Com as projeções VINCI, a concessão do aeroporto Gatwick-650ha vale mais 50% que a do mega Alcochete-5.000ha.
É uma característica nacional, gostamos de ouvir que não se vai gastar dinheiro público quando, é estranho, sabemos, no íntimo e por experiência própria, que não é assim. É, por isso, que se continua a abusar desse engano para nos convencer da bondade dos projetos/negócios nebulosos, mesmo após o país ter tido três resgates financeiros em apenas trinta e cinco anos (1977, 1983 e 2011).
No aeroporto de Lisboa é preciso desemaranhar o que é simples, mas relevante:
1. Um ‘privado’ é um grupo de acionistas para o qual o valor da concessão de um serviço público por um período fixado é, apenas e só, função do potencial lucro que ela pode gerar. O pagamento é desligado do investimento antes feito no serviço e pode ser negativo (compensação financeira) ou positivo.
2. O pagamento de uma concessão lucrativa por um certo período é receita do estado, quer seja paga em dinheiro ou em espécie. O prolongamento de uma concessão continua a ser receita do Estado e, também, a poder ser pago em dinheiro ou em espécie.
3. O risco para um privado é muito mais relevante do que para o estado, pois não pode recorrer aos contribuintes. Nas democracias, um aeroporto de raiz é de altíssimo risco em tempo, custo e receita, esta última incapaz de recuperar o investimento sob pena das taxas liquidarem a competitividade.
4. A ANA – Aeroportos (100%) foi vendida por 50 anos a um grupo privado (VINCI), que pagou 3,05 mil milhões € pelas receitas do período 2012-2062. Assim, existe um pré-2012, em que o estado podia mobilizar receitas, e um pós-2012, em que já as recebeu e gastou, de modo que é bem diferente alavancar um aeroporto ‘me engana que eu gosto’ antes ou depois de 2012. Uma coisa é ser ‘criativo’ com o dinheiro dos contribuintes e outra é sê-lo com o dinheiro dos acionistas da VINCI.
No pré-2012 público, o aeroporto ‘me engana que eu gosto’ era para 42 milhões de passageiros, no pós-2012 privado precisa de 140 milhões. Com projeção-2050 de apenas 42 milhões de passageiros, foi muita a criatividade para justificar «Alcochete 5.000ha-4 pistas-120mov/h», bem patente no pós-2012 privado: para a previsão VINCI-2062 de 64M, até um aeroporto de 650ha com uma pista de alto rendimento chegava (Gatwick 68M).
Com CTI após pandemia/invasão Ucrânia, em vez de a previsão-2062 baixar para 55M, (cautela privada), a ‘criativa’ CTI, para justificar Alcochete, colocou a procura acima de 140M, mas, curioso (ou não), com o cuidado prévio de eliminar a potente fusão Alverca-Portela.
O aeroporto ‘me engana que eu gosto’ a 60km por ferrovia é o pior HUB europeu em atratividade/competitividade: a mais-valia dual é hoje uma evidência; das dez cidades globais mais atrativas (Euromonitor 2024), quatro das cinco mais bem classificadas, têm dois (ou mais) aeroportos: Paris (2), Madrid (1), Tóquio (2), Roma (2), Milão (2), N. Iorque (3), Amesterdão (1), Sidney (2), Singapura (1), Barcelona (1) e, nota comum, todas elas têm um até 10-15km do centro.
Com a fusão dos aeroportos Alverca-Portela, a porta ‘in-out’ continua a ser na Portela a 5 km do centro e poupa-se em custos diretos 15 mil milhões €. A inovadora fusão foi eliminada pela CTI para só se comparar duas soluções de raiz gémeas, a mais distante europeia em Vendas Novas com a segunda mais distante em Alcochete. É surreal.
Na novela do aeroporto ‘me engana que eu gosto’, a última novidade é estender a concessão VINCI de 2062 para 2087 para pagar um aeroporto de 9 mil milhões €. Para um privado, o valor de uma concessão é função do lucro que ela pode gerar que, numa análise simples de grandes números, depende do volume de passageiros. Consideremos o habitual, a concessão é de gestão aeroportuária (que inclui as modernizações correntes).
Comparemos dois aeroportos VINCI com projeções de sua responsabilidade. O tráfego acumulado Gatwick-2062 é de 3 mil milhões de passageiros versus Lisboa-2062 com 2 mil milhões, o que significa, na ótica do privado, que a concessão do aeroporto londrino vale logo à partida mais 50%, a VINCI pagou por metade dele (3,2 mil milhões €), mais do que por todo o sistema aeroportuário português (3,05 mil milhões €).
Observemos a realidade em negócios concretos: em Gatwick, a VINCI processará o volume de tráfego em 650ha com uma pista partidas-chegadas e outra próxima (210m), perfazendo 72mov/h. Em Lisboa, para tráfego menor, a empresa propôs área-dual 640ha e duas pistas convergentes-72mov/h.
Observemos a ficção CTI: Lisboa terá mais 50-75% de tráfego (ultrapassará Madrid), por isso precisa de um mega aeroporto de 5.000ha com 4 pistas paralelas. Para a inexperiente CTI, a empresa francesa não percebe nada de aeroportos nem de dinheiro, por isso fez contas e acha que ela tem de construir até 2037 um mega aeroporto (que agora se estima quase o dobro do cálculo CTI) com a receita suplementar de uma prorrogação 2062-2087, ou seja, que a concessionária só começa a encaixar 25 anos depois.
Quem é a favor do aeroporto ‘me engana que eu gosto’ é a VINCI, porque nunca o irá fazer. A VINCI sabe que não há no mundo um único aeroporto de raiz de grande dimensão desenvolvido por um privado. Nem um. A VINCI é uma empresa francesa, por isso também sabe que num país UE um aeroporto de mais de 9 mil milhões € e carregado de ajudas públicas terá de ir a concurso, ponto final.
O aeroporto ‘me engana que eu gosto’ é bom é para a VINCI, que passa de vilão a salvador. A VINCI propôs o HUB Portela-50 milhões passageiros; contudo, não entregou o seu complicado Estudo Impacte Ambiental (EIA), confiante de que a aprovação global da sua solução seria automática com a aprovação Montijo.
O conglomerado VINCI era então o vilão sem dó nem piedade dos milhares de afetados pelo ruído acima do limite legal. Agora, a VINCI, com o aeroporto ‘me engana que eu gosto’ só disponível lá para as calendas (ou nunca), passa de vilão a salvador providencial, a quem o governo solicita que aumente a Portela para 45 milhões de passageiros (na prática os 50 milhões do seu plano) e o mantenha operacional até ao ano 2040, ou seja, o tradicional provisório-definitivo nacional.
Desta vez será diferente, a VINCI e a CTI terão de explicar a Bruxelas-EUROCONTROL as razões por que excluíram a inovadora fusão aeroportuária. Aborda-se aqui apenas o olho do furacão: a alternativa Alverca foi abatida pela VINCI (EIA-Montijo) para a sua solução ser aprovada. De facto, o ‘Reforço HUB Portela + Uso civil BA Montijo’ era problemático: Portela como HUB era ruidoso, o Montijo era perigoso no uso civil e a capacidade dual-72mov/h era abaixo do contrato (90mov/h). Com tão graves contras, a solução-concessionária não tinha hipótese contra a fusão na margem norte “Alverca-núcleo principal (75%) e Portela-citadino (25%)”, acima de 100mov/h e até mais económica.
Por isso, o EIA Montijo tinha de excluir Alverca como alternativa, o que nele foi feito alegando a impossibilidade de a nova pista Alverca operar em simultâneo com a paralela na Portela dada a distância transversal entre ambas ser só de 4.500m. Era espantoso: em Paris, VINCI é acionista de dois aeroportos próximos (Bourget e CDG) cujas pistas são paralelas e que operam em simultâneo com uma distância de 2.400m.
Com certeza que houve razões ponderosas que a VINCI terá que explicar em Bruxelas, mas o mal está feito, a fusão poderia ter avançado já vai em mais de seis anos e o aeroporto ‘me engana que eu gosto’ nunca teria ressurgido por causa da péssima solução da concessionária. Aguardemos o que Bruxelas irá dizer.