Fascismo

O que me ocupa hoje é banalização do uso dos ‘rótulos’ de fascista e nazi no discurso político contemporâneo

Escrevo-vos na semana em que se comemora o 80.º aniversário da libertação de Auschwitz. Coincidentemente, um survey da Anti-Defamation League (ADL) mostra que os sentimentos antijudaicos estão em alta em todo o mundo e em muitos campi universitários do mundo desenvolvido acha-se razoável gritar ‘Palestina do rio até ao mar’. Os horrores do nazismo são o evento moral definidor da era moderna. Os nazis foram um mal tão perfeito, e a repulsa a eles é tão universal, que criam um sentido sem ambiguidade de bem e mal. (E é talvez esta ‘perfeição’ quase laboratorial que explica que os crimes do comunismo não suscitem uma repulsa tão geral e vocal.) É, pois, inteiramente certa e justificada a preocupação com os níveis alarmantes de ignorância sobre o Holocausto e sobre o nazi-fascismo e, também, com o recrudescimento do antissemitismo, sobretudo entre os mais jovens.
Mas o que me ocupa hoje é banalização do uso dos ‘rótulos’ de fascista e nazi no discurso político contemporâneo. Orwell escreveu em 1946 – «A palavra fascismo não tem hoje qualquer significado que não seja ‘algo que não desejável’». Também agora a acusação de fascista é arremessada com cada vez maior frequência seja a propósito da eleição de Trump, de uma saudação de Musk, dos discursos da AdF ou, apenas, como forma de cancelamento de qualquer oposição mais acentuadamente nacionalista ou de direita ou, simplesmente, de uma opinião com a qual não se concorda. O rótulo tem sido aplicado a Trump, Milei, Meloni ou Netanyahu, como antes deles o foi a Ronald Reagan ou George W. Bush. Também por cá, André Ventura é frequentemente acusado de ser um ‘facho’ e qualquer reticência relativamente aos volumes de imigração, ao multiculturalismo ou à segurança pública são encaradas como suspeitas de revelarem simpatias ocultas por essas forças tenebrosas.
Poucos termos foram e são, assim, tão amplamente usados e abusados quanto o fascismo. Mas a imprecisão que se associou à palavra não é resultado de nenhuma falta de atenção académica, pois existe uma enorme literatura sobre o assunto, que não sou de todo competente para escalpelizar. Socorro-me, por isso, das palavras de John Kelly, ex chief of staff de Trump, por ser alguém que trabalhou de perto com um alegado fascista. Segundo a sua definição no NYT, «trata-se de uma ideologia política autoritária e ultranacionalista de extrema-direita e um movimento caracterizado por um líder ditatorial, autocracia centralizada, militarismo, repressão forçada da oposição, crença em uma hierarquia social natural». Algo que dificilmente, julgo, se pode aplicar a algum regime atual com exceção, talvez, da Coreia do Norte ou da Rússia de Putin.
Porque é que me parece importante refletir sobre o uso do termo ‘fascista’. Em primeiro lugar pela memória histórica. A banalização do termo retira-lhe poder definidor e, de alguma forma, trivializa os crimes e horrores que lhe estão associados. Se o fascismo hoje está por todo o lado porquê especial atenção a Auschwitz? Depois, ser um dos epítetos mais populares e flexíveis no discurso político contemporâneo, retira-lhe impacto; trata-se, no fundo, da velha história de ‘gritar lobo’. Um número crescente de jovens volta-se para a direita; e quem pode culpá-los, quando há anos termos como ‘racista’, ‘supremacista branco’ e argumentos de ‘reductio ad Hitlerum’ são usados com tanta frequência e indiscriminadamente que não têm mais peso algum.