Deitados na relva ou da necessidade da Paz

Se uma guerra é impensável, não nos devemos preparar para ela, antes fazer todo o possível para a evitar.

Deitados lado a lado na relva, enquanto observavam o fogo-de-artifício que comemorava o 4 de Julho, dois antigos inimigos – um espião americano e outro russo -, agora irmanados por já estarem fora de serviço e pelas muitas recordações mútuas, comentavam episódios passados.
Confessavam um ao outro que, para valorizarem o seu papel, tinham empolado certos perigos. A cena faz parte de uma obra de John Le Carré, e descreve uma atitude frequente em quase todas as profissões: a de tentar ‘vender’ a sua grande importância, a sua indispensabilidade.
Atualmente assistimos a um processo semelhante.
Não dizendo respeito a aspetos pontuais mas a larga escala, capaz de afetar as vidas dos europeus.
Responsáveis políticos e militares afirmam que uma guerra com a Rússia é inevitável, ou pelo menos muito provável. E que, por isso, temos de nos defender, citando o provérbio latino: ‘Se queres a paz, prepara-te para a guerra’.
Isto é: temos de estar de tal modo bem armados que os nossos potenciais inimigos, temendo a nossa força, não se atrevam sequer a atacar-nos.
E adiantam que a guerra na Ucrânia tem de continuar, pois um eventual cessar-fogo ‘legitimaria’ e ‘consolidaria’ as conquistas da Rússia, o que seria muito perigoso e apenas adiaria um confronto mais sério, eventualmente global.
Como exemplo, citam o acordo de Munique, em 1938, entre Hitler e os chefes da diplomacia inglesa e francesa, acordo esse que permitiu ao chefe alemão ocupar metade da Checoslováquia, dando-lhe confiança para, apenas um ano depois, iniciar a 2.ª guerra mundial.
Esta forma de encarar o futuro irá afetar a vida dos europeus de duas maneiras. Por um lado, desviando recursos para as indústrias de guerra. Começando por propor-se 2% do PIB, já vamos nos 5% – o que implicará diminuir os recursos destinados às reformas, à Educação, às correções ambientais, à Saúde, etc. Por outro lado, de uma forma mais insidiosa, criando as novas gerações debaixo do medo e da desconfiança (o que poderá implicar várias limitações à liberdade).
Acontece que este modo de ver o mundo, segundo o qual a segurança se baseia na força, está errada (1).
Errada a nível filosófico, mas não só, também a nível factual.
Senão, vejamos: como é patente, a Rússia, depois de um rápido avanço nas regiões ucranianas ‘russófilas’, está atascada numa guerra sem glória, avançando a passo de caracol, à custa de centenas de milhares de vidas humanas e da mobilização de 1/3 do orçamento para gastos militares.
Assim, só uma chefia totalmente insensata se atreveria a fazer um ataque global à Europa. E ainda que esse ataque começasse, usando armas ‘convencionais’, é preciso ver que a Europa tem três vezes mais população (450 milhões) do que a Rússia (que não chega aos 150 milhões), e armamento ofensivo e defensivo muito poderoso, o qual seria utilizado sem restrições (diferentemente do que sucede na Ucrânia). E se, ainda assim, esse ataque ocorresse, e a sorte da guerra começasse a correr mal para um dos lados – isto é, se a Europa ou a Rússia estivessem a ponto de ter de se render -, seria grande a tentação de recorrer a armas atómicas, levando a um cenário apocalíptico que é difícil sequer imaginar (2).
Isto é: um ataque da Rússia à Europa é altamente improvável, pelo que a ideia de que uma cedência a Putin passaria a mensagem de que este poderia partir para mais conquistas (à semelhança do que fez Hitler), cai pela base (3).
Deste modo, há que fazer o raciocínio ao contrário: se uma guerra é impensável, não nos devemos preparar para ela, antes fazer todo o possível para a evitar. Para termos a Paz, com benefícios para todo o Mundo. Há problemas ambientais, sociais, sanitários, de criminalidade, etc. que só se poderão resolver, ou ao menos minorar, com o empenhamento de todos os países (4). E isso só se conseguirá se não olharmos os outros como inimigos.
Será fácil desfazer o clima de desconfiança? Certamente que não. E implicará fazer acordos difíceis, ultrapassando nacionalismos, teimosias, egoísmos. Mas como é o único caminho razoável a seguir, há que tentar. E sendo nós os ‘bons’, sejamos os primeiros a estender a mão.

  1. A corrida aos armamentos é uma corrida sem fim, pois para cada nova arma são inventados antídotos.
  2. Numa hipótese otimista, os militares encarregados de efetuar os disparos não soltariam os foguetões, tal como aconteceu em Portugal no 25 de Abril, entre os tanques de Cavalaria 7 e os de Santarém. Mas mais vale não arriscar nessa possibilidade: bastaria que uns poucos cumprissem as ordens fatais para que o Mundo entrasse em convulsão.
  3. No tempo de Hitler não existiam armas atómicas, pelo que o ditador nazi baseou-se em dispor de um exército que, comparativamente aos outros exércitos europeus, era muito forte – veja-se a série de fulgurantes conquistas das tropas alemãs no início da 2.ª guerra mundial -, ao contrário do exército russo de hoje, que patinha na Ucrânia.
  4. Estes aspetos nunca são referidos pelos comentadores.