Esta semana um vídeo de dois condutores que entraram em desacatos, possivelmente devido a desentendimentos no trânsito, correu as redes sociais. Não sabemos bem o que aconteceu, mas todos nós já presenciámos ou tivemos conhecimento de situações destas em maior ou menor grau.
Muitos condutores quando entram no carro tornam-se uma espécie de bomba relógio, prestes a explodir. Se olharmos para a sociedade que nos rodeia, para as notícias que nos chegam, para as pessoas que nos atendem, com quem falamos e com quem nos cruzamos diariamente percebemos que muitas estão exaustas, tristes, sem paciência e desanimadas. Outras estão irritadas, revoltadas, não são nada simpáticas e vão-se zangando aos poucos, aqui e ali, com um alvo indefinido.
Quando entramos no carro temos uma série de alvos perfeitos e mais que justificados em quem descarregar toda essa pressão, injustiça, sofrimento ou zanga. Todos aqueles sentimentos intensos e pouco pensados que tentamos encafuar na nossa cave emocional e que às vezes têm de ver a luz do dia.
Somos, neste momento, uma sociedade pouco pensante, no sentido de parar pouco para refletir e elaborar aquilo que nos causa tristeza, revolta ou zanga, uma sociedade que passa facilmente ao ato. Acumulamos uma série de sentimentos não elaborados que nos consomem ou destroem aos poucos e que, por vezes, vão sendo despejados de forma automática e irracional, em situações que em nada estão relacionadas com a sua causa. Como uma purga que vai vazando as nossas toxinas emocionais e os nossos conflitos internos. Por exemplo, é bem mais fácil e terá à partida muito menos consequências dar uma apitadela e protestar com o carro da frente – que ainda por cima é só um carro, com tudo o que pode representar no nosso imaginário, porque nem vemos o condutor – do que com o nosso chefe ou cônjuge. Será, à partida, uma descarga com muito menos consequências embora tome, não raras vezes, dimensões absolutamente desproporcionais.
Por outro lado, estes desacatos trazem ao de cima as nossas maiores fragilidades, as nossas inseguranças. E são elas que vamos defender de formas, às vezes, um pouco primárias. Quem gosta de ser ultrapassado na fila para a Ponte 25 de Abril por algum ‘Xico esperto’ que não quis esperar? É quase como receber um atestado de imbecilidade por ter estado meia hora na fila. Quem é que aceita esse atestado de bom grado? Quem consegue manter a calma em situações em que se sente ultrapassado e humilhado, em que, irrefletidamente, sente atacada a sua virilidade, o seu ego, e entra numa espécie de duelo?
Há situações absolutamente enervantes, em que dificilmente a pessoa mais calma do mundo não se irritaria. Felizmente ainda somos humanos cheios de emoções, sentimentos e espontaneidade. Mas há também muitas outras em que a nossa reação não é a resposta ao comportamento em si, mas àquilo que ele nos faz sentir. Em que nos sentimos absolutamente atacados e exacerbamos as atitudes dos outros, que são recebidas como uma investida contra as nossas capacidades e dignidade, feita com maldade para nos irritar e mostrar a sua superioridade. Ou seja, muitas vezes somos inseguros, pouco racionais, tolerantes e compreensivos.
Diria que a maioria das questões surge de mal entendidos. Da incapacidade de percebermos que embora haja carros iguais todas as pessoas são diferentes e têm diferentes formas de condução ou que se podem ter enganado ou distraído. E, acima de tudo, que possivelmente também já fizemos o mesmo uma série de vezes, com a diferença que nessa altura estávamos cheios de razão ou nem demos conta.
As situações no trânsito são verdadeiros estudos de caso. De sentimentos, defesas e reações desencadeadas de forma automática e não pensada. Que são um reflexo nosso e têm uma relação direta com a nossa forma de estar com a vida, com os outros e com nós próprios. Com a relação com o nosso mundo interior, que é muito esquecido no meio de tantas tarefas e exigências, deixando-nos mais frágeis, suscetíveis, atentos e reativos aos supostos ataques dos outros. Que na maioria das vezes não têm nada a ver connosco.