A justiça não pode andar no escorrega do parque infantil frequentado pela classe política, ou corre o risco de ficar com a bata e os calções rotos e borrados pela estrumeira dos animais domésticos que também ali convivem.
Vem isto a despropósito do almirante Gouveia e Melo.
O submarinista podia até ter nascido com rabo de porco, rejeitar à nascença o leite materno em troca de terra húmida, fazer magias tenebrosas com olhos, línguas e dentes mal deu os primeiros passos e, por tudo isto e outras lendas que ainda estão por nascer, nunca poder vir a ser o Presidente dos consensos, dos diálogos que Portugal, com um governo em mínimos, tanto precisa, como dizia há tempos Marques Mendes, num transe de perdedor, do seu bote de campanha (Leia-se SIC dominical).
Neste país – ou paísa, como diria o poeta O’ Neill – é assim. Ontem herói, hoje vilão, no Natal ladrão e no ano que vem Satanás ou arguido. E isto dá que pensar!
Vamos ver, então, quem tornou Gouveia e Melo, personagem até há bem pouco tempo desconhecida no mundo civil, num possível candidato a Presidente da República.
Em primeiro lugar, António Costa. Perante um SNS já em estado vegetativo e sem um cérebro com capacidade coordenadora no meio da devastação pandémica, é o então primeiro-ministro quem vai buscar o marinheiro, adiando a sua passagem, já prometida, a CEMA (Chefe do Estado Maior da Armada). Gouveia e Melo aceitou o adiamento na carreira e rapidamente oleou a máquina. Os portugueses, mesmo os mais reticentes, levaram a pica e ficaram imunizados, e o seu nome galgou fronteiras, sendo dado a nível europeu como exemplo a seguir.
Vieram as primeiras sondagens. Gouveia e Melo entra no top. Marcelo Rebelo de Sousa que, com beijocas, missas e responsos estava até aí no coração dos portugueses, não gostou. Saiu a despique, para fazer número, surgiu em postos de vacinação ao lado do vacinador e perdeu.
Gouveia e Melo terminou a missão perante aclamação geral e voltou para o seu canto. Mas Marcelo tornou-o inesquecível. Fez de tudo para que o outro não chegasse a CEMA, lugar que lhe fora prometido. Não tinha hipótese. O Governo tinha uma dívida da gratidão para com o almirante que, entretanto, esqueceu porque é militar.
Marcelo bem podia ter sossegado. Ficado por aí. Deixar cair o marujo no anonimato destas coisas castrenses. Mas não. Digamos que dormia em cópula perfeita com o fantasma do outro. Usou os media amigos. Colocou notícias. Tinha o seu próprio sucessor. Há pouco, o semanário Expresso trazia o engodo. Gouveia e Melo até aceitaria ser reconduzido como CEMA se o atual Governo lhe ofertasse dois submarinos. Talvez à linha e decorados com meia dúzia de berlindes. Conversa para tolo, mas era óbvio que, pelo menos naquele momento, o executivo já tinha um candidato, e, com prebendas, pressionava o almirante, que estava para passar à reserva em março, a permanecer no cargo. Com o próprio a desmentir a notícia, surge um enviado especial. Nos labirintos do poder, há exercícios que apenas servem para abrir telejornais. O ministro da Defesa, Nuno Melo, convida Gouveia e Melo para um tête-à-tête num bar lisboeta. Queria saber se desejava ser reconduzido. E ele, que não. O almirante calou-se. A educação militar exige reservas. Seria o primeiro-ministro a dar a notícia. Montenegro, claro, transmitiu-a em primeira mão ao principal interessado: Marcelo Rebelo de Sousa. E a notícia saiu na SIC. Com apenas um dado novo que se revelaria ser fruto de simples adivinha: Gouveia e Melo apresentaria a sua candidatura em março.
E tem sido isto, todos os santos dias, e muito antes das quadras festivas. Os políticos, já se sabe, nada têm a dar e temem o que sai fora do seu parque das merendas. E as magistraturas também tomam parte do divertimento? Quando se soube que Gouveia e Melo ia passar à reserva, tiro no submarino. A justiça no seu trem lento, é desta vez célere. A 19 de dezembro, sai o acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul que, contrariando outros tribunais superiores, anulou os castigos praticamente de todos os marinheiros do NRP Mondego sem deixar de dar uma saraivada ao CEMA, acusando-o de ‘atos ilegais’ por ter mantido a suspensão dos militares após o recurso destes. E está montado o baile até ao próximo corridinho. Parafraseando Jorge Coelho, ‘quem se mete com a malta leva’.
Cheira a almirante, cheira a enxofre
Gouveia e Melo terminou a missão perante aclamação geral e voltou para o seu canto. Mas Marcelo tornou-o inesquecível