Um case study

O tempo de Sócrates podia ter sido excelente para o país. Mas acaboupor ser desgraçado, em consequência de uma desmedida ambição pessoal, que roçava a paranoia.

Quantos mais anos vão passando, mais a época em que José Sócrates liderou o Governo vai ficando mais esbatida na memória. E os seus supostos crimes vão um a um prescrevendo. Por isso, é bom recordar periodicamente o que se passou. Sócrates era um político com indiscutíveis qualidades de liderança, perseverança e persuasão. Tinha determinação e energia. Lançou os polis, criou o Simplex, deu um grande empurrão nas energias renováveis.
O seu tempo podia ter sido excelente para o país. Mas acabou por ser desgraçado, em consequência de uma desmedida ambição pessoal, que roçava a paranoia.
Sócrates demoliu o país pedra a pedra. Nunca em Portugal se derreteu tanto dinheiro.

Como primeiro-ministro, estabeleceu uma rede de cumplicidades com empresários, gestores e banqueiros como Joaquim Barroca, Lalanda e Castro, Joe Berardo, Zeinal Bava ou Ricardo Salgado, que lhe permitiu acumular de forma dissimulada muitos milhões de euros, usando como ‘banqueiro privado’ o seu amigo Carlos Santos Silva.
E, à escala de um país como Portugal, construiu um poder enorme, na banca, nas telecomunicações, na comunicação social, até na Justiça.
Nunca se tinha visto nada assim.
Com a ajuda de Joe Berardo, assaltou o maior banco português, o Millennium BCP, colocando à sua frente administradores da sua confiança pessoal, vindos da CGD, como Carlos Santos Ferreira e Armando Vara.
Com a conivência de Ricardo Salgado, usou este banco para negócios ruinosos como a venda da Vivo (da PT) ou o financiamento da Ongoing, uma empresa-fantasma.
E juntando estes dois bancos ao banco do Estado, conseguiu ter influência nos três maiores bancos portugueses – BCP, BES e CGD -, com amplas ramificações no sistema financeiro e nos seguros.
Nas telecomunicações, através da golden share na PT, e a ajuda de Zeinal Bava, manipulou a maior empresa portuguesa do setor.
Na comunicação social, onde tinha a RTP e a RDP públicas, dominou o grupo Global Noticias (DN, JN e TSF), de Joaquim Oliveira.
Tentou capturar o grupo Impresa, de Balsemão, através da dita Ongoing, de Nuno Vasconcellos.
Procurou comprar a TVI, através da PT – um negócio frustrado no último momento por intervenção de Cavaco Silva,
Na Justiça, estabeleceu uma relação de grande proximidade com o procurador-geral da República, Pinto Monteiro, que se tornou seu ‘anjo protetor’, de mãos dadas com o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento.
Ora, controlando um amplo setor da banca e dos seguros; a maior empresa de telecomunicações; vários meios de comunicação social; beneficiando da proteção de uma parte da Justiça; liderando o maior partido português, o PS, o Governo e o Parlamento, Sócrates tinha o país na mão
Parece impossível como, num país da Europa, um homem conseguiu concentrar em si tanto poder.
Mais parecia uma república das bananas – das quais, aliás, se aproximou, fazendo estranhos negócios com o ditador Chávez.

Mas sendo isto impressionante, faz quase tanta impressão o modo como José Sócrates tem fugido às malhas da Justiça – num processo que, ainda por cima, está muitíssimo bem documentado, reconstituindo o rasto do dinheiro e provando por A+B que uma soma rondando os 35 milhões de euros, supostamente propriedade de Carlos Santos Silva, era afinal de José Sócrates.
E tudo isto mercê de um mecanismo rudimentar.
Os dinheiros destinados ao ex-primeiro-ministro eram depositados em nome de Carlos Santos Silva, depois Sócrates fazia levantamentos através do seu motorista João Perna, dizendo que eram ‘empréstimos’ do amigo.
Ou comprava, em nome de Santos Silva, bens como o andar em Paris – sobre os quais dispunha e cuja decoração decidia. Este processo já prescreveu.

Ora, toda esta história deve ser estudada a fundo, para não poder repetir-se. Não poder repetir-se a nível de projeto de poder – juntando Governo, bancos, telecomunicações, grupos de media – e não poder repetir-se depois na Justiça. É inacreditável como têm sido possíveis tantos adiamentos, tantos recursos, tantas reclamações, com o único fito de arrastar o processo. Passaram 13 anos sobre a saída de Sócrates de S. Bento e o julgamento não se sabe quando será – se se fizer.
Com a preocupação de dar tantas garantias aos arguidos, o legislador criou um labirinto onde um homem esperto, com dinheiro e bons advogados, consegue arrastar um processo indefinidamente.
O resultado está à vista: este caso já levou boa parte do país a não acreditar na Justiça.
Repito: estude-se o processo Marquês a fundo, peça a peça, prova a prova, recurso a recurso, decisão a decisão.
Ele deve tornar-se um case study – do qual a Justiça portuguesa, se quiser, poderá retirar amplos ensinamentos e melhorar muito o seu funcionamento.
Ao menos que, de tanto mal causado ao país, este beneficie alguma coisa.