A medusa

À sombra da inação, o Estado transformou-se numa gelatinosa, negligente e perdulária medusa.

Não há dia em que não somos confrontados com ineficiência e improdutividade na prestação de serviços públicos. Talvez seja este o momento de nos questionarmos: o que está a suceder com o Estado? Se a economia privada mostra resiliência, se temos pouco desemprego, se pagamos um tributo elevado através dos impostos, porque se mantém o Estado tão inoperante em alguns setores e serviços?


Esperar-se-ia que o sistema político resolvesse este enigma. Contudo, no Parlamento, ouvimos um passa-culpas pouco edificante. Num coro de indignação, as oposições clamam a cada dia por comissões de inquérito ou demissões, enquanto quem governa procura desconversar e distrair-nos com outros problemas.


A espaços, surgem os adeptos da consensualidade política. Aqueles que defendem convergências que mais não são do que apelos à paz podre, de forma a evitar qualquer solução de rutura. Neste particular, a recente entrevista do novo protocandidato à Presidência, António José Seguro, é um hino ao consenso balofo próprio do situacionismo.


Se os políticos querem, de facto, assumir as rédeas do funcionamento do Estado, devem começar por reconhecer que abdicaram dos seus poderes e deixaram a máquina estatal à mercê dos níveis intermédios da funcionalismo público. Os reguladores são portas giratórias, frequentados por anteriores e futuros regulados. Agências como o ICNF e a APA estão dominadas por técnicos que não hesitam em dar pareceres vinculativos que, sob a capa do ‘especialismo’, se revelam arbitrários e discriminatórios. As empresas públicas, por seu turno, são geridas por administradores cuja qualificação reside na filiação partidária.


Esperar-se-ia que, neste impasse, o eleitorado procurasse alternativas. O eleitor sabe que está tudo preso por arames, mas teme que alterar o statu quo possa ter consequências ainda mais negativas. Há tanta gente a depender do Estado que só uma pequena minoria ousa transformar o seu queixume numa reivindicação que transcenda o respetivo interesse particular, familiar e corporativo.


À sombra da inação, o Estado transformou-se numa gelatinosa, negligente e perdulária medusa. Um exemplo: escolas públicas com centenas alunos não abrem portas porque faltam três ou quatro assistentes operacionais, que não têm grande prejuízo pessoal se não comparecerem ao trabalho ou ficarem em casa de baixa. Outro exemplo: os comboios não circulam sempre que um dos sindicatos do setor resolve fazer greve e, enquanto isso, os outros trabalhadores ficam sossegados em casa, a ganhar energias para se alternarem em futuras ‘jornadas de luta’.


Assim, os serviços mínimos no INEM vão continuar a alimentar discussões, quando o serviço pleno – ou seja, máximo – deste organismo já está abaixo desses mínimos. Assim, centenas de PDM permanecerão por aprovar, graças a birras da APA ou do ICNF. Assim, a DGEG continuará a travar todos os processos de criação de comunidades energéticas, não vá crescer o hábito da autoprodução, que pode estragar o negócio aos grandes distribuidores. Assim, as CCDR não deixarão de ser um entrave burocrático, o que é a forma mais eficiente de tornar a regionalização uma reforma indesejável. Assim, vai ficar tudo igual: com a alternância dos mesmos, sempre os mesmos, que defendem à outrance a sacrossanta convergência política.


Há uma perceção distorcida dos poderes dos políticos. Assisto a isso como autarca. Nenhum munícipe entende que a vereação em quem votou não tem competências nas matérias que o afligem: segurança, mobilidade, saúde, ambiente… Ninguém acredita que uma obra não avança porque o Tribunal de Contas entendeu escrutinar e suspender uma opção política.
Um dia destes, se os políticos insistirem em fazer outsourcing dos seus poderes e competências, ninguém achará que vale a pena votar.