O Matuto e Os Bichos

Depois de pacientes observações; depois de aturadas conversas na linguagem dos bichos; depois de minuciosos apontamentos; o Matuto colocou a seguinte questão à bicharada que faz das ‘Pontes’ o seu lar: O que pensas do Homem?

O Matuto é um abalizado sociólogo. Mais. O Matuto entende de zoologia. Observar o comportamento dos bichanos é uma arte. Aqui na ‘Casa das Pontes’ – modesta habitação do Matuto e de sua gentil esposa, Dona Sirlei – o passatempo favorito é observar a bicharada. Sapos, lagartos, rolas, pardais, morcegos, papagaios, mosquitos, abutres, tucanos, caracóis, moscas… são visitas constantes das ‘Pontes’. Lugar ideal para o Matuto investigar in loco os hábitos animalejos.  

O Trancoso – amigo do Matuto que vive na gélida Toronto – é um exímio encantador de esquilos. O Matuto – que vive nos Trópicos – tornou-se encantador da fauna que habita nas ‘Pontes’. Depois de pacientes observações; depois de aturadas conversas na linguagem dos bichos; depois de minuciosos apontamentos; o Matuto colocou a seguinte questão à bicharada que faz das ‘Pontes’ o seu lar: O que pensas do Homem?  O mosquito foi o primeiro a zumbir a sua opinião: “O Homem é um animal daninho e cruel que cospe veneno por meio de jactos mortíferos que saem duma lata alongada. Sem essa arma ele é inofensivo e a sua carne é saborosa”. O Matuto detesta melgas (pernilongo, no Brasil, por favor) e tem grande prazer na expressão “ganda melga”. Mas, adiante que se faz tarde! Logo o sapo predispôs-se a coaxar a sua ideia: “O belo para o homem é a mulher. Todavia, eu acho que a bela, bem que poderia dar-me já, o tal beijo que me transformaria em príncipe”. A Belinha – a frequentadora conservadora das ‘Pontes’ – achou esta opinião muito deslavada e até ofensiva do estatuto feminino: “que inconveniente! Batráquio querendo ser gente!” Já o Marcello – a visita revolucionária das ‘Pontes’ – achou tudo muito bem: “é preciso sublevar as massas oprimidas”. Entretanto, já a onça opinava: “O Homem é meu amigo”! A mosca esvoaçou a sua contribuição: “O Homem é um porcalhão. Eu passo a vida a limpar a sujeirice que ele faz”. O papagaio, pigarreou, e papagueou: “Fala pra caramba! A fémea, essa quando se junta aos magotes, é danadinha para falar”.  A Belinha achou desnecessária esta argumentação. No entanto, o Matuto é apenas um amanuense da crítica dos bicharocos. As animálias precipitaram-se querendo falar ao mesmo tempo. O Matuto instaurou um sistema de senhas para colocar ordem na coisa.

Os pardais e as rolas chilrearam convicções semelhantes: “O Homem é uma criatura implume (sem penas, esclarece o Matuto). Alguns dos machos lavam a cara dos pelos enquanto outros exibem vaidosamente um amontoado de pelos. Não há coerência”! Os caracóis, como é natural, analisaram as capacidades motoras do Homem: “É ágil que se farta”! A formiga disse: “Um autêntico gigante”; enquanto o elefante contradisse: “Um mero pigmeu”. Aqui a Belinha abespinhou-se. “É claro que depende da perspectiva. Esse relatório carece de apoio científico”. “Precisamente” – atalhou o Matuto – “estamos no âmbito da ciência social, ou digamos animal. As alimárias têm hábitos e ideias peculiares. Nós só observamos”. O Marcello entusiasmou-se: “libertem as massas… haammm, os animais acabrunhados”. A Belinha deu uma gargalhada cínica.

O tucano chegou-se à frente considerando que o Homem “tem boca pequena”, sendo interrompido pelo abutre que ameaçou: “quero é que caia morto. Dará um bom jantar”! O lagarto empoleirado na parede e de cabeça para baixo, sugeriu: “O Homem é escravo da força de gravidade. Se escalar só com o corpo, cai redondo no chão. Criatura desajeitada”. O caranguejo tinha uma das últimas senhas – azares de não andar em linha recta: “O Homem anda às avessas. Só quando está na carcaça metálica que ele chama carro é que consegue fazer a correcta marcha atrás. Um acrobata”! O Matuto achou piada à ideia e pasmou com a avaliação da girafa: “Uma alma deselegante. Falta-lhe a parte mais graciosa do corpo, o pescoço”.

O vírus, insolente, infiltrou-se na fila, e taxativamente afirmou: “O que é o Homem, para que eu me lembre sequer dele”? Com esta o Matuto embasbacou. Todos ficaram atordoados. Até o Marcello, num rasgo de fé, exclamou: “Misericórdia”!