É curiosa a forma como António Lobo Antunes, numa das suas crónicas mais geniais, fala num “banco de momentos”. Depois de mencionar vários momentos que o marcaram ele afirma: “Deviam poder guardar-se estes momentos no banco, a render juros. E receber o extracto ao fim do mês: em lugar do dinheiro um clarinete à chuva, uma onda, a boina de Alfonsina Storni e o cheiro da erva molhada, o pobre Caruso a tentar soltar-se do disco. Se o gestor de conta fosse esperto informava-me «este mês tem mais uma onda», «até ao fim do mês espero conseguir-lhe dois clarinetes», ou «em seis meses, tal como os mercados estão, o tal Merimé não vai desiludir a senhora».1 Naturalmente que o Matuto também gostaria que os seus momentos rendessem juros.
Tal como o António Lobo Antunes, o Matuto não está nem aí com o que come, ou onde mora, ou o que veste. O Matuto é despido de vaidades. Mas há coisas que mexem com o Matuto. Momentos fugidios, mas intensos. Um Outono na cidade de Viseu. Local: Parque do Fontelo. Uma brisa aguçada. Uma luz oblíqua. Uma melancolia tranquila. A cor dourada de folhas penduradas por um fio. Muitas, atapetam o chão de tons torrados. Há folhas a alegrar algumas ramadas. Há troncos espetados seminus. E, o Matuto aos pontapés… Aos pontapés às folhas secas. Que delícia chutar folhas! Momentos que iluminam a vida do Matuto… como a grafonola que em tardes de chuva, na Inglaterra, soltava a voz cheia de Mario Lanza. E os pardais no jardim com o bico a trinta graus. Ou aquele cão vadio que atravessou a estrada e amigou o Matuto. Que vontade de o trazer para casa! Quantas vezes o Matuto se reviu naquele corpo escanzelado de esperança. O cineasta velho no Café Flore, de Paris, acompanhado duma atriz decrépita. Na conversa com o Matuto e sua gentil esposa, Dona Sirlei, o cineasta viajou ao Brasil sensual da sua juventude. Ele, de olhos vivos e gestos amplos. A atriz mordida na sua ciumeira mimada. Os pardais no telhado com o bico a trinta graus. Estes momentos são sublimes – matuta o Matuto.
E aquela peladinha à chuva no Rio de Janeiro. O estádio do Vasco da Gama ali tão perto. Na relva (grama, no Brasil, por favor) de Pedra de Guaratiba, o jogo era de vida ou de morte. O primo Daniel rodopiava, enquanto o Matuto esfriava a jogada. Os nativos resfolegavam: “estes coroas não desarmam”! E a chuva caía honesta. (“right as rain”, diriam os Ingleses, que é como quem diz, ‘estes gajos estão em forma’) E, por falar em chuva… A cena de Casablanca, com o Rick abordando um comboio (trem, no Brasil, por favor), com a chuva escorregando pelo chapéu, pela gabardina, pelo papel… Uma chuva que sentimos molhar a alma. E os pardais na plataforma com o bico a trinta graus.
O Matuto recorda o bêbado de São Petersburgo. Era Natal! Em todo o mundo era Natal. Todavia, o bêbado estava no Luxemburgo. O Matuto e sua gentil esposa, Dona Sirlei, sentados no autocarro (ônibus, no Brasil, por favor). O bêbado, doído de saudade, irrompe no espaço a cheirar a vodca. Na mão, a garrafa. Importunando. Apoquentando. Atazanando. As pessoas assustadas. E o bêbado assediando e ameaçando. Perigo etílico! Do nada, o Matuto exclama: “Tovaritch! Nasdrovia”! Saúde! O bêbado gira nas pernas ébrias. Encara o Matuto e desata a chorar: “Nasdrovia! Nasdrovia! São Petersburg, my home land”! Minha terra mãe! E, mansamente oferece um gole de vodca ao Matuto. Saudades da terra mãe, é uma das coisas que mexe com o Matuto.
Tal como o António Lobo Antunes, o Matuto pondera a possibilidade de colocar estes momentos no banco a render juros. E o gestor de conta, se fosse esperto, informaria o Matuto regularmente: ‘este mês as folhas chutadas estão em alta’; ‘invista em cães vadios’; ‘o contexto financeiro está propício para os cineastas lamechas’; ‘as peladinhas à chuva estão a valorizar’; ‘o mercado está bom para bêbados Russos’. E, o Matuto seria um homem rico. Como os pardais!
Crónica, naturalmente, dedicada ao António Lobo Antunes.
- Página 241 do Quinto livro de Crónicas, 4ª Edição,Publicações Dom Quixote, 2013.