Zbigniew Herbert. A deserção da consciência

No centenário de Herbert, a edição de uma abrangente antologia da sua obra poética, mostra-se um evento decisivo na nossa língua. Graças ao trabalho da tradutora, chega-nos, assim, uma voz que marca um contraste magnífico face à poesia que hoje se tem escrito em português.

Zbigniew Herbert foi toda a vida um homem que se sentiu importunado pela História, um ser exaltado pela memória de épocas perdidas, e que deplorava a invertebrada composição de escolhos que, de tudo isso, havia restado. Muito cedo ele encenou uma forte discórdia com os do seu tempo, de forma a sinalizar esse exílio. Na altura da sua morte, no verão de 1998, a causa não foi determinada com precisão, mas um amigo fez saber que ele sofria de asma e de sérios problemas circulatórios. Como assinalava o seu obituário no The New York Times, ele dava a impressão de ser um homem solitário, que não respondia perante nada nem ninguém, a não ser à sua própria consciência. “Não transmitirás a ninguém o saber/ o ouvido é só teu e o toque também/ cada um terá de criar de raiz/ sua própria infinitude e seu princípio”, escreve Herbert. Se outros terão fantasiado que um mundo de novas possibilidades se abria depois de ter cessado a campanha de devastação dos totalitarismos do último século, para ele estava claro que não havia motivos para grande celebração. “Quando o terror abrandou os holofotes apagaram-se/ descobrimos que estávamos numa lixeira com poses muito estranhas/ uns com o pescoço esticado/ outros com a boca aberta da qual a pátria gotejava ainda (…) nas mãos tínhamos pedaços de chapa metálica e ossos/ (que a luz dos holofotes transformava em símbolos)/ mas para já não passavam de chapa metálica e ossos// Não tínhamos para onde ir ficámos na lixeira/ fizemos arrumações/ arquivámos ossos e chapas metálicas// Escutámos o chilreio dos eléctricos a voz de andorinha da fábrica/ e uma nova vida estendia-se a nossos pés”.

Ao contrário de outros, em seu entender a tarefa do escritor passa por ensinar a sobriedade aos homens, despertá-los. “Eu rejeito o optimismo apesar daquilo que dizem os teólogos. No meu entender, o desespero é um sentimento frutífero. É uma forma de nos lavarmos do desejo, da esperança”, disse ele numa entrevista. Herbert faz parte de um lote bastante restrito de escritores que não ficaram convencidos de que o pior já passara. Como outros defenderam, não se podia imaginar que Auschwitz fora de algum modo uma espécie de desvio da história, e não o “corolário lógico do desenvolvimento da cultura europeia” (Heiner Müller), uma cultura assente no princípio da dominação e selecção. Tendo sido uma testemunha directa do caos gerado quando os elementos políticos assumem uma condição eufórica, intrometendo-se de forma insidiosa em todos os aspectos da vida social, com uma mente hábil, que se disciplinara no estudo do Direito e da literatura clássica, Herbert desenvolveu um repúdio muito particular pelas expressões que sucumbem à autocomiseração ou à nostalgia.

Nascido em 1924, em Lwów, na Polónia (hoje Lviv, na Ucrânia), Herbert foi obrigado ainda na adolescência a compreender o peso que o lugar e o momento histórico podem ter na vida de um homem. Em setembro de 1939, quando tinha 15 anos, a sua cidade natal ficou sob a alçada soviética, e pouco mais de um ano e meio depois foi invadida pelos nazis. Como tantos outros rapazes da sua geração, Herbert prosseguiu os estudos de forma clandestina, recebendo aulas em casas particulares, tendo também participado na resistência. Durante a ocupação nazi, os seus primeiros poemas começaram a aparecer em publicações que circulavam de forma secreta, e assim continuou a acontecer depois do final da guerra, durante o período estalinista que se seguiu. É uma regra não escrita, como assinalaria Joseph Brodsky, que a arte, no esforço de sobreviver debaixo da pressão totalitária, acaba por se desenvolver em termos de densidade em directa proporção face à magnitude da pressão que é aplicada sobre ela. Assim, e depois de os nazis terem arrasado Varsóvia, esvaziando-a da sua população, vangloriando-se de terem feito da capital polaca uma “segunda Cartago”, é importante referir a infame Operação AB do governador-geral Hans Frank, que visava a eliminação total da intelectualidade do país, e que riscou 3500 dos nomes nessa lista. De acordo com o poeta e crítico literário inglês Al Alvarez, que teve um papel decisivo na divulgação da obra de Herbert, não se pode compreender a poesia polaca sem levar em conta aquele período da ocupação nazi, em que foram massacrados 6 milhões de pessoas numa população de 30 milhões, com boa parte do país a ficar reduzido a escombros. “Tudo isto incutiu nos sobreviventes – entre outras coisas – uma aversão à retórica e à pretensão artística que quase chegou ao ponto de se manifestar como um ódio à própria poesia”, assinala o crítico. “Tadeusz Rózewicz, três anos mais velho do que Herbert, via a arte como uma ofensa ao sofrimento humano e reduzia os seus poemas a uma notação minimalista, despida de métrica, rima e até de metáfora. ‘A poesia moderna’, escreveu, ‘é uma luta pela respiração’.” E se, em termos formais, Herbert não foi mais longe nem foi propriamente um inovador, é a sua forma de seguir “pelas ravinas das antigas ruas”, registando a forma como a lua repete a os movimentos de antes, lançando o seu suave brilho de metal “no borralho ainda quente”, é a forma como ele representa a deolação desse poeta que, acatando a exigência do seu tempo, se vê obrigado a declinar aquela linhagem a que intimamente se sente ligado. A radicalidade da sua poesia não está, assim, nem na ausência da pontuação, naquele registo inenfático, que se aproxima muitas vezes de um murmúrio, mas nesse contraste que nasce da forma como “o poeta luta contra a sua própria sombra”. No fundo, ele não esqueceu nem o calcula das estrelas nem a sabedoria das ervas, mas ao sentir o vento soprar as cinzas e agitar o éter, compreende como a grandeza se tornou demasiado expressiva, e é necessário, até certo ponto, sufocar a lira. Ainda que reconheça que “os mortos também pedem contos de fadas”, Herbert não reconhece que o perigo esteja tão longe que se possa abandonar a qualquer espécie de delírio. E é neste aspecto que a substancial antologia que agora nos chega, a assinalar o seu centenário, deve ser assinalada como um acontecimento decisivo para esse esforço de revulsão e expansão deste idioma. Se em 2009, Jorge Sousa Braga nos tinha já posto diante dessas tão subtis e siderantes arguições, de um poeta que parece carregar um debate tão poderoso no seu juízo que este chega a encenar-se como um preito levado a tribunal, sendo ele o denunciante e o réu, o procurador, o advogado de defesa, e aquele que deve decidir, aquela antologia era sobretudo uma introdução a este estrepitoso universo. Mas com “Poesia Quase Toda”, temos uma representação bem mais generosa desse desafio de um homem que chama a si os elementos dispersos de um enorme conflito. Entre o passado e a memória, entre as referências e paráfrases de um mundo clássico, tantas vezes sujeito à ruína (“agora já só pesco/ torsos quebrados salgados”), e este dever de reproduzir a canção possível, com poucas cordas, sem se entregar à volúpia, nem ficar “extasiado com o próprio canto”, mas para chamar aqueles que tem ao seu redor e os vindouros de volta à razão. O elemento crucial nesta edição, e aquilo que a torna tão impactante é a tradução de Teresa Fernandes Swiatkiewicz, que não apenas capta os elementos mais inusitados desse confronto do poeta entre o encantamento que produziu nele aquele mundo antigo ao qual sente pertencer e aquele no qual se viu lançado, mas ainda nos mostra todo o poder da elipse, desse grau de exigência estarrecedor daquele que sente que o seu juízo não pode libertar-se de um peso atroz, ao “arrastar as sombras dos mortos”. É a infalível lucidez de Herbert, a forma como o silêncio impregna os seus versos e obriga o leitor a uma recomposição daquilo que antes apenas comparecia de forma algo desconexa ou difusa, é esse o encargo decisivo desta poesia, e que esta tradução representa de forma tão fiel. Assim, Herbert surge agora como um poeta isolado também neste idioma, e desloca-se no tempo, para vir visitar também estes subúrbios sujos para o qual hoje somos desterrados… “As casas dos subúrbios têm olheiras sob as janelas/ as casas tossem em silêncio (…) têm a cabeça baixa/ são casas que mastigam a côdea do pão/ frias como o sono de um paralítico/ suas escadas são uma palmeira de pó/ há sempre casas à venda/ estalagens de infortúnio/ casas que nunca foram ao teatro”. Mestre da clareza e da ironia, Herbert faz de cada poema esse “horizonte em miniatura”, representando aquela música quase inaudível à medida que o pó cai sobre as coisas. E se, como nos diz Joseph Brodsky, “o pó é a carne do tempo”, poucos poetas como Herbert foram capazes de nos transmitir essa rara urgência, sem espantar o silêncio, caçando-o, compondo um sussurro que é capaz de aludir às catástrofes históricas e, ao mesmo tempo, representar as suas repercussões na intimidade de cada uma das suas vítimas. “Incansável é a oração dos mundos// posso repetir tudo de novo/ com a pena herdada de um ganso e de Homero/ com uma lança reduzida/ fazendo frente aos elementos”. O desespero é uma promessa que se faz, de não esquecer nada, de não se juntar à massa daqueles que “desistiram da história e passaram para o lado da preguiça das vitrinas”. Num excepcional texto sobre a sua obra, Brodsky diz-nos que o verdadeiro inimigo de Herbert é a vulgaridade do coração humano, que consegue produzir sempre uma versão simplificada da realidade humana. “Isto resulta inevitavelmente em formas de injustiça social, ou mesmo, e na maioria das vezes, conduz a essas utopias que logo nos mergulham num ambiente de pesadelo. Herbert é um poeta de tremendamente consequente do ponto de vista ético, porque os seus versos estão empenhados em aclarar as causas, e não apenas os efeitos, que ele trata de forma meramente incidental.”

Herbert mostra-se impiedoso contra aqueles que assumem a derrota para disso fazerem um recreio, para buscarem consolos patéticos, ele que se comprometeu com o desespero próprio desses que, em número cada vez menos, defendem a Cidade, mesmo quando já não parece haver razões para isso: “só nos resta o lugar o apego ao lugar/ ainda são nossas ruínas de templos espectros de jardins e casas/ se perdermos as ruínas nada mais nos restará”. Em sentido diverso, deplora esses que concederam a derrota, apenas para gozarem uma existência covarde. “Aqueles que perderam dançam com guizos nos pés/ agrilhoados a trajes ridículos com penas de águia morta/ eleva-se a poeira da compaixão numa praceta/ e a espingarda dos filmes dispara suave e certeira// levantam machados de lata em arcos como celhas e matam folhas e sombras/ daí a troada de tambores e mais tambores lembrando o antigo orgulho e ira”.

Nos últimos anos da sua vida, Herbert viria a apontar o dedo a muitos daqueles que até certa altura foram os seus correligionários, incluindo Czeslaw Milosz, todos aqueles que se comprometeram com outras noções caridosas e redutoras da experiência e do sofrimento a que os homens vivem submetidos. Serviu-se do Senhor Cogito, essa persona que lhe permitiu desferir golpes contra as inconsistentes representações e figuras da cultura do seu tempo, e a este título é decisivo a forma como lançou um olhar sobre os artistas, reconhecendo que estes se reuniam, então, no círculo mais baixo do inferno, estando a salvo das penalidades a que Belzebu submetia os restantes inquilinos. Protegidos, estes gozam de todo o conforto, num asilo repleto de espelhos, instrumentos e quadros, ocupando-se todo o ano de concursos, festivais e concertos. Fica claro como Herbert aplica o corrosivo verniz da sua ironia ao falar dos ambientes culturais, desses que aceitam o patrocínio infernal para relativizar as exigências do combate que é preciso prosseguir, sobretudo quando tudo à nossa volta nos diz que a guerra está perdida. E então ele coloca-os ali, e vinca aquilo que todos nós hoje podemos comprovar: “Belzebu apoia as artes. Garante paz aos seus artistas, boa alimentação e isolamento absoluto da vida infernal.”

No fim, acabou por ser cada vez mais a forma da polémica o regime da herança cultural que Herbert assumiu. Assim, com o passar do tempo, o seu testemunho virou-se contra os próprios sobreviventes, como se através dele se ouvisse a acusação dos mortos. A este título, atente-se no poema “O que eu vi”… “Vi profetas puxar suas barbas postiças/ vi impostores aderir à seita dos flagelantes/ carrascos disfarçados com peles de carneiro/ fugindo da ira do povo/ tocando flauta// viv vi// vi um homem que foi torturado/ e agora em segurança no seio da família/ contava anedotas comia sopa/ eu olhava seus lábios entreabertos/ suas gengivas – dois ramos de abrunheiro sem casca/ era tudo uma grande insolência/ vi toda a nudez/ toda a humilhação// mais tarde/ uma sessão solene/ muita gente flores/ um sufoco/ alguém sem parar a falar de distorções/ pensei na sua boca torcida// será este o último acto/ de uma peça do Anónimo/ lisa como um sudário/ repleta de soluços sufocados/ e do riso daqueles/ que suspirando de alívio/ por terem conseguido de novo/ após a limpeza dos adereços mortos/ levantar/ devagar// a cortina ensanguentada”.

Ou seja, Herbert não admitia que lhe viessem dizer que o pior já tinha passado, talvez seja isto o que leva Brodsky a considerá-lo acima de tudo um “poeta histórico”, no sentido em que a sua pena continua a vasculhar entre os escombros, como se esse esforço doloroso fosse precisamente aquilo que impede a lógica de dominação de encontrar novos alvos, gerar as ficções que lhe permitam desencadear novos massacres. No cabeçalho de um desses poemas em que volta à Roma antiga, ele diz-nos que “ao ler antigas crónicas, poemas épicos e biografias, o Senhor Cogito às vezes sente a presença física de pessoas há muito falecidas”, e talvez seja daqui que emerge esse dever de restituição. Ao convocar a História, ele relembra-nos que esta é a instância decisiva da cultura humana, assim ele “oferece ao leitor as condições para suportar e, com sorte, superar a vulgaridade do presente”, diz-nos Brodsky. “Os seus poemas tornam claro que muitas das nossas crenças, convicções e noções sociais são ineptas ficções de mau gosto, nem que seja por serem empreendidas às custas de alguém que para elas se vê arrastado contra a sua vontade.”

Herbert repudiou todo este enredo consolador em que mergulhámos, toda uma cultura de fachada que se ergue para não vermos aquilo que se faz em nome do nosso conforto, bem-estar, reforçando manifestações inanes, assentes na comoção e noutras formas de embriaguez moral. Com tudo isto, desertámos a realidade, e agora que “os músculos dos anjos se tornaram flácidos”, e com as pessoas entregues a “virtudes insípidas”, neste momento, vemos como “em redor fervilha a vida maravilhosa/ corada como um matadouro de madrugada”.