Há casamentos (ou acasalamentos) que se revelam desastrosos. Umas vezes para os próprios, não tão poucas vezes para terceiros.
Vem isto a propósito da ‘onda patriótica’ que varreu grande parte dos media nacionais, nas semanas anteriores à atribuição dos Prémios Nobel de 2024, a propósito do putativo «superior defensor da paz», «combatente solitário» e o «melhor de entre nós» (de acordo com o venerando Chefe de Estado), António Guterres.
Existiu na História contemporânea um francês, de seu nome Joseph Avenol, que presidiu ao Secretariado da Sociedade das Nações Unidas entre 1933 e 1940. Este bom senhor, inspetor de finanças de aparente prestígio na sua terra, acabou Secretário-geral do Organismo criado no final da I Guerra Mundial, com objetivos semelhantes ou precursores do que viriam a ser os da ONU, criada depois de terminada a II Guerra Mundial.
Não ficou para a História o dito senhor, eleito por unanimidade (como o nosso conterrâneo para o seu segundo mandato), lendo-se hoje que até os seus colaboradores mais próximos criticavam o seu alinhamento com a França e a Itália, a ponto de nunca ter sido discutida a invasão/ocupação da Etiópia pela Itália em 1935/36 (como contrapartida da Itália permanecer na Sociedade das Nações), de ter convidado a Finlândia a apresentar uma queixa falsa contra a URSS (que os finlandeses recusaram) e, finalmente, de ter dirigido uma carta oficial de saudações ao Marechal Pétain, saudando o Regime de Vichy e vendo na ocupação alemã, já em 1940, uma verdadeira semente de equilíbrio no Continente.
Longe de ser um defensor de uma política de firmeza, jogou sempre e sistematicamente no apaziguamento entre as Nações, mesmo quando as botas marchavam, em Viena, em 1938, e nada se lhe ouviu, limitando-se pelo contrário a gerir o silêncio da organização a que presidia.
Perante a manifesta passividade da França, Hitler recusou publicamente o conteúdo do Tratado de Versalhes logo em 1936 e ocupou a Renânia, reclamando em 1937 a anexação do corredor de Dantzig, hoje Gdansk, na Polónia.
E qual o pretexto disto tudo? Os termos económica e financeiramente excessivos e manifestamente humilhantes para o que fora o Grande Império Austro-Húngaro, que os vencedores da I Guerra Mundial impuseram à Alemanha, já que a Áustria, na ‘partilha voraz’ imposta pelo Tratado de Versalhes, ficou reduzida a uma expressão territorial mínima que levou a que um ministro francês tenha dito, sarcasticamente, no final da Conferência de Paris (em que a Alemanha não foi autorizada a participar): «E a Áustria… fica… com este bocadinho restante…».
O Tratado de Versalhes entrou em vigor em Janeiro de 1920, e foi, efetivamente, uma humilhação ultrajante que toldou os anos seguintes na Europa e empurrou o povo alemão para uma boa receção a um líder capaz de desagravar a honra e a história do país e a livrá-lo – a bem ou a mal – da indigência e quase escravidão a que obrigava uma reparação de guerra aos vencedores de 132 mil milhões (132 seguidos de nove zeros!) de marcos de ouro.
O Sr. Joseph Avenol, se se tivesse podido inspirar então no ‘melhor de nós todos’ e tivesse a cobertura mediática que este último tem tido, teria dito com um ar compungido que «os exageros do Chanceler Hitler, o regime nazi, as guerras, as mentiras e as ocupações pela força, a quebra de compromissos internacionais, as barbaridades sobre civis e militares e, no final, a invasão da Polónia em 1939… NÃO SURGIRAM DO NADA». (Guterres dixit, 20 dias depois do massacre perpetrado pelo Hamas). São resultado, diria ainda o Sr. Avenol – desculpabilizando os pobres e antes mal tratados líderes do regime nacional-socialista – do maléfico e iníquo Tratado de Versalhes.
Mas para completar os méritos do ‘nosso melhor’ ao Nobel da Paz, as suas intervenções focam-se sistematicamente na acusação de crimes de guerra (quase de um só lado… aliás), tendo por uma vez afirmado que ‘os maus’ (expressão minha) estão a ultrapassar todas as ‘regras (!) da guerra’!
Mas alguém acredita que durante uma guerra feroz um chefe máximo vislumbra ‘linhas vermelhas’ (como agora se diz por cá…) se delas não resultarem cataclismos e derrotas para quem as ultrapassa?
A História que nos contam ‘tem mostrado’ que a razão está do lado dos vencedores:
– No início da II Guerra Mundial os alvos da aviação eram, direta ou indiretamente, militares. Vias de comunicação, portos, fábricas, depósitos de combustíveis, quartéis, aeroportos, etc.;
– Em maio de 1940 o rapidíssimo avanço alemão viu-se inesperadamente parado pela dura e bem organizada defesa de Roterdão;
– Em 14 desse mesmo mês o general chefe das forças sitiantes apresentou um ultimato ao coronel comandante das forças da então Holanda, exigindo a rendição incondicional, sob pena de toda a cidade ser bombardeada;
– Não houve rendição nos termos do ultimato e a aviação alemã destruiu sistematicamente grande parte da cidade, fosse ou não militarmente estratégica. No dia seguinte o exército holandês capitulou;
– No dia 15 de maio, sem objetivo militar concreto que não fosse o de desmoralizar o inimigo, a RAF fez o seu primeiro bombardeamento de uma cidade alemã (Dortmund) e com estes motivos os beligerantes declararam-se desligados do compromisso internacional que tinham feito em 1939, no sentido de ambas as partes se limitarem a bombardear alvos militares;
– Primeiro a RAF e a aviação naval francesa foram a Berlim (bombardeamentos quase ‘simbólicos’ em junho de 1940) e em setembro do mesmo ano a aviação alemã inicia a denominada Blitzkrieg (guerra relâmpago), em que durante nove meses consecutivos, Londres e as principais cidades britânicas foram atacadas na convicção, alemã, de que o Reino Unido se renderia;
– Ou seja, quando os americanos entraram no teatro europeu da guerra, ‘regras’… nenhumas!
– Ao comando do esquadrão de bombardeiros da RAF subiu um piloto da I Guerra Mundial, com a alcunha do ‘Bomber’ Harris (o seu nome era Arthur Harris);
– Este esquadrão bombardeou e desfigurou (com bombas de fósforo) Colónia, em Maio de 1942, bombardeou Hamburgo em 1943, onde foram derretidos ou cozidos (literalmente) com explosivos e bombas incendiárias os respetivos habitantes, e deixou uma marca de inesquecível ignomínia em Dresden em 1945.
– Em Hamburgo (em seis dias e noites consecutivas), terão resultado 46 mil mortos civis; em Dresden, atacada por mais de 520 aeronaves, contaram-se 37 mil mortos identificados e dezenas de milhares inidentificáveis;
– Esta brutalidade sem limites levou Churchill a uma tomada de posição contra estes bombardeamentos (principalmente) destinados a aterrorizar populações de um país já em vias de perder a guerra, mas o ‘sistema’ protegeu e condecorou a Marechal o ‘Bomber’ Harris, que morreu baronete, descansado e quase centenário, em 1984;
– A Guerra não terminou sem uma carnificina ainda maior, praticada pela Força Aérea dos EUA, com o bombardeamento de Tóquio (verdadeira cidade, ainda tradicional, de papel e madeira) em março de 1945, onde terão morrido entre 75 mil e 200 mil pessoas (o enorme intervalo ficou a dever-se à incapacidade de identificar e separar corpos)!
– Neste tema das ‘regras da guerra’ e dos crimes de que ambas as partes se acusam até uma delas se render, convém lembrar ainda as bombas atómicas largadas em Hiroxima e Nagasáqui, em 6 e 9 de agosto de 1945, respetivamente, que causaram de imediato cerca de 250 mil mortos e um número posterior incontável de doenças, deformidades, queimaduras e mortes, nunca verdadeiramente contabilizadas.
Sejam pois honestos os escribas corporativos e nacionalistas pacóvios de muito má formação que pediam e anunciavam como ‘quase certo’ o atual Secretário-geral da ONU para Prémio Nobel da ‘Paz’!!!
Pese embora alguns antigos laureados tenham tido também méritos duvidosos, não há dúvida de que a Nihon Hidankyo, que (ainda) junta os sobreviventes das bombas atómicas, tem milhares de melhores razões para receber o Prémio e o usar para um fim digno, inequívoco e maior: a Paz, sem aspas, e para todos por igual.
Duvido que vinte dias depois destas barbaridades, algum político decente tivesse o desplante de vir dizer que as bombas atómicas que tingiram a população civil japonesa daquelas cidades ‘NÃO SURGIRAM DO NADA’, antes encontravam uma certa ‘compreensão’ no ataque traiçoeiro do Japão, quatro anos antes, à esquadra americana estacionada em Pearl Harbour.
Tudo isto para expressar o meu espanto ao nosso compatriota Guterres que, no seu cargo, desculpa ou ‘compreende’ a barbárie se ela tiver origens históricas ou noutras formas prévias de violência (que ele considere justas).
O Sr. Joseph Avenol morreu descansado na Suíça em 1952, e ninguém dele se lembra hoje, deixando um legado letal para a Sociedade das Nações, logo extinta em 1940. Para o atual Secretário-geral das Nações Unidas esperava-se um futuro mais promissor do que aquele que tem vindo a preparar, para a organização que lidera desde 2017, com a condução alarmista e precipitada da questão das alterações climáticas, com o silêncio e apadrinhamento de uma cultura internacional woke que o seu passado de militante católico não podia fazer prever, com a passividade perante o grupo russófilo, com a não indignação perante a inutilidade dos capacetes azuis no Líbano (que deixaram criar um exército mais poderoso que o do próprio governo do Líbano) e ameaçando Israel com ‘acusações de crimes de guerra’ por os querer tirar de lá a tiro.
Enfim… Guterres, como o Sr. Avenol, procurando seraficamente a alegria para todos, com intervenções vazias… à custa dos que tiverem menos poder mediático…