Tornou-se hábito que quem é constituído arguido, umas vezes, e acusado, outras, se demita ou seja demitido (por decreto ou pela persuasão). A coisa começou pelo campo político – aliás, se bem me lembro, com a retirada de confiança a autarcas -, e depois alastrou ao campo empresarial, mesmo que inteiramente privado. ‘Estás arguido, ou estás acusado, então estás fora. E se não vais pelo teu pé, então vais de outra forma’ – que há muitos meios de fazer chegar o barco a bom porto. A coisa foi andando, andando, e ficou de tal forma que se começou a estranhar não haver demissão, como se essa fosse a ordem natural das coisas. ‘Então não se demite?’- pergunta-se. Ou noticia-se: ‘Apesar de arguido ou acusado, continua…’. Como se fosse aberração ou falta grave. Não se demite, não é demitido, não leva um pontapé por causa de uma constituição de arguido ou uma acusação – estranhíssimo, aqui d’el rei, temos caso, temos afronta (e temos também falta de picante, pois demissão rende sempre mais do que o contrário, o sangue vende mais, já sabemos).
Ora, tenho para mim que estranho, ou mesmo afronta, é achar que é normal demitir-se ou ser demitido. Já o disse várias vezes, e escrevi-o elogiando a decisão de Rui Moreira de não se demitir. E foi absolvido até, vejam lá. Mas se tivesse sido diferente o desfecho, eu manteria o elogio – o elogio ao bom senso e, sobretudo, à coragem, porque é preciso coragem para resistir quando muitos vociferam, outros tantos espreitam no escuro e alguns – vários, muitos – tremem das pernas, sendo incapazes de ver as coisas como são e, sobretudo, como devem ser, tributando aos que se veem em apertos destes solidariedade e humanidade, e também, e sobretudo, sabendo ver e dizer que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.
Uma constituição de arguido é um facto relevante? É. Uma acusação também? Sim. Mas têm a relevância de serem isso mesmo, que é muito, mas também de serem apenas isso, que para efeitos de demissão é pouco. São apenas ou um juízo de suspeita ou de indiciação realizado por pessoas que têm o poder de o determinar. Não menos, mas também não mais. Quem constitui arguido ou quem acusa diz que é assim. Vamos ver se é, ou se não é, em primeiro lugar – a não ser que a infalibilidade papal já tenha extravasado os muros do Vaticano. E, em segundo lugar, mas não menos importante, se mesmo uma condenação não implica a perda de direitos civis – diz a Constituição, aliás -, porque é que uma ‘simples’ constituição de arguido ou uma ‘mera’ acusação há de implicar? Não deve implicar. E isto não significa menos respeito ou menosprezo por quem tem a função de constituir arguido e acusar. Nada disso, deixemo-nos de polarização, leituras rasteiras ou generalizações. Significa só colocar tudo no seu sítio, apenas isso.
Cada um, claro, pode fazer o seu juízo, legítimo, acerca de continuar a ter condições ou não. O que não se pode é achar que é normal, natural, ou mesmo inevitável, ir embora só porque me dizem suspeito ou indiciado. E não é só porque uma coisa é uma coisa e outra é outra. É também porque essa relação de causa-efeito pode abrir a porta a todo o tipo de tentações e manipulações, bem como ao uso do processo (pelos seus agentes ou por terceiros) para outros fins que não os processuais. Pode ser, pode não ser, na maior parte das vezes até não será, mas basta a possibilidade. Na verdade, e olhando especialmente ao terreno político (embora se aplique também ao empresarial, talvez até por maioria de razão), a separação de poderes não é uma via de sentido único, mas de dois sentidos. Se a política não pode dizer à justiça o que fazer, esta também não pode, pelos processos, governar a política. E quando o faz, ou deixamos que o faça, ou queremos que o faça, algo vai mal. E há que dizê-lo e há que resistir-lhe. Mesmo que isso não soe bem e não dê imediata popularidade, ou aquele descanso provisório em que repousam os que só veem taticamente ou os que acham que só acontece aos outros. Vistas curtas, e vistas perigosas.
Advogado