O FC Porto tem de se refundar

Depois de mais de 40 anos em que Pinto da Costa montou uma formidável máquina sob determinadas bases, o FC Porto tem de ser refundado. Tudo tem de mudar no clube, desde o topo à base. Querer mudar apenas a cabeça será uma enorme ilusão que só adiará o problema.

A vitória esmagadora de André Villas-Boas nas últimas eleições para a presidência do FC Porto, e o entusiasmo que provocou, mostram uma coisa: os portistas acreditavam que substituíam um presidente velho e gasto por um jovem cheio de energia e tudo poderia continuar como dantes.
A verdade é que a equipa de futebol vinha a perder gás – nas últimas quatro épocas só fora campeã uma vez – e percebia-se que tinha de haver uma mudança. Foi isto em grande parte que impulsionou o sucesso de Villas-Boas. Concretizado este, o Porto voltaria naturalmente aos triunfos.
Agora começa a perceber-se que não será assim tão fácil. Muitos portistas começarão a ver que muita coisa terá de mudar no clube. Não bastou mudar a cabeça e manter o corpo – há que mudar possivelmente tudo.
Jorge Nuno Pinto da Costa há muito que entrara na galeria dos mitos. Foi presidente do FC Porto durante 42 anos. Transformou um clube de província num clube nacional, arrecadando títulos sobre títulos em Portugal, e ganhou depois dimensão internacional, ao ponto de ser campeão da Europa e do mundo.
Não me recordo de nada assim.
Esta transformação radical passou por muita coisa. Passou por uma mudança de mentalidade dos dirigentes. Passou por uma relação diferente com a cidade e com o país. Passou pela criação de um espírito próprio na massa associativa. Passou pela constituição de uma claque agressiva no seio da qual se desenvolveu uma verdadeira mafia, que tinha o presidente como ‘padrinho’. Passou pela presença subterrânea nas instituições do futebol, nos árbitros, na justiça.
O escândalo Apito Dourado, em que ficou à vista de todos um esquema institucionalizado de corrupção dos árbitros como nunca se vira no futebol português, conseguiu ser abafado por razões nunca esclarecidas mas que mostraram uma cumplicidade entre a Justiça e o clube, que o colocava ao abrigo de todas as condenações.
Na cidade impôs-se um ambiente de medo. Árbitros com lojas abertas no Porto, como Soares Dias, viram os seus estabelecimentos ameaçados ou atacados, depois de arbitragens que os sócios do Porto consideraram menos favoráveis.
Comentadores afetos ao Porto viram os seus automóveis vandalizados. depois de intervenções televisivas de que os sócios não gostaram, como aconteceu a Rui Moreira.
Jornalistas foram agredidos.
Conto, a propósito, um episódio desconhecido.
Certo dia, era eu diretor do semanário Expresso, um jornalista veio queixar-se-me de que fora agredido a soco dentro do autocarro do FC Porto, numa viagem de Lisboa para o Norte. O dito jornalista, de que omito o nome mas que viria a ter importantes lugares em órgãos ligados ao FC Porto, era adepto do clube e com frequência era convidado para viajar com a equipa no respetivo autocarro. Ora, dessa vez, fez qualquer crítica de que o capitão (cujo nome também não revelo, que me desculpem os leitores) não gostou, e este agrediu-o violentamente.
Como diretor do jornal, enviei então uma carta formal a Pinto da Costa, narrando o sucedido (que ele necessariamente conhecia) e exigindo um pedido de desculpas. Ora, um tempo depois, recebi a resposta: o presidente dizia cinicamente que nada sabia do caso e nada havia a desculpar.
Fiquei naturalmente indignado e decidi avançar com uma queixa ao Ministério Público. Ora, qual não é o meu espanto quando o jornalista me vem pedir para não o fazer. Disse-lhe que era uma questão de princípio; e então, estupefacto, ouvi da sua boca o seguinte:
– Se assim for, eu nego tudo.
Desconheço se foi ameaçado ou simplesmente desistiu tendo em conta o seu amor clubista. Mas isto mostra bem o ambiente que se vivia no clube.
E é este ambiente que tem de mudar de alto a baixo. Não bastou mudar o presidente e a direção. Não bastou mudar a cabeça. Vai ser necessáriomudar o corpo.
A relação do clube com as instituições vai ter de ser diferente. A relação com os subterrâneos do desporto e da justiça vai ter de ser diferente. A mentalidade da massa associativa vai ter de ser diferente. A mafia e as suas ramificações na cidade vão ter de acabar.
Não quero com isto dizer que o FC Porto tem de deixar de ser grande. Não. O Barcelona também tem como berço a 2.ª cidade de Espanha e é um gigante mundial. Mas essa nova grandeza do FC Porto tem de ser construída sobre outras bases, outros princípios, outros valores, outra lógica. Não pode reproduzir os esquemas antigos.
Depois de 40 anos em que Pinto da Costa montou uma formidável máquina sob determinadas bases, o FC Porto tem de ser refundado.
Tudo tem de mudar no clube, desde o topo à base. Querer retocar apenas o que aparentemente está mal será uma enorme ilusão que só adiará a solução do problema.