“Quando fugi do país, já a Polícia me rodeava a casa”

Venâncio Mondlane, o candidato que reclama a vitória nas eleições moçambicanas, conta como fugiu do país com a mulher e a filha, já sob ameaça da Polícia. Recorda a sua juventude ligada ao rock e às artes marciais, e diz que em Portugal se identifica com a Iniciativa Liberal.

Acredita que pode levar o atual regime a ceder, com manifestações prolongadas durante meses, tal como aconteceu nas ‘primaveras árabes’, na Líbia e na Tunísia? Ou mesmo como na Revolução de Veludo, da Checoslováquia?     

Não precisamos de exemplos tão distantes. Aqui ao lado de Moçambique, no Malawi, em 2019, houve manifestações contra o resultado eleitoral das presidenciais durante dois meses – e venceram. É um bom exemplo de resistência, porque é um país de características semelhantes a Moçambique, tanto a nível socioeconómico como cultural. Por isso, sim, acredito que é possível.

Qual é a sua estratégia? Ir prolongando os protestos?

Para conseguirmos isso, temos de assegurar dois pressupostos: que o povo está do nosso lado – e isso é o mais importante – e que temos estratégia para as pessoas não esmorecerem. Ao longo do tempo, é necessário elevar o ânimo e inspirar as pessoas, mesmo quando os resultados não estejam a ser, aparentemente, alcançados a curto prazo. Depois, temos de dar o exemplo. Exemplo de coragem, de sacrifício e de risco. As pessoas acreditam mais em líderes que assumem riscos do que naqueles que não saem do seu conforto. Alguém que tenha esses ingredientes consegue manter essa chama.

O facto de estar fora de Moçambique não pode levar as pessoas a desmobilizarem?

Não tenho sentido isso. Desde 2003 que arrisco a minha vida, tenho 23 anos de experiência pública e sempre pus a minha vida em risco em defesa do povo. As pessoas conhecem a minha história – primeiro como comentador de televisão, depois como parlamentar e também como ativista social. Houve sempre um denominador comum nestas fases: esticar a corda ao máximo.

Mas não pensa voltar ao país nos tempos mais próximos?

A minha pergunta é: o que se esperava que eu fizesse? Que fosse um superman? Olhe só para a história dos líderes nacionalistas em Moçambique. O Samora Machel nasceu em Xilambene, juntou-se à Frelimo e depois passou por cinco países e acabou na Tanzânia. Joaquim Chissano andou a estudar medicina, não sei se em Paris, onde não fez nada, e também foi dar à Tanzânia. Não lutou contra o colono português em Lourenço Marques! Então? O Armando Guebuza, sim, esteve detido no tempo colonial, mas, quando saiu da prisão, fugiu. Correu vários países e foi para a Tanzânia. Ficou lá. O Presidente Filipe Nyusi era miúdo e foi lá que ele professou a Suaíle, língua que fala bem até hoje. Então, qual deles é que fez a luta contra o colono dentro do território nacional? Nenhum. Estão a exigir mais de mim do que deles próprios. Significa que me têm em boa conta (risos). Mas posso desde já dizer-lhe que, independentemente do desfecho desta crise, não vou ficar no exílio por muito mais tempo. Saí porque havia estratégias que tinha de implementar e não o podia fazer se fosse detido.

Voltando à sua estratégia. Como vai conseguir manter a mobilização das pessoas?

A única forma de mantermos uma manifestação viva é com uma estratégia, sobretudo ao nível da comunicação e também ao nível motivacional. Normalmente, a mobilização popular tem um tempo de vida muito curto e há exemplos disso na história recente. Por exemplo, hoje, a Frelimo optou por uma estratégia de contra-informação. Querem desacreditar o movimento e branquear o lado mais sinistro da atuação desproporcional da polícia ao nível da violação dos direitos humanos. A polícia tem assassinado e raptado pessoas, que já não são os manifestantes que andam na rua. Agora, têm entrado na casa das pessoas e nas residências de estudantes onde temos um fortíssimo apoio. Detêm, sequestram, matam. Temos casos de pessoas que andam desaparecidas dias e depois são encontradas na morgue. Então, para nos descredibilizarem e passarem ao contra-ataque, andaram a pagar a jovens para se infiltrarem nos protestos. Esses infiltrados bloquearam estradas, fizeram uma espécie de portagens ilegais e extorquiram as pessoas que precisavam de as transpor. Destruíram carros e foram lançando o pânico na classe média, que nós temos vindo a conquistar com as ‘paneladas’ [bater panelas à janela, como forma de protesto]. Essa classe média é muito forte nas redes sociais, escrevem e influenciam a opinião. Agora estão a queixar-se de insegurança e fala-se já que o Governo prepara o recolher obrigatório. Querem tornar as manifestações ilegais.

Mas qual é o seu plano agora?

Vou virar o feitiço contra o feiticeiro. Convoco eu o recolher obrigatório e decreto três dias de luto nacional pelas pessoas que a polícia tem sequestrado e raptado. Então, ninguém vai para a rua marchar, estamos de luto. Se alguém aparecer, só podem ser os jovens pagos pela Frelimo, porque nós estamos em casa a chorar as vítimas e à janela a bater panelas. Temos 50 exemplos de pessoas que foram mortas ou sequestradas. Vamos dá-los, com nomes e locais. E vamos pedir às pessoas que ajudem os órfãos e as viúvas que ficaram desamparados. É preciso reacender a memória do problema mais sinistro disto, e que o Governo quer ocultar, porque não aceita o facto de o povo ter decidido eleger outras pessoas para dirigir o país.

Se a Frelimo não ceder e o Tribunal Constitucional (TC) proclamar os resultados da Comissão Nacional de Eleições (CNE) de Moçambique, o que pretende fazer?

Se o TC divulgar os resultados falsos que estão na origem de todas as manifestações, está-me a fazer um grande favor. Porque, aí, já não será o Venâncio a convocar as manifestações. Aí, as manifestações passarão a ser profundamente espontâneas, inorgânicas, e vai haver focos que estarão completamente fora de controlo. Neste momento, as pessoas ainda ficam à espera de uma voz de comando que diga: vamos parar três dias agora, vamos fazer isto e aquilo. Mas a partir do momento em que o TC aprove resultados falsos, eu temo que isto se descontrole.

Portanto, o próprio Venâncio pode perder o controlo sobre a população.

Naturalmente. O risco é muito grande. Neste momento, as coisas já estão muito para além da questão eleitoral, que foi uma espécie de termómetro ou um rastilho. A pólvora já estava aí há muito tempo: há muita gente no desemprego em Moçambique e as pessoas vivem em pobreza alimentar.

Quer dizer que isto não é um problema de esquerda e direita, é um problema de pobreza e de acesso aos bens materiais?

Claro! Mas é também um problema de segurança que atinge a todos. Mesmo os que têm dinheiro estão com problemas de insegurança. E há outros problemas gravíssimos: a partidarização do próprio Estado, o investimento direto estrangeiro… Para se implantar aqui um projeto sério, tem de se subornar: são 10% para este, mais10% para aquele… Por isso, as manifestações acabaram tendo um impacto transversal, no sentido de que elas saíram do mero campo da contagem dos votos e passaram, por exemplo, para o campo dos raptos e sequestros. E, pela primeira vez, conseguiram mobilizar a comunidade menos mobilizável no nosso país, que é a de origem asiática (uma comunidade ligada ao comércio e serviços que nunca se imaginou que pudesse ir à rua e mobilizar-se, mas que, para espanto de todos, esteve três vezes a manifestar-se e até a dar apoio alimentar a quem estava nos protestos).

Por outro lado, estas manifestações também mobilizaram um grupo muito interessante que é o dos estudantes que vivem nas residências universitárias – e, para dizer a verdade, a manifestação das panelas foi iniciativa desses estudantes e nós fomos atrás. Depois, estas manifestações conseguiram englobar a classe média e a alta, que é precisamente aquela que se encontra nas zonas mais insuspeitas de apoio à Frelimo. Estou a falar de bairros de Maputo como a Coop, o Sommerschield, a famosa avenida Julius Nyerere, que simboliza o poder e o elitismo da Frelimo. Logo, podemos perceber que a questão eleitoral foi apenas um rastilho. Temos um problema de fome e de insegurança, que atinge todos, mesmo os que têm dinheiro.

Pensou alguma vez partir para a luta armada?

Nem pensar. Já tivemos muito disso. O povo está cansado e acredito que ninguém quer isso. Mas não é por incapacidade. Eu tenho potencial nessa matéria. Podem dizer que o Venâncio é um miúdo urbano, que é feminino, fofinho e não tem capacidade para liderar um movimento armado… Em 2023, quando estava a preparar a minha candidatura à presidência da Renamo, durante a pré-campanha, como não tinha capacidade financeira nem logística para andar pelo país inteiro, optei pelas teleconferências. Eu ligava pelo WhatsApp, as pessoas juntavam-se num ponto do país, montavam um ecrã e eu falava para que me pudessem conhecer e avaliar. Há uma região de Manica, Vanduzi, que tem um grande número de ex-guerrilheiros da Renamo. Numa dessas teleconferências, tive 200 oficiais a assistir. Não conheço ninguém em Moçambique que tenha feito algo igual. E eram um grupo muito específico, considerados os ‘donos’ da Renamo, porque alguns deles combateram ao lado do primeiro comandante-chefe das forças armadas da Renamo, André Matsangaissa. Esse grupo foi desmobilizado em 1992, logo após a assinatura do Acordo Geral de Paz, em Roma. Eu, miúdo, civil que sou, sem experiência militar, falei com esses veteranos. Houve gente que me tentou desacreditar, dizendo que não era possível que militares desse gabarito estivessem presentes numa sessão organizada por mim. Como resposta, pedi-lhes, noutra teleconferência, que trouxessem os cartões de desmobilizados. E eles levantaram os documentos para provarem quem eram e ainda fizeram uma carta de fidelidade, onde declaravam que estavam disponíveis para serem dirigidos por mim em qualquer tipo de missão que considerasse necessária.

Nasceu em 1974 e chegou a ser da Frelimo. Isso foi ‘herança’ familiar? (risos)

Nasci a 17 de janeiro de 1974, ano do governo de transição. Então eu costumo dizer que não fui colonizado nem pela Frelimo nem pelos portugueses. Não havia governo.

O que faziam os seus pais?

O meu pai era um aparelhista. Funcionário público da maior empresa pública de seguros do país, chegou a presidente do Conselho de Administração e era um membro destacado da Frelimo. A minha mãe era doméstica.

Que memórias tem do período pós-independência?

As minhas primeiras memórias são boas, são de quando eu tinha uns 6 anos, estávamos no início dos anos 80. Apesar do país atravessar uma grave crise económica, tenho uma memória de um país engajado num ideal patriótico muito forte. O período revolucionário marcou-me bastante e desde pequeno que sempre gostei de causas, de ter um foco. Naquela altura, tratava-se da defesa da pátria e eu identificava-me com isso. Com 7 anos, pedi aos grupos dinamizadores criados pela Frelimo (que era tudo, o partido do Estado, o Estado, o Exército…) para pertencer aos grupos de vigilância. Andávamos de noite a vigiar a zona, a ver se havia infiltrados e o que fazíamos sobretudo era mandar parar as pessoas, para ver se tinham ou não BI. Mas houve logo uma coisa que eu não compreendia e que chegou até hoje: mais de 50% da população não tem BI. Agora, imagine nos anos 80! Então, a pessoa era recolhida para o grupo dinamizador, onde era interrogada de forma ríspida, ficava detida e passava por torturas psicológicas e até físicas, os famosos ‘chambocos’. Aquilo parecia-me bonito, defender a minha pátria, mas depois as pessoas eram torturadas e isso deixou-me alguma tristeza. Na altura, eu lia a coleção 6 Balas, livros aos quadradinhos de cowboys, histórias dos bons contra os maus, e aquilo marcou-me negativamente.

Que recordações guarda de Samora Machel?

Uma tradição que a Frelimo mantém até hoje é que, quando um dirigente vai a um distrito, não há aulas e os estudantes têm de ir ao comício. Quando estava na escola primária, fui a dois comícios dele, um deles na Assembleia da República (na altura chamada Assembleia Popular). Mas atrasamo-nos e o Samora tinha aquele estilo Fidel Castro, discursava por cinco, seis horas; por isso, eu cheguei na altura em que as pessoas já estavam fartas e queriam abandonar o comício. Mas os milicianos ficavam ali, de armas em punho, para travar quem quisesse sair. Lembro-me de uma grávida que queria sair e um militar encostou a arma à barriga dela e empurrou-a. Isso ficou gravado na minha memória até hoje.

O que faziam os miúdos nessa época?

Eu era essencialmente um desportista. Tive duas alcunhas: primeiro, fui o Bruce Lee e depois o Van Damme (risos).

Era um miúdo violento?

Nada disso, mas praticava uma arte marcial japonesa, o Shotokan-Karate-Dõ, sou cinturão castanho. E gostava de ter assistência. Então, como só tinha aulas de manhã, durante a tarde fazia demonstrações no meu quintal para os vizinhos da minha idade. Fazia aquilo como deve ser: por classes, que separava com pedrinhas. A dada altura, comecei a ser procurado pelos pais deles, que não percebiam como é que os filhos tinham passado a ter notas positivas. Foi o meu primeiro negócio. Fizeram questão de me pagar para manter os meninos estudiosos. Depois, comecei a fazer um mix entre as artes marciais e o halterofilismo, daí o Van Damme. Também fui um exímio dançarino de rock, mas era dança com artes marciais misturadas. Toda a gente gostava de me ver dançar porque era extremamente acrobático…

Portanto, não tem que se queixar a esse nível…

Fui um homem das farras. A minha educação musical era a dos meus irmãos (tinha quatro, mais velhos). Ouvi os clássicos dos blues, do jazz,  rock and  roll, música erudita também. Mas onde me atrelei mesmo foi ao rock. E com o tempo evoluí para o hard rock, heavy metal, trench metal… Só não cheguei ao death metal, mas estava quase nisso (risos).

Como vai estudar engenharia florestal na Universidade Eduardo Mondlane e acaba a trabalhar como bancário?

Porque me distraí no secundário e tive uma ‘nega’ a Geografia (risos.) Fui um estudante exímio. Com notas entre 19 e 20. Havia três estudantes muito bons. Um tornou-se DJ, outra foi miss Moçambique e eu era o karateca. Quando tínhamos uns 16 anos, mudo de liceu. Vinha embalado, convencido de que era um grande craque. Mas é quando me empenho muito nas artes marciais e  também jogava basquete, futebol, enfim… De repente, tenho uma ‘nega’ a Geografia. Pesou-me tanto, que estudei que nem um louco. Um dia, o professor faz uma série de perguntas e ninguém sabia responder. Estávamos a dar os climas. Eu levantei a mão e comecei a descrevê-los, do ártico ao equatorial, as temperaturas, a fauna e a flora, os relevos, falei durante uns 30 minutos!

Como o Samora?

Tal e qual. A partir daí, sempre que alguém tinha uma dúvida, o professor passava-me a bola. Tornei-me numa espécie de monitor dele. Portanto, a engenharia florestal resulta da revolta contra uma negativa. Depois, quando saí da faculdade, ainda dei aulas, mas acabei bancário. Já levo 22 anos disso.

Até à universidade, qual foi o líder, moçambicano ou estrangeiro, que o marcou mais?

O Samora. Houve uma altura em que eu tinha quase toda a coleção de discursos do Samora. Não só gostava dos discursos como o imitei em espetáculos de stand-up. A minha especialidade era imitar o Samora.

Entrou em todos os partidos. Foi da Frelimo, do MDM, depois vieram a Renamo, a Coligação e a Aliança Democrática, e agora o Podemos. Como explica isto? É ambição natural de liderança ou o facto teve a ver com a resistência interna das estruturas partidárias que consideram que não se pode queimar etapas?

Politicamente, sou o homem mais cromático do meu país e ainda estou à espera de mais um partido… (risos). Agora a sério, eu nunca me conformei com o espartilho do fundamentalismo partidário, sempre fui um inconformado.

Já era assessor de Dhlakama quando o então presidente da Renamo decidiu, em 2014, realizar ataques armados na Nacional 1, como forma de contestar os resultados eleitorais? Apoiou essa decisão?

Eu nunca fui assessor do Dhlakama. Fui assessor de Assuntos Políticos do atual presidente da Renamo, Ossufo Momade. Mas apoiei a decisão, sim. Eu gostava muito da rebelião dele. Vamos lá a ver: estive na Frelimo até 2013, e começara a fazer comentários na televisão em 2003. Os meus comentários eram então muito pró-Frelimo. Nessa altura, eu era comentador residente na televisão Mira-Mar, e o moderador, curiosamente, era o Chapo, o atual candidato da Frelimo. Mas, em 2005, começa o meu período de rebelião. Em 2008, transitei para a SPV, para um programa que se chamava Pontos de Vista – e este é que me dá uma grande visibilidade, porque era um programa de referência em Moçambique. É aí que começo a despertar o apetite de alguns políticos. Mas só em 2013 é que aceitei o convite para me candidatar a presidente do Conselho Municipal de Maputo pelo Movimento Democrático de Moçambique. Foi aí que me desfiliei efetivamente da Frelimo. Concorri logo na cidade de Maputo e ganhei as eleições, mas houve os problemas que se conhecem com as máfias da Frelimo (que controlam todas as ferramentas relacionadas com o processo eleitoral).

Por que lhe parece que nenhuma organização internacional sustentou, em 2013, as alegações de fraude eleitoral?

As instituições apoiam sempre quem lhes dá acesso a riqueza. Os que mandam no mundo têm interesses nos recursos de Moçambique, que são conhecidos, e naturalmente beneficiam quem mais facilmente lhes pode dar acesso a esses negócios.

E o que se pode fazer para alterar esta situação?

Quando eu me candidatei em 2023, andei a analisar e procurei colmatar três grandes erros que a Renamo sempre cometeu desde 1994: a incapacidade em fiscalizar o processo a 100%, isto é, ter delegados de candidatura ou fiscais em todas as mesas de voto; não conseguir em tempo útil fazer a contagem paralela e torná-la pública; e os recursos ao tribunal ou Conselho Constitucional, que eram sempre chumbados devido a problemas formais/técnicos na sua elaboração. Quando me candidatei à presidência da cidade de Maputo, consegui resolver esses problemas: montei um esquema em que consegui ter todos os delegados de candidatura nas cerca de 900 mesas da cidade e em menos de 24 horas tinha uma contagem paralela e anunciei-a antes dos próprios órgãos eleitorais; consegui também ter a maior e a melhor equipa de juristas para preparar os recursos ao Conselho Constitucional – e nenhum dos 17 recursos foi devolvido por problemas formais ou técnicos. Daí que tive toda a legitimidade e força para poder marchar durante 40 dias contra a fraude eleitoral

Nessa altura, também contestou os resultados oficiais e prometeu revelar na comunicação social as atas que tinha em seu poder e que demonstravam a sua vitória. O que o impediu de o fazer?

Porque, infelizmente, o meu próprio chefe na altura fez um acordo com a Frelimo.

Foi isso que o levou a sair da Renamo?

Foi uma das coisas, mas não só. A gota de água que me levou a sair foi a sabotagem da minha candidatura à presidência da Renamo. Foi montado todo um esquema que visava apenas uma pessoa que se chamava Venâncio Mondlane. Usei todas as estratégias disponíveis para fazer a luta. Mas infelizmente, mesmo com uma ordem judicial na minha mão que me habilitava a entrar no congresso, eles desautorizaram o tribunal, não cumpriram a ordem judicial e não permitiram que eu entrasse no congresso. Então, decidi renunciar ao meu mandato no Parlamento e decidi começar a preparar a minha candidatura à Presidência da República.

E de seguida abandona a Renamo e colabora na fundação da Aliança Democrática. Os seus críticos acusam-no de uma busca incessante de protagonismo e de poder.

Como é que se muda um sistema sem se ser o capitão da navegação? Não tens como. A única forma de transformar as coisas é estar no comando. E eu queria de facto fazer parte de um processo transformacional do país. Então, tenho de estar em posições de decisão. Como é que se pode transformar um país inteiro sendo faxineiro de uma cidade?

Nas eleições do mês passado, acabou por concorrer por outro partido, o Podemos, e a história repetiu-se: a Frelimo foi declarada vencedora e o senhor e o seu partido reclamam a vitória e acusam o partido no poder de fraude generalizada. Há provas dessa fraude? Já as entregou a alguma organização que considere independente?

Entregamos as provas ao próprio Tribunal Constitucional. Posso-lhe mandar o recurso. As provas são 300 quilos. Tudo isto leva-me a uma conclusão: para fazeres uma fraude eleitoral e ela poder passar, é importante que tu tenhas pelo menos algum estrato da sociedade que legitime essa fraude. E neste momento a Frelimo não tem um substrato com que possa sustentar a fraude. A Frelimo diz que ganhou as eleições, mas, neste momento, não consegue sair à rua para marchar. Porque ela própria tem consciência de que não vai ter gente na rua.

Na sua opinião, a comunidade internacional tem estado preocupada com a situação e pode vir a ajudar a encontrar uma saída?

Se está preocupada, não está a demonstrar isso à população.

Conta com apoios internacionais?

De uma forma global, as organizações da África Austral. Os partidos da oposição do Zimbabué reuniram e decidiram reagir em solidariedade ao que está a acontecer aqui em Moçambique. A ideia é estender este link para toda a África Austral. Mas dentro de Moçambique tenho uma boa notícia hoje: há 32 partidos da oposição não parlamentar que se associaram à nossa causa para a constituição de uma frente ampla. A Renamo não está lá. Por razões óbvias. É a primeira vez que ela é destronada da posição confortável de segundo partido mais votado em Moçambique e também é a primeira vez que o líder da Renamo é destronado por um candidato de um partido emergente, o que levanta alguns ciúmes.

Recebeu algum apoio de Portugal?

Não posso falar de apoios oficiais, apenas ao nível da solidariedade.

Há algum partido em Portugal com o qual se identifique?

Temos mais identidade com a Iniciativa Liberal.

Diz que não enveredará pela violência armada. Qual é o passo a seguir?

O sistema democrático foi implementado de forma não democrática. Já havia sistemas políticos estabelecidos. Mesmo havendo injustiça neles, eram legais. A monarquia, por exemplo, que hoje achamos um absurdo, era legal. O que quero dizer com isto? Nós temos instituições em Moçambique que cuidam das questões eleitorais, que tomam as últimas decisões de recurso, mas, quando esses sistemas passam a estar desadequados, quando a Justiça faz a injustiça, quando começam a defender o banditismo, então têm de ser demolidos. Temos de começar uma luta para demolir essa muralha da falsa democracia que está estabelecida no país. São 50 anos de regime, é certo, mas não há garantias de que seja eterno.

Não há qualquer possibilidade de compromisso?

Nunca rejeitamos o diálogo. Mas tem de ser um diálogo em que não se perca a cara, em que se respeite a vontade popular. E o diálogo vai servir para quê? É evidente que um regime estabelecido há 50 anos vai querer dar garantias de não perseguição, de estabilidade e por aí fora. Mas a história dos acordos em Moçambique é sempre assim: no fim de cada ciclo, é assinar um acordo que tem na matriz a lei da amnistia.

Está na 2.ª fase da quarta etapa da sua estratégia. Quando mataram Elvino Dias, assessor jurídico, e Paulo Guambe, mandatário do Podemos, disse que ia haver tantas fases como os 25 tiros que eles tinham levado. Mantém?

Mantenho.

Quer dizer que já as tem delineadas?

Já as tenho previstas. Isto só acaba até que haja no país um regime verdadeiramente democrático.

Fugiu do país porque acha que lhe ia acontecer o mesmo?

Quando eu sentir que já cumpri a minha missão, não há problema, posso-me entregar.

O facto de não ter suporte partidário sólido não pode fazer com que fique isolado e seja politicamente liquidado?

Liquidado foi sempre um prognóstico que me foi feito desde 2013. Aliás, ainda como comentador já diziam isso. Mas, passados 20 anos, estou aqui de pé e muito ativo. Dos mais ativos do país, aliás, com as maiores redes do país, com um canal de WhatsApp com mais de 122 mil seguidores… O mais importante é ter um suporte de princípios, de valores sólidos e ter um propósito de vida muito claro. De onde se vem e para onde se vai. A questão partidária é operacional, é algo instrumental. A nossa essência tem de ser os nossos valores, isso é que não se pode perder.

Há quem afirme que a sua luta está a servir e a ser perversamente encorajada pela ala dura da Frelimo, que vê nela a oportunidade de um Estado pré caos, para surgir depois como salvador da pátria, impondo um regime autoritário, e vingando ao mesmo tempo a derrota do presidente Nyussi no Comité Central, que rejeitou o seu candidato, facto que levou à eleição de Daniel Chapo, uma personagem desconhecida, que apareceu apenas como ‘adjuvante’. Como comenta?

Eles podem querer isso, a política é um jogo. Por isso, o mais importante para mim não é apenas fazer política, mas sim definir os resultados que quero alcançar na política. Sendo um jogo, quer dizer que é imprevisível. É como no xadrez: mexe-se as pedras de um jeito, pensando que o nosso adversário se moverá dentro de um certo quadro previsível. Então, se eles acham que a minha luta lhes está a ser favorável para estabelecerem um estado autocrático ou uma situação de caos, é a previsão que eles estão a ter no tabuleiro de xadrez. Mas eles podem ter a certeza de que eu não me vou mover no sentido dessa previsão. Então, é uma incógnita o que vem a seguir.

Quando e como foi a sua fuga do país?

No dia 21 de outubro, estava eu na primeira paralisação nacional que tinha convocado para contestar os resultados oficiais das eleições, que faziam de Daniel Chapo o Presidente de Moçambique. Quando dava uma conferência de imprensa, começaram a atirar-me com gás lacrimogéneo. Eram uns polícias à civil que tentavam que eu reagisse para me poderem alvejar. Graças a Deus que tinha comigo um conjunto de jovens que me estavam a fazer cobertura física e consegui fugir. Fui seguido, mas consegui despistá-los. Estava a pensar voltar a casa, quando recebo a informação de uma pessoa bem destacada em Moçambique de que já lá estavam à minha espera. Disse-me também para evitar o aeroporto. Dirigi-me à fronteira de Ressano Garcia, onde já havia ordens para me deterem, mas os tipos dos serviços de migração criaram todas as condições para que eu pudesse passar. Entrei pelo lado sul-africano, sem sequer me pedirem o passaporte. Fiquei num hotel e, no dia seguinte, fui para o aeroporto do Kruger Mpumalanga, onde apanhei um avião para Joanesburgo. Fiquei num condomínio, mas não me senti seguro e mudei para outro. Azar. Logo nessa noite, percebi que tinha pessoas à porta. Devia ser a ‘secreta’ sul-africana. Fugi com a minha mulher e filha, de 14 anos, pelas traseiras. A partir daí, nunca ficámos no mesmo sítio mais de três dias.

Que outro tipo de cuidados tem?

Quando me desloco, pois nunca se sabe de onde vem o perigo.

Tem segurança?

Segurança física, não tenho. Mas conheço um conjunto de jovens que são génios ao nível da cibersegurança, trabalham com várias técnicas de antirrastreamento e conseguem entrar no portal mais seguro, até o do Governo.

Já detetaram alguma ameaça?

Ainda há pouco tempo tive de mudar de telefone porque estava sob escuta.

O Venâncio até pode estar preparado para isso, mas como reage a sua família?

São heroínas. Eu já disse uma vez que queria desistir mas a minha mulher avisou logo: ‘Aqui, ninguém recua!’.

 Na quarta-feira, o Presidente Filipe Nyusi, que se tem mantido em silêncio desde que se iniciou a vaga de protestos, veio fazer um comunicado à nação em que fala na necessidade de diálogo e convida os quatro candidatos presidenciais para um encontro no palácio da Ponta Vermelha. Vai estar presente?

Não. Isso é uma armadilha e é sinistra, pois eles não têm interesse em dialogar. Mas vou enviar-lhe uma carta que o vai entalar até ao pescoço. Aí, agradeço-lhe o comunicado à nação e a proposta que fazem para a pacificação do país; mas adianto que não pode haver um encontro sem existir primeiro uma agenda. E, na minha proposta de agenda, vou colocar 23 questões que são as minhas condições para um acordo. Essa carta vai ser enviada também para o Conselho Colegial, para o Tribunal Supremo, para a Procuradoria-Geral da República, para a União Europeia, etc. Porque quero que as minhas condições sejam públicas. Uma delas será o reconhecimento da fraude eleitoral. Ele agora pensa que mandou a ‘batata quente’ para o meu lado e todo o mundo está à espera que eu responda a isso. Se eu disser sim, vai ser bom para eles, porque podem montar a armadilha como quiserem. Se eu disser não, vou ficar mal visto porque serei encarado como uma pessoal inflexível. Portanto, a minha única alternativa é dizer sim. Ele deu um passo em frente, mas eu vou dar dois passos. Os acordos que a Renamo teve com a Frelimo foram sempre um fracasso, porque os dois partidos faziam rondas negociais (foram cerca de uma centena) e os detalhes ficavam ocultos. Eu vou tornar tudo público e impedir que aquele que está no poder se escude por trás do tal ocultismo. Tem de ir tudo para escrutínio público. Vou incluir pontos como a revisão profunda da lei eleitoral, a reforma da CNE e do Conselho Constitucional, uma lei de despartidarização do Estado, a libertação de todos os detidos no âmbito dos protestos, indemnizações a todas as famílias daqueles que foram mortos e também a intermediação internacional para a assinatura dos acordos. Também queremos um compromisso nacional para a eliminação dos raptos e sequestros, para se acabar com o terrorismo em Cabo Delgado e melhorias na qualidade de vida da população. Por exemplo, tem de haver um compromisso nacional entre as partes para a construção de 10 milhões de casas em cinco anos, sobretudo para os jovens recém-casados e recém-formados, e a criação de um fundo de investimento de 500 milhões de dólares para iniciativas de negócios privados, também em cinco anos.