Há muitos anos, quando Ruben Amorim era ainda jogador de futebol, escrevi no jornal Record um texto com o título Rubi Amorim.
Sim, considerava Ruben Amorim um rubi. Também simpatizava com ele, pois tinha-se revelado no Belenenses, o meu clube do coração, daqui transitando para o Benfica. E o então treinador deste clube, Quique Flores, dizia que a equipa era uma com Amorim e outra sem ele. Ruben Amorim fazia a diferença.
Não era propriamente um virtuoso. Não era um homem que tivesse nascido para jogar futebol, com uma habilidade transbordante. Era um bom jogador – mas que jogava mais com a cabeça do que com os pés. Um jogador inteligente, que não resolvia jogos mas percebia os momentos do jogo e o que devia fazer em cada um deles.
Depois, Jorge Jesus substituiu Quique Flores como treinador do Benfica, e Amorim começou a apagar-se, até se eclipsar. Deixou de jogar. O Benfica tinha uma grande equipa, com os argentinos Aimar, Di María e Saviola, e não havia espaço para Amorim. Protestava, insistia com Jesus para jogar, mas este respondia-lhe: «Quem é que queres que eu tire para tu jogares? Queres que tire o Aimar para te meter a ti?».
Como jogador, Amorim desapareceu. Até que inesperadamente o vi surgir, mas noutra pele: a de treinador. E apesar de muito jovem, já treinador principal de um grande clube: o Sporting de Braga.
A surpresa ainda se tornou maior quando, após fazer apenas meia dúzia de jogos pelo Braga, foi anunciada a sua transferência para o Sporting – pagando este 10 milhões de euros pelo passe.
Dez milhões?
Eu nunca tinha ouvido falar na ‘compra’ de treinadores, e tudo aquilo me pareceu uma loucura. A todos os níveis. Como se compreendia o Sporting pagar tanto dinheiro por um treinador tão jovem e que ainda não tinha dado provas nenhumas?
Mas afinal era eu que estava enganado. Depois de uma entrada a meio da época, que não correu nada bem, Ruben Amorim começou a ganhar na temporada seguinte – e foi surpreendentemente campeão. O Sporting não era campeão há 18 anos, pelo que se tratava de um feito extraterrestre. Mas que se revelaria não ser fruto do acaso: três anos depois, Amorim repetiria a dose. Já ninguém podia ter dúvidas sobre a sua capacidade.
Agora, transferiu-se para um histórico clube europeu. Fê-lo a meio da época, como acontecera na sua transferência para Alvalade; e trata-se de um grande clube mas em crise, tal como sucedia com o Sporting. As circunstâncias são estranhamente semelhantes, embora o contexto seja outro: o futebol inglês não é o futebol português.
Mas Ruben Amorim é um homem com sorte. Parece que atrai a sorte. Isso ficou à vista na semana passada, quando o Sporting recebeu o Manchester City, talvez a melhor equipa do mundo. Amorim não queria fazer esse jogo, por razões óbvias: se perdesse, que era o mais provável, chegaria a Manchester com uma derrota às costas contra o rival da cidade. Não seria um bom início. Mas a sorte protegeu-o, de um modo como raramente acontece no futebol: depois de o Sporting ter sido massacrado na 1.ª parte, podendo ter sofrido 3 ou 4 golos, chegou ao intervalo empatado; e entrando na 2.ª parte de rompante, teve a felicidade de marcar 2 golos de rajada – e viu o adversário falhar um penálti que poderia ter mudado tudo.
Enfim, ao Sporting correu tudo maravilhosamente bem, ao Manchester City tudo correu desgraçadamente mal. Se voltassem a jogar outra vez, poderiam fazer um milhão de jogos que aquele resultado não se repetiria. Caiu do céu naquela noite.
E Ruben Amorim teve a honestidade e a coragem de o reconhecer. «Tivemos sorte», disse com todas as letras. E disse mais: disse que daquela vitória não se podiam extrair quaisquer conclusões, porque não tinha que ver com o futebol mas com o destino. «Tinha de ser assim» – adiantou. «Os jogadores mereciam esta festa e os adeptos mereciam esta festa». Só lhe faltou dizer: «E eu merecia esta festa de despedida».
E merecia, talvez acima de todos.
Aos 39 anos, a idade de Ronaldo, quando ainda era possível estar a jogar no relvado, já é um treinador consagrado a treinar um grande clube do mundo.
Se foi um rubi como jogador, pode ser um diamante como treinador – que o tempo continuará a lapidar, se a sorte não lhe virar as costas. A matéria-prima está lá.