir sobre ele atos e diligências complementares de recolha de prova. O que se espera das Polícias Municipais é que retirem encargos e ónus às Forças de Segurança que estas têm assumido e que devem ser assumidas pelas primeiras. Falamos dos milhares de acidentes que ocorrem nas vias de trânsito municipais, falamos das milhares de ocorrências de ruído incomodativo e que perturba a tranquilidade de milhares de munícipes, ou então as milhares de aberturas de porta onde a PSP é chamada porque as pessoas se esqueceram ou perderam a chave. Estamos a falar de milhares de horas desperdiçadas pela PSP que poderiam, e deveriam, ser rentabilizadas e otimizadas na prossecução do seu principal desígnio, a promoção da segurança através de uma forte presença policial no território, com ampla visibilidade e ampla capacidade de resposta aos problemas securitários das nossas cidades.

Não caiamos em ilusões, o robustecimento da Polícia Municipal na prossecução total das suas competências é a única forma de robustecermos, numa lógica mutualista, a capacidade de resposta das Forças de Segurança, e em especial, da PSP, responsável pela segurança pública de todas as grandes áreas urbanas deste país. E nesse domínio as Polícias Municipais, em especial as de Lisboa e Porto, compostas exclusivamente por Polícias da PSP, têm um importante papel a desempenhar, aliviando o peso, já de si insuportável, que a PSP tem assumido. Mas nem por isso é de somenos vermos que a colaboração é próxima, é coordenada e está orientada, não para a espuma do dia, mas sim para os anseios das pessoas, as de Santa Maria Maior, as de Arroios, as da Ribeira, as de Ramalde, entre outras, onde estas esperam ver Polícias, sejam eles da PSP sejam eles da Polícia Municipal.

Fala-se tanto de uma estratégia integrada de segurança interna, optimizada, eficiente, tecnológica e orientada, não serão certamente zénites observados pela lente de um microscópio do século passado que contribuirão para a sua justa composição.   

Presidente do Sindicato Nacional dos Oficiais de Polícia