A vida e a morte não são inimigas, mas companheiras que desenham juntas o sentido da nossa existência. Nós, os humanos, somos os únicos seres capazes de observar esse quadro de forma consciente, transformando o simples acto de existir numa narrativa repleta de paradoxos. Como escreveu José Saramago: “Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir.”
A vida apresenta-se como um breve intervalo, um clarão entre dois silêncios profundos. Nascemos num mundo que não escolhemos, herdamos histórias alheias e escrevemos as nossas em letras temporárias. No entanto, é nesta fugacidade que reside a sua beleza: como a flor de lótus, que desabrocha na lama, a vida ganha sentido precisamente porque é transitória. O problema, como diria o filósofo Soren Kierkegaard, é que muitos vivem “de costas voltadas para a morte”, mergulhados numa ilusão de permanência. Adiamos sonhos e gastamos horas em trivialidades, esquecendo-nos de que a vida é finita. E é justamente essa finitude que nos desafia a amar, criar e fazer escolhas.
Ao longo da história, as civilizações encontraram formas de lidar com o medo da morte. Em Portugal, as procissões da Semana Santa mostram como vida e morte se entrelaçam num ritual solene: a ressurreição não nega a crucificação, mas lembra-nos que só reconhecemos a luz porque conhecemos a escuridão. No entanto, nas sociedades modernas, temos tendência para esconder a morte, seja atrás de paredes hospitalares, seja através de palavras suaves como “partiu” ou “descansou”. Será esta fuga uma forma de protecção ou uma negação que nos empobrece?
Outras culturas oferecem exemplos inspiradores sobre como integrar a morte na vida. No México, o Día de los Muertos celebra os antepassados com cor e alegria, enquanto no Japão, o festival Obon reúne famílias para homenagear os seus mortos. Até tradições portuguesas antigas, como o “Chorar as Almas”, mostram uma ligação mais íntima com o luto. Estes rituais ensinam-nos algo essencial: a morte só assusta quando é isolada da vida.
Paradoxalmente, Portugal vive hoje uma revolução silenciosa na sua relação com o fim. A aprovação da lei da morte medicamente assistida (eutanásia) em 2023 abriu um debate sobre a autonomia individual e a dignidade no final da vida. Para uns, trata-se de um avanço nos direitos pessoais, para outros, levanta questões éticas profundas sobre os limites do valor da vida humana e da sua sacralidade. Paralelamente, os cuidados paliativos — ainda insuficientes no país — procuram devolver humanidade ao último acto da existência, recuperando uma sabedoria antiga: morrer também faz parte da vida.
A tecnologia, por sua vez, traz novos desafios a esta relação com o fim. Hoje falamos em prolongar artificialmente a vida através da biotecnologia ou até em criar “fantasmas digitais” — perfis nas redes sociais ou avatares alimentados por inteligência artificial que simulam uma espécie de imortalidade virtual. Mas até onde podemos ir sem perder aquilo que nos torna humanos? Se é a morte que dá sentido à vida, será tentar negá-la um triunfo ou uma armadilha?
A arte, sempre sábia, responde através da eternização do efémero. Camões imortalizou amores e batalhas em versos, enquanto Paula Rego pintou o grotesco e o sublime da condição humana. A própria Amália Rodrigues, ao cantar o fado, transformou a saudade — essa mistura de dor e memória — num hino à imortalidade emocional. A arte lembra-nos que há formas de transcender o tempo sem negar a nossa condição mortal.
Também na filosofia encontramos inspiração para lidar com este paradoxo. Nietzsche desafiou-nos a amar o nosso destino (“amor fati”), enquanto Fernando Pessoa escreveu: “Sinto-me nascido a cada momento / Para a eterna novidade do Mundo!” Estas ideias convidam-nos a aceitar tanto as alegrias quanto as dores da nossa existência.
As religiões oferecem outras perspectivas sobre a mortalidade. O Budismo, por exemplo, vê a morte como uma parte natural do ciclo de renascimentos, e ensina-nos que a impermanência é essencial para a libertação. O Hinduísmo também acredita na reencarnação e vê a morte como uma transição de uma vida para outra. O Cristianismo, por sua vez, com a sua promessa de vida eterna, oferece consolo através da fé na ressurreição. Cada uma destas visões molda a maneira como indivíduos e sociedades lidam com a mortalidade, oferecendo esperança, compreensão e aceitação.
Mas talvez a verdadeira sabedoria esteja na simples aceitação plena da nossa condição perene. Aceitar a morte não é render-se à escuridão, mas encontrar luz na impermanência. Vemos isto em pessoas que, perante diagnósticos terminais, descobrem uma serenidade paradoxal: deixam de correr atrás do trivial e passam a saborear o aroma do café, o sorriso de uma criança, o silêncio da madrugada. Esta é a essência do “carpe diem” estóico — não um hedonismo vazio, mas uma gratidão activa pelo momento presente. Como escreveu Sophia de Mello Breyner: “Esta é a hora em que o sol / Como um louco esbraceja no poente”.
No final, a imortalidade que verdadeiramente importa não está em vencer a morte, mas em transcender o ego. Um professor que inspira alunos, um avô que conta histórias ao neto, um artista cuja obra ecoa séculos depois — todos deixam marcas que o tempo não apaga. Até os gestos mais simples, como um abraço dado no momento certo, tornam-se sementes de eternidade.
O desafio do nosso tempo não é ignorar a morte, mas aprender com ela. Num mundo obcecado pela juventude eterna e pela produtividade constante, talvez seja hora de redescobrir uma antiga sabedoria: viver bem é escrever uma história digna de ser lembrada, mesmo sabendo que um dia será apagada pela maré do tempo.
Como dizia Vergílio Ferreira, “Morrer é apenas não ser visto. Morrer não é não ser”.