E agora, Marcelo?

Montenegro sabe que não ganhará nada em ligar o seu destino ao de um Presidente que está em fim de mandato, com a popularidade em baixo, e pelo qual os sociais-democratas não morrem de amores.

Marcelo Rebelo de Sousa é um homem com óbvias qualidades. É inteligente, bem preparado em questões constitucionais, rápido a apanhar as ideias no ar, e tem uma inesgotável energia. Pelo que me dizem, deixa de rastos as pessoas que trabalham com ele e os jornalistas que o acompanham. Mas sempre tive dúvidas sobre se teria as qualidades indicadas para ser Presidente da República.
Não tem um perfil minimamente institucional.
É mesmo o oposto: gosta de pregar partidas, de uma boa história mesmo que não seja verdadeira, de uma intriga saborosa.
Tudo isto lhe está na massa do sangue e sempre foi assim.
Também há nele um lado humano que contrasta com esta maneira de ser um pouco leviana.
Faz visitas a hospitais sem levar consigo a comunicação social, conforta doentes terminais.
Marcelo é, pois, uma personagem complexa que integra características aparentemente contraditórias.

O seu pai foi uma das figuras mais próximas de Marcello Caetano, ele próprio foi muito protegido por este quando Baltazar Rebelo de Sousa foi governador de Moçambique, indo comer com muita frequência a sua casa, mas depois do 25 de Abril apressou-se a dar vivas à revolução e aos capitães que depuseram Caetano.
Não duvido das suas convicções democráticas, mas poderia ser um pouco menos efusivo nos aplausos ao golpe militar.
Não sei como a família, com o pai à cabeça, e o próprio Marcello Caetano, encararam esse comportamento.
Eu confesso que me senti por vezes um pouco chocado.
Foi ministro de Balsemão, que o acusava de sair dos Conselhos de Ministros para ir à casa de banho mas, na realidade, ia telefonar a jornalistas a contar o que estava a passar-se.
Cavaco Silva nunca o convidou para o Governo, porque não confiava nele.
Foi líder do PSD mas não aqueceu o lugar.
Nunca conseguiu ter no partido um grupo de apoiantes fiéis, porque ninguém sabia o que ele iria fazer no momento seguinte.
Com os seus comentários na TV atingiu enorme popularidade, e, quando Cavaco Silva chegou ao fim do mandato, era Marcelo quem se apresentava como o seu óbvio sucessor.
Os reformados estavam zangados com Cavaco por causa de um comentário que fizera sobre as pensões de reforma, e muitos portugueses estavam cansados da sua secura e rigidez.
Ora, Marcelo Rebelo de Sousa fazia, em relação a Cavaco Silva, o contraste perfeito.
Aproximava-se das pessoas, era falador, bem-disposto e descontraído.

O primeiro mandato correu-lhe bem, foi designado como o ‘Presidente dos afetos’, cativou os portugueses com a sua bonomia, os seus defeitos ficaram na penumbra e atingiu níveis de popularidade só comparáveis aos de Mário Soares.
Mas houve um senão: a sua legitimação da ‘geringonça’ e a cumplicidade com António Costa não caíram bem no PSD.
Como é que um membro fundador do Partido Social-Democrata apoiava um Governo assente num acordo entre o PS, o BE e o PCP, que ainda por cima desalojara do poder a coligação que ganhara as eleições, liderada por Pedro Passos Coelho?
Esta foi sempre uma pedra no sapato dos militantes sociais-democratas, que nunca lhe perdoaram.
O segundo mandato está a correr pior.
Marcelo Rebelo de Sousa deixou a sua palavra depreciar-se.
A incontinência verbal traiu-o.
Às vezes já se presta pouca atenção ao que o Presidente diz.
E depois houve o ‘caso das gémeas brasileiras’.
Deve dizer-se que, de todos os supostos ‘pecados’ de Marcelo, este foi aquele em que ele teve menos responsabilidade.
Mas a política é assim, cruel, e a sua popularidade caiu a pique.

Vem tudo isto a propósito do seu discurso de Ano Novo. Marcelo Rebelo de Sousa lamentou que Luís Montenegro não tenha estabelecido com ele a ‘cooperação estratégica’ que manteve com António Costa. Mas agora é tarde para isso. Montenegro acha que não ganhará nada em ligar o seu destino ao de um Presidente que está em fim de mandato e com a popularidade em baixo. Por outro lado, sabe que hoje, no PSD, ninguém morre de amores por Marcelo.
A Marcelo Rebelo de Sousa aconteceu o que outros políticos já sofreram: perdeu a sua base natural de apoio e não conquistou outra.
Porque não será a esquerda que irá ajudá-lo neste ano que lhe resta em Belém.