Dr. Jekyll e Mr. Hyde lutavam dentro do peito de El Hombre

Waldir Cardeña, herói do Peñarol, derrubou o garoto com uma das patadas que usava em campo

Wilmar Everton Cardeña era um daqueles brutos contumazes de pai e mãe. Ia direito aos adversários e com o pé bem alto acertava em tudo o que ficasse abaixo dos adenoides. Em campo era a prepotência em pessoa; fora dele exibia um candura desarmante. Dr. Jekyll e Mr. Hyde vestindo para a eternidade a camisola n.º 5 de riscas amarelas e negras do Peñarol. Obviamente, era malquisto por todas as hinchadas dos outros clubes. Havia cânticos tão afinados como insultuosos e soezes nos campos onde aparecia como forasteiro. E ele, impávido. Boina preta na cabeça larga de patrão dos meios-campos, atirando-se de corpo e alma sobre todos os seus opositores, talvez mais corpo do que alma, derrubando-os como pinos de bowling e reduzindo-os à pequenez de pobres infelizes que se aterrorizavam perante El Hombre, como ficou conhecido pela imprensa graças à imaginação desse grande jornalista que foi Pablo Aladino Puseya. Áspero, soltava um grito e a sua equipa unia-se, fechava caminhos e abria estradas, defendendo e atacando como os cilindros do motor de um automóvel bem oleado. E, no entanto, Roberto Alfredo Fontanarrosa, um dos mais salientes escritores argentinos desse tempo, El Negro Fontarrosa, que alimentou durante anos o mito de Wilmar, escreveu assim sobre ele: «Yo entiendo que no es sencillo intuir el gesto amable o la frase cordial en un hombre que hizo del encontronazo cruel, la pierna arriba o el gesto acerbo, una marca personal e indeleble a lo largo de su prolongada campaña». Jekyll ou Hyde. Ou os dois num só.
Havia um ponto escuro em cada irís dessa fera que desprezava as cicatrizes com que o marcavam ao fim de cada batalha. Porque Cardeña parecia nunca se cansar de guerra. Parecia, ouçam bem o que escrevo! Mas a guerra tornava-o denso, estranho, silencioso. Como se estivesse continuamente a preparar-se para a seguinte. E assim, semana após semana, mês após mês, ano após ano. A mágoa mastigada, a revolta amarrada, a ânsia contida. Sofria com as derrotas como se lhe tivesse amputado uma perna. Uma houve que mexeu de vez com a sua invisível suavidade humana.
Conta Fontanarrosa que na véspera de um jogo frente ao Nacional, Wilmar estava particularmente sensível. Nada mais importante para alguém do Peñarol do que vencer o Nacional, vizinho do bairro de La Blanqueada, usando o vermelho da bandeira de José Gervasio Artigas e da Liga de los Pueblos Libres, essa ideia de fazer do Uruguai, da Argentina e do Brasil uma Confederação de Estados. Não era o confronto que o deixava assim, num estado de quase prostração. Recebera uma carta de um menino doente, amarrado à cama do Hospital Maciel, na Ciudad Vieja, com vista para o delta doRio da Prata. «O Director fatal que lhes ordena», escreveria o meu amigo e mestre Fernando Assis Pacheco. Ou a morte sentada aos pés da cama…
El Hombre bem pôde alargar a garganta e rebentar com as cordas vocais incitando os seus para a vitória. Não, nesse dia Deus não estava ao lado de Los Mirasoles. Uma barreira inultrapassável ergueu-se do outro lado de la cancha. Era o orgulho que, com camisolas diferentes, se combatia a si próprio. A raiva contida de El Hacha Cardaña, a Flama do Uruguai que calara cento e cinquenta mil vozes no Pacaembú na final da Copa Roca, fê-lo chorar. E um silêncio, no balneário, respeitou aquele momento sublime de desespero sussurrado.
Como houvera prometido, no dia seguinte Wilmar foi visitar o menino condenado com uma bola assinada por toda a equipa debaixo do braço. Aliás, toda a equipa foi com ele e com a bola. Em redor do quarto havia uma multidão de cavaleiros dos relvados. De bata branca, com a agulha do soro espetada no braço, o garoto olhou para a bola e olhou para todos os seus heróis. E largou o berro: «Hijos de puta! Como pueden perder con eso chotos de Nacional?». Lívido, Cardeña não conseguiu falar. Mas o fedelho continuou: «Como carajo puede ser que esos putos nos hagan cuatro goles?». Vermelho, com as veias do pescoço salientes, era o contraste de Wilmar. «Hijos de mil putas! Troncos de mierda! Metanse la pelota en el culo!». E atirou a bola assinada contra a cara de Everton Cardeña. Mr. Hyde subiu-lhe à cabeça e desferiu uma patada no peito do rapazinho. Até hoje ninguém sabe onde Fontanarrosa foi buscar esta história macabra.