Estamos na Rua de São Bento, a meio caminho entre a Assembleia da República e o Largo do Rato. Mas aqui não se fala de política – estamos no território dos antiquários. «Isto começou como uma zona de velharias, nos anos 50/ 60», explica-nos Mário Roque, proprietário da São Roque. «Nos finais dos anos 80, princípios dos 90, houve três ou quatro antiquários que se instalaram aqui: a minha mãe, os Arrudas, os Cabral Moncada, quando ainda não eram leiloeiros».
Foi precisamente com a mãe, Maria Helena Roque, que o galerista e antiquário começou a ganhar o fascínio pelos belos objetos. Ainda assim, optou por fazer carreira na Medicina. Estudou na Bélgica, regressou a Portugal e exerceu até tempos recentes, quando percebeu que já não podia dividir-se entre as duas atividades.
Especializado em artes da Expansão – mas também com apetência pela pintura moderna –, a dedicação a tempo inteiro tem dado frutos. Em 2018, uma peça sua foi considerada a melhor da Bienal de Paris. E no ano passado vendeu quatro peças ao Museu Metropolitan de Nova Iorque.
Como começou tudo, qual é a história da São Roque?
A minha mãe era colecionadora, e eu sempre a acompanhei, desde miúdo. Fui ganhando este gosto. Todos os sábados íamos para os antiquários, havia um género de tertúlias. Quando a minha mãe se reformou – era professora –, não tinha nada para fazer e resolveu abrir o antiquário.
Aqui?
Aqui na Rua de São Bento, do outro lado. E eu fui sempre acompanhando. Sou médico, tirei o curso de Medicina na Bélgica, onde tive muito contacto com a arte moderna.
Ajude-me a situar com as datas. A sua mãe abriu a loja…
Em 92. E deixou de se interessar pelas antiguidades em 2004. Aí continuei eu com a loja.
Passou-lhe o testemunho…
Sim, passou-me o testemunho. Ela quis fechar, eu disse que não, que queria continuar. Na altura era como brincadeira, para ter um entretém, e afinal… Sabe, a vida de médico é um bocadinho pesada e isto era uma forma de me distrair.
Um escape?
Daí foi crescendo. A certa altura, entre estas duas paixões, a medicina e as antiguidades, pensei o que pesava mais. Primeiro, resolvi deixar o hospital e dedicar-me só à clínica privada. Mas efetivamente nós não conseguimos fazer duas coisas bem feitas.
Teve de optar.
Ou me dedicava à medicina ou me dedicava a isto. Continuei durante uns tempos a trabalhar [como médico] dois dias por semana, mas às tantas já não dava, até porque cheguei a um patamar que exige que esteja em permanência aqui. Comecei logo a ter conferências, workshops sobre os artistas e sobre peças. E, como este espaço não dava para fazer exposições, abri o outro [na mesma rua, um pouco mais acima]. Fiz exposições do grupo KWY, da Lourdes Castro, do Escada, da Graça Morais, do Pomar, e acabou há três meses uma do Ai Weiwei.
Começou com uma atividade em part-time e aos poucos foi assumindo outras proporções?
Passou-se uma coisa curiosa. Em 2016 fui à Bienal de Paris, um amigo pediu-me para pôr umas porcelanas no stand dele. E apercebi-me de que eles não conheciam a arte portuguesa.
‘Eles’ os franceses?
Os franceses, os ingleses… ninguém conhecia. As peças que levei nessa altura já tinham a ver com a Expansão portuguesa e decidi no ano seguinte candidatar-me. Fui aceite e fiz um stand temático. Era uma viagem desde África até ao Japão. Começava numa ponta do stand com peças afro-portuguesas, depois indo-portuguesas, cingalo-portuguesas, sino-portuguesas, até ao Japão. E resolvi fazer uns livros, estes calhamaços, em que, além de falar sobre a História de Portugal e os Descobrimentos, tenho artigos sobre a revolução que nós fizemos na alimentação, na medicina, na botânica. Em seguida apresento as peças, o que em cada peça é característico da arte portuguesa, o que é característico da arte desses países. Portanto é a fusão de culturas.
Diz que ninguém sabia nada, mas houve aquela grande exposição em Washington, Encompassing the Globe, no Instituto Smithsonian.
Essas exposições, por muito importantes que sejam, são sempre muito limitadas no tempo e são vistas por meia dúzia de pessoas. Para divulgarmos a nossa arte não basta fazer exposições nos museus. O que eu faço é oferecer estes catálogos aos museus e aos colecionadores particulares. As pessoas levam o livro para casa, leem, e acontece-me muitas vezes entrarem aqui e dizerem: ‘Passei no seu stand, levei o catálogo para casa, estive a ler e resolvi vir a Portugal para conhecer melhor a arte portuguesa’. Com essa participação na Bienal de Paris, comecei a ter cada vez mais pessoas a virem cá. Em 2018 ganhámos o prémio de melhor peça da Bienal de Paris.
Que peça era essa?
Era uma salva de prata esmaltada com as armas de D. Sebastião. Depois fui convidado a ir para a TEFAF [em Maastricht], a melhor feira de antiguidades da Europa.
Quantos portugueses participam? Uns três?
Neste momento julgo que somos três portugueses. Eu, o Jorge Welsh e o Philippe Mendes, que vive em Paris. A partir daí tem sido muito interessante, porque os museus começaram a contactar-me. Fui convidado para fazer uma conferência em Bordéus sobre arte da Expansão portuguesa, na altura das comemorações do aniversário do Montaigne, e pediram-me para expor a minha coleção de arte da Expansão portuguesa. Isto porque Montaigne tinha uma antepassada que era portuguesa e havia uma grande ligação.
Não fazia ideia. Esse trabalho de divulgação é complementar à venda das peças?
Até ao início do século XX, quando apareceu o curso de História da Arte, um antiquário transmitia os conhecimentos aos colecionadores. E a partir daí mudou. A minha mãe sempre me disse que tinha muita pena que o papel do antiquário se tornasse meramente comercial.
Apenas um vendedor.
Se fosse para isso abria uma loja nas Amoreiras e vendia camisolas. A minha mãe sempre achou que nós tínhamos que fazer muito mais do que isso. Temos que ensinar. Eu gasto uma fortuna nestes livros, como calcula…
Mas depois tem certamente maneira de recuperar o investimento.
Recupero mas a prazo. Por exemplo, ainda agora o Metropolitan de Nova Iorque comprou-me quatro peças.
Que peças são?
São dois copos de marfim, uma peça em laca de Pegu, da atual Birmânia, e um cofre Guzarate, em madrepérola, com uma pintura de portugueses no interior. O museu de Singapura, até esta data, deve ter-me comprado aí 22 peças. Aliás, os museus são os meus principais clientes neste momento.
Como funcionam essas relações com os museus? É o senhor que lhes propõe as peças ou são eles que pedem?
Nunca ofereço nada a ninguém. Sou um bocado tímido…
Não os aborda a dizer ‘tenho uma peça que pode interessar-vos’?
Eles é que me abordam a mim. Estou nas feiras, eles veem, depois aquilo é uma bola de neve, porque uns falam com os outros. Neste momento acho que já sou um bocado conhecido no meio dos museus europeus, e nos asiáticos já sou bem conhecido. Como tenho tido algum sucesso com os museus americanos – o Metropolitan comprou quatro peças, e houve outro, de Massachusetts, que comprou duas peças –, achei que era altura de ir ao Winter Show para me dar a conhecer. Porque a TEFAF acontece em março, numa altura em que há a Asian Week em Nova Iorque, portanto a maior parte dos curadores não vem.
Participar nessas feiras é muito caro?
A despesa fica-me à volta de 250.000 €.
Em cada uma?
Cada uma. É um investimento a longo prazo.
E como é o ambiente nessas férias? Grandes jantares, festas muito requintadas?
A Bienal de Paris é a feira que tem mais charme. É tudo de grande requinte, o jantar, o cocktail, toda a gente de smoking. Nova Iorque já é uma coisa mais moderna. Enquanto em Paris é um público mais selecionado, à TEFAF vem gente de todo o mundo.
É mais democrática?
Menos convencional, digamos assim.
Em todo caso é um meio elitista, não?
Sim. Na arte há aqueles que vêm só pela parte do investimento. Mas aqui nas antiguidades há também a parte do prazer pessoal. É um meio um bocado mais restrito. Existem níveis de cultura elevados, as pessoas sabem do que estão a tratar, são conhecedoras, e acaba efetivamente por ser um meio elitista.
Está em duas frentes – a frente das antiguidades e a frente da arte moderna e contemporânea. Uma coisa que me faz imensa confusão é como é que uma pintura de um mestre antigo às vezes vende-se por valores relativamente baixos e um Warhol ou um Basquiat vende-se por cem milhões. Como é que as coisas mais recentes acabam por ser mais valorizadas do que mais antigas? Não devia ser o contrário?
A comunicação social tem um papel nisso. Neste momento promove-se muito mais a arte moderna e contemporânea do que as antiguidades. E depois é tudo por modas. Os jovens querem casas mais simples, querem ter uma peça antiga e de resto tudo moderno. Querem ter um quadro grande, gostam de grandes escalas. Aquele espírito de colecionador que existia já é raro. No grupo etário acima de 60, 70, é que ainda há algum espírito de colecionador.
Isso faz com que o valor das antiguidades afunde?
Tem estado a afundar, nomeadamente quando são peças de qualidade média. Peças de grande qualidade acabam por ter sempre comprador. Muitas vezes não aqui em Portugal, mas no estrangeiro. E acaba por haver essa discrepância. Uma peça, se é muito boa, tem cotação mundial. Se é uma peça média, vem por aí abaixo.
Falou-me de como é que as peças saem. E como é que entram, como lhe chegam?
Chegam de todas as maneiras possíveis e imaginárias. Umas vezes sou eu que vou à procura delas, outras vezes são elas que vêm à minha procura. Neste momento já muita gente me conhece, até no estrangeiro – colecionadores, antiquários –, porque estiveram no meu stand, viram uma peça que eu tinha, têm uma peça idêntica e querem vender. Depois também vão passando boca a boca e como sabem que eu tento sempre valorizar a arte portuguesa e também pago bem por essas peças quando têm valor, sabem que vêm aqui e não são aldrabados.
E por exemplo ligam-lhe e dizem: ‘Um familiar meu faleceu e agora temos a casa cheia de coisas, quer vir cá ver?’ Isso acontece?
Sim, sim. E eu vou sempre.
E às vezes tem surpresas de encontrar peças fantásticas?
Hoje em dia já é muito raro. Não é como antigamente.
Falemos agora da faiança, uma das suas áreas de especialidade. Vou fazer uma provocação: a faiança não é um bocadinho a parente pobre da porcelana?
Nada disso! São duas histórias diferentes. A faiança portuguesa do princípio do século XVII tem umas particularidades muito importantes. São as primeiras peças – a faiança e a joalharia – feitas na Europa com motivos chineses.
Feitas cá, mas com motivos chineses. Imitados de peças chinesas?
Nós não imitamos, nós interpretamos. A diferença entre nós e Delft [centro de produção de cerâmica na Holanda] é que nós interpretamos, eles imitam. O que aconteceu nessa época é que vinham os barcos cheios de porcelana e os nossos oleiros começaram a tentar reinterpretar. Os franceses e os ingleses dizem que eles é que inventaram a chinoiserie: é mentira. Em finais do século XVI, princípios de XVII, com a faiança e com a joalharia, fizemos as primeiras peças de chinoiserie. Lisboa tinha uma pasta, um barro fantástico. O vidrado das nossas peças, com a técnica que importámos da China, também era muito superior a qualquer outro. E nós introduzimos o gosto pelo azul e branco na Europa, até aí tinha havido sempre o gosto pela majólica italiana, por faianças coloridas. Portanto há três fatores: a qualidade das nossas peças, o gosto pelo azul e branco que nós introduzimos, e o exotismo. Lisboa, no século XVI, era a capital da Europa. Dez por cento da população eram estrangeiros.
Era uma cidade muito cosmopolita.
Exatamente. Nessa altura toda a Europa estava focada nesse exotismo e vinha comprar a Lisboa. Os judeus tinham sido expulsos, por causa do casamento da filha dos reis católicos com D. Manuel. E D. Manuel, como não estava muito de acordo com a expulsão dos judeus, conseguiu condições especiais para eles em várias cidades da Europa, nomeadamente Hamburgo e Amesterdão. Eles continuaram a fazer este mercado por via marítima. E a apetência da Europa era tão grande – e a aristocracia portuguesa também não estava muito abonada – que era quase tudo feito para exportação. Mas ficava tão caro na Europa vir comprá-las, por causa deste trajeto, que em 1650 Delft começou a copiar as nossas peças. Não com a nossa criatividade, nem com a nossa qualidade de pasta, mas começou a copiar.
Modelos chineses?
Era uma cópia perfeita e ficava muito mais barato do que comprar cá. E os nossos oleiros foram todos à falência.
Então a nossa faiança teve uma vida muito curta.
É um período de 50 anos, mais ou menos. Na segunda metade do século XVII, quando surge este problema, começamos nós a querer copiar os holandeses, para ver se conseguíamos manter o mercado. Mas não resultou e os oleiros foram à falência. Isto é uma história que a maior parte das pessoas, mesmo desta área, não conhece. Até há bem poucos anos, nos museus do estrangeiro, as nossas faianças estavam catalogadas como faiança de Hamburgo. Os alemães insistiam que eram artífices portugueses que tinham emigrado para lá e tinham feito as peças lá, o que era completamente mentira. E só em 1938, Luís Keil, que foi um conservador do Museu de Arte Antiga, conseguiu provar pela análise das faianças supostamente de Hamburgo, e comparando-as com as nossas, que a pasta era a mesma, o vidrado era o mesmo e os pigmentos eram os mesmos. E mesmo assim eles continuaram a dizer que não.
Estas peças de faiança têm mercado lá fora ou só em Portugal?
É muito engraçado porque a primeira vez que vou para [a feira de] Paris, o Philippe Mendes disse-me que gostava de fazer uma exposição na galeria dele, e pediu-me uma sugestão de uma coisa que fosse muito portuguesa. E eu sugeri-lhe a faiança. Foi a nossa coleção de faiança para lá e o interesse foi de tal maneira grande que o Museu Guimet, no ano seguinte, faz uma exposição de porcelana chinesa e pede-me cinco peças, para as pôr lado a lado com a porcelana. Como sabe, o cross culture está muito na moda, e tudo isto acaba por ser muito apetecível na Europa. No seguimento disso fui convidado para ir à Bélgica falar sobre faiança portuguesa. Quando disse aos holandeses e aos belgas que Delft é uma má cópia da faiança portuguesa, eles não gostaram muito… E tem sido em crescendo. O Museu da Porcelana de Xangai, que é o maior do mundo, comprou-me quatro peças há um ano e meio para pôr faiança portuguesa ao lado da porcelana da China.
Digamos que uma fábrica, quando há mais procura de um produto, aumenta a produção. No seu caso, quando aumenta a apetência por alguma coisa como a faiança, como faz para responder a essa procura?
As peças são limitadas, não posso mandar fazer…
Era precisamente aí que eu queria chegar.
Mas tenho várias pessoas que sabem que eu me dedico muito às faianças e que vêm ter comigo. Não só aqui como até no estrangeiro – em Itália, na Bélgica – tenho tido pessoas que me dizem: ‘Tenho esta peça de faiança, o senhor é a pessoa que está mais ligada à faiança…’ Este trabalho que eu faço acaba por dar os seus frutos.
Imagino que estas peças antigamente não fossem tão valorizadas. Uma vez que há modas no colecionismo, também é possível de vez em quando encontrar coisas que estão subvalorizadas e pelas quais se pode puxar?
Tem de haver sempre um grande investimento da nossa parte.
De estudo?
De estudo e de sabermos transmitir às pessoas o estudo que fazemos. Agora estamos a escrever um livro só sobre a arte cristã na China, que vai sair para a TEFAF. Sei que depois desse livro sair vai começar a haver muito mais interesse pela arte cristã e mais colecionadores a comprar. Claro que para mim é mau porque me fazem subir os preços… [risos]
Que tipo de arte se trata? Crucifixos…?
Tudo. Essencialmente pinturas – sobre seda, sobre papel, sobre tela – e esculturas – como aqueles dois monges ali no chão, esculturas em prata, uma Nossa Senhora, uma Santa Geracina, um São Pedro… Agora já estão embrulhadas para Nova Iorque, mas é todo um mundo que aparece muitas vezes em leilões no estrangeiro e ninguém lhe liga nenhuma, e é importantíssimo para a nossa cultura. Nós somos os únicos que foram para lá com o intuito de cristianizar. Por isso é que depois nos saímos mal… Os holandeses, que só se preocuparam com a parte comercial, foram muito mais bem aceites que nós.
Mas se ninguém liga nos leilões é bom para comprar, certo?
É.
Para depois então estudar…
E promover. Claro. Só assim é que eu consigo reunir um número significativo de peças para depois fazer um livro.
O olhar da medicina deu-lhe alguma coisa que seja útil para o meio das antiguidades ou são realidades completamente distintas e que nunca se tocam?
Há uma grande aproximação dos médicos à arte.
O Reynaldo dos Santos, por exemplo.
E temos grandes colecionadores de arte que eram médicos. O Juvenal Esteves, por exemplo. Temos médicos que foram pintores, como [Abel] Salazar, escritores como Torga. Há sempre uma grande relação entre a medicina e a cultura. Efectivamente, muitos dos colecionadores são médicos. Talvez seja pela componente humana das duas áreas.
Acontece-lhe ter uma paixão especial por uma peça, ao ponto de ter pena de a vender?
A minha grande paixão é descobrir as peças, estudá-las, etc. A parte da compra é sempre para mim mais estimulante do que a venda. Claro que há sempre peças que são muito especiais para mim, mas não posso guardar as peças todas.
Pode guardar algumas, ou não?
Para já, estão sempre a aparecer peças novas e se nós não vendemos também não conseguimos comprar. Antigamente ligava-me muito mais às peças do que agora. Hoje fico muito contente quando vendo uma peça que sei que vai para uma grande coleção. Se tenho uma peça que é minha, que esteja em minha casa, mas for para uma coleção muito importante, fico contente. Porque é isso que também faz mexer o mercado. Se guardamos as melhores peças todas para nós, não damos a conhecer. É como o que se tem passado com o Amadeo de Souza-Cardoso. O Amadeo, como sabe, morreu muito novo. Era um artista tão importante como o Modigliani. Tanto que quando houve o Armory Show, em Nova Iorque [1913], em que estava o Picasso, o Braque, todos esses grandes artistas, a pessoa que mais vendeu foi o Amadeo. Mas ele morre e a mulher dele guarda tudo em casa. Nos anos 60, doa tudo à Gulbenkian, portanto só houve sempre meia dúzia de quadros no mercado. Por causa disso, uma tela do Amadeo vale 200 mil e um Modigliani vale não sei quantos milhões. Nunca foi lançado no mercado, nunca houve este comércio, as coisas não se valorizaram. Não podemos ser egoístas e querer guardar tudo para nós. O que é importante é que divulguemos a arte. E temos exemplos muito semelhantes. Como o Sequeira que ia lá para fora e não deixaram ir.
Acha que devia ter ido?
Se aquele quadro tivesse ido para Nova Iorque, para o Metropolitan, como era suposto ir, já viu a projeção que o Sequeira ia ter no mundo? Assim fica aqui e ninguém o conhece. É a mesma história que se passou com a Josefa d’Óbidos. Ninguém a conhecia, até que houve um português que resolveu oferecer uma ao Louvre, a partir daí começou a aparecer. E nos últimos anos a Josefa d’Óbidos tem-se valorizado imenso.
Imaginemos que um desses grandes museus lhe compra uma peça. Como é o processo?
Não há regras. No caso do Metropolitan, vieram cá ver a peça há um ano e tal, gostaram, depois foi a um comité. Mas outros museus já me conhecem, perguntam sobre a peça, eu mando as características, mando os textos sobre elas, e eles confiam plenamente, nem cá vêm ver. Agora, nós temos a mania que só cá em Portugal é que as coisas são muito difíceis, mas no estrangeiro também são.
As burocracias?
Uns mais que outros. Mesmo nos Estados Unidos, com um dos museus foi um processo que durou três meses, com o outro demorou quase um ano e meio.
Muitos papéis para cá e para lá?
É muito variável, não há normas. Depende dos museus, depende dos países. Para mim às vezes é muito penalizante. Nesse caso, tive durante um ano e meio o dinheiro bloqueado. Aqueles que têm mais dinheiro pagam logo, os que têm menos dinheiro inventam coisas para ir atrasando os pagamentos. Temos a mania de que só em Portugal é que as coisas não funcionam, mas mesmo nos países com dinheiro às vezes também é complicado.
Há alguma peça que se arrependa de não ter comprado, uma oportunidade perdida?
Aparecem outras. Eu facilmente também esqueço. Antigamente ficava a pensar nisso. Hoje em dia não, sou muito mais democrata.
E mais desprendido?
Sim. Com os anos aprendi que não posso guardar tudo, portanto se não tenho uma peça, tenho outra. Tenho o mesmo gozo.
Em sua casa essas coisas estão a uso? Guarda a roupa num roupeiro do século XVIII e come em pratos Companhia das Índias?
Há peças que sim.
Se está no ramo e depois não tem o proveito…
Claro. Acho que as pessoas têm que usar as coisas. Mesmo como investimento, a vantagem das antiguidades é que a pessoa investe o dinheiro, mas tem prazer. Desde que não seja prejudicial para a peça, para mim faz todo o sentido usá-la. Já tenho festejado com peças de porcelana muito boas, desde que não corram risco de sofrer qualquer dano.