A teoria da ferradura

Se os partidos do centro, guardiões da democracia e da liberdade, permitirem que a ferradura os estrangule, a AR não servirá como fórum de compromisso.

Marcelo Rebelo de Sousa não respondeu à Comissão Parlamentar de Inquérito ao ‘caso das gémeas’, invocando que não há dados novos que o justifiquem. Não é o Presidente que ignora a Assembleia da República: é esta que se expõe à humilhação com a ‘nega’ de Marcelo. As suas principais competências são as de legislar e fiscalizar a atuação do Governo, ainda que possa exercer essas funções relativamente a outros órgãos. Sucede que, nos últimos anos, e não apenas nesta legislatura, dedica tempo excessivo e toda a sua energia a promover audições e inquéritos, tentando substituir-se ao poder judicial.

Nem Aguiar-Branco, com toda a sua ponderação, consegue evitar episódios vergonhosos entre deputados, que contribuem para a decadência da imagem da instituição aos olhos dos cidadãos. O ‘caso das malas’ foi exemplar: face ao comportamento expectável de um senhor que, independentemente do que venha a ser apurado, provou que nunca teve condições para ser deputado, quer a reação do Chega, em tom de ameaça física, quer a lamentável graçola de Rui Tavares, ao exibir a sua mochila, demonstram que os populismos de direita e de esquerda estão a transformar a Assembleia da República num circo.

E se dúvidas houvesse quanto à convergência entre partidos populistas, veja-se como o Chega logo de seguida apoiou uma iniciativa do Livre que propunha que, em cada organização, o salário mensal mais alto não pudesse exceder o salário anual mais baixo. Este é apenas mais um episódio que valida a ‘teoria da ferradura’. Enunciada por Jean-Pierre Faye no livro O século das ideologias, preconiza que as parecenças totalitárias e autoritárias entre os partidos de extrema-esquerda e extrema-direita se sobrepõem às diferenças ideológicas. Ou seja, que os extremos se aproximam e interagem numa ferradura, manipulando a opinião pública, coartando as liberdades individuais e coletivas, invocando a superioridade moral e ética das suas lideranças, atacando a separação de poderes.

Este ataque é visível na multiplicação de comissões de inquérito que nada apuram de relevante e são meros exercícios inquisitoriais que tentam substituir a Justiça, naquilo a que Jürgen Habermas chamou de «espetáculos de aclamação», em que o acontecimento transcende o argumento. Isto sucede mesmo quando os factos atrapalham a história, em episódios onde «a comunicação entre os atores é fingida, uma mera ocasião para se prestigiar aos olhos do público, o verdadeiro destinatário da sua atuação», conforme descreveu Daniel Innerarity.

Mal vai o reino quando as cortes concorrem com a inquisição. De facto, deveria ser outra a prioridade da Assembleia da República. Sem maiorias absolutas ou acordos estáveis, a democracia tem de ser capaz de resolver os desacordos programáticos através de compromissos, que devem ser conseguidos através de negociação no seio parlamentar. É sempre mais fácil, e mais interessante no curto prazo, salientar o que divide as forças partidárias, mas tem de haver uma corresponsabilização entre quem governa, ou anseia governar. Se os partidos do centro, guardiões da democracia e da liberdade, permitirem que a ferradura os estrangule, a Assembleia da República não servirá como fórum de compromisso. Será apenas a sede da ingovernabilidade até que, por exaustão do sistema, como sucedeu nos finais da I República, num ambiente internacional tão parecido com o do presente, surja um dia um homem providencial que, sob os aplausos de quem prefere a ordem à bagunça, dispense os serviços do Parlamento.