Em Sheppey, última peça teatral de Somerset Maugham, há um antigo conto oriental: Encontro marcado em Samarra. Ei-lo em jeito breve: um rico mercador de Bagdade mandou um seu criado ao mercado comprar provisões e este, no meio da multidão, ao sentir-se empurrado por uma estranha figura feminina voltou para casa apavorado, dizendo-se terrivelmente ameaçado pela Morte; pediu um cavalo para fugir para longe, concretamente iria para Samarra; depois da fuga do servo, tão veloz como o vento, o mercador quis confirmar o dramático episódio e foi ao mercado onde, de facto, encontrou a figura da Morte a quem perguntou porque ameaçara o seu servo; a Morte respondeu: «Não o ameacei, fiquei foi espantada ao vê-lo aqui, pois tenho encontro com ele marcado esta noite para Samarra». A submissão ao medo não é bom conselho!
Desde há cerca de dois séculos e meio quando Portugal iniciou o regresso do mar, apavorado por se ver pouco europeu, pusemo-nos a caminho de Samarra, ou seja, aquilo que as nossas difusas elites tomam como atraso sistemático da modernidade é bem capaz de ser, ao invés, o trágico terror de não nos reconhecermos no melhor que somos. A nossa grandeza começou por nos percebermos independentes de Castela e por aí, soltos da Europa, saímos para nos conhecermos fora, assim hoje os nossos emigrantes que no estrangeiro sabem quanto amam Portugal. Eis outra nossa virtude sublime: reganhamos vida matando saudades! Abraçámos o mundo para nos vermos de longe, sem o mar nada somos. E, porém, esta marca ainda hoje indelével garante-nos a singularidade, ou seja, só nos serve estarmos na Europa levando connosco a herança das Descobertas. Os que negam isto são loucos ou vis, sem o nosso passado não há futuro.
Há dois séculos e meio o Marquês de Pombal, notável tirano do nosso único período monárquico absolutista, decapitou a aristocracia militar, anulou a nossa raiz aristotélica na Universidade, recusou a cultura portuguesa genuína, tudo sob a capa da modernização. À volta de 1770, apogeu pombalino, o Marquês, ele mesmo um estrangeirado, ampliou o influxo europeu impondo um utilitarismo pragmático em vários domínios mormente no ensino. Não há mal no estrangeiro a não ser se nele nos perdermos e é isso que fazemos desde o final do século XVIII. Desde aí, Portugal foge de si mesmo. Loucura ou vileza?
A partir do pombalismo sucedem-se crises de identidade rompendo ciclos de duas gerações, grosso modo, de 50 anos: após o iluminismo pombalino que expulsou os Jesuítas, paradoxalmente o clero mais culto, sucedeu-se a rutura da revolução liberal de 1820 e a sequente guerra civil até desembocar nas Conferências do Casino de 1871, rodopio acusatório de intelectuais Vencidos da Vida, antecâmara republicana; a República até 1926 marcou o desvario de gente agitada sem modo saudável nem meta consistente, até o Estado Novo dar repouso e saúde a um corpo social cansado o qual, tanto hibernou que foi acordado de supetão no previsível Abril de 1974. Desde finais do século XVIII idolatramos modismos espúrios e as elites desgovernantes mostram amiúde que o país não lhes sossega as ambições, ao invés dos emigrantes fogem para o estrangeiro ufanos e regalados, exemplos recentes não faltam. A cada 50 anos dá-se-nos um estertor febril na mesma raiz: somos uns atrasados, tão atrás até ficarmos cauda da Europa. Saímos e regressamos porque a saudade que matamos é ainda quem nos salva. Não nos basta Camões cantar-nos cabeça da Europa ou Pessoa o rosto com que ela fita. Vão-nos chamando sucessivamente burros, zurzindo e zurrando.
Em 2024, 50 anos depois de 1974, o nosso destino continua nos mercados, os da banca e pior, os das ideias espúrias. Não tarda há estertor! Quando teremos a coragem de olhar a morte e perguntar-lhe o que quer de nós? Só aí teremos vida a sério. Ou afinal, fugimos de novo para Samarra tão velozes quanto o vento? Para Samarra ou para a federalista Bruxelas? A sorte é irmos de burro, devagar e escoiceando.