É um livro de Susan Sontag, este. O título tem o verbo «olhar», no gerúndio. Olhando o Sofrimento dos Outros. Edição da Quetzal. Foto de Susan Sontag na capa. Virgínia Woolf convocada logo de início e, nomeadamente as suas dissertações sobre a guerra e suas origens em Os Três Guinéus. Uma tese desse livro e que Sontag relembra: «Os homens gostam da guerra». A guerra é a possibilidade da glória. O seu atrativo é o horizonte do poder. Há nessa projeção do poder uma ilusão, que é, no fundo, uma ingenuidade: ter-se a concreta ideia de que o poder e a glória podem eternizar-se num para-além da vida de todos os dias, calendário inexaurível da morte. De Mussolini a Hitler, de Franco a Estaline, de Mao a Pol Pot, mas com raízes possíveis nesse episódio acelerador da História que foi a Revolução Francesa e o Horror, o que a moderna idade em que nós vivemos nos deu foi, apesar da educação ilustrada, da democratização do livro, da melhoria das condições de vida e do desenvolvimento da tecno-ciência, o fim da compaixão. Não é meramente um sentimento cristão. É uma consequência de certo tipo de ilustração, ou melhor, de certa forma de compreender algo que esta mesma nossa ‘moderna idade’ nos roubou: a consciência da mortalidade.
Uma das teses de Hannah Harendt em Da Violência (Relógio d’Água) é esta: «Os adictos da manipulação, aqueles que a receiam indevidamente não menos do que aqueles que põem nela as suas esperanças, dificilmente se dão conta dos seus erros». (p.36). Entre a indiferença e a adição, entre a vontade de poder e o horizonte da glória, aí se joga muito dos novos totalitarismos. É que jamais um fascista, todo ele movido por sentimentos muito básicos de primitiva vontade de poder, de glória e total ausência de compaixão, minado por uma profunda insegurança em relação ao que a vida é como prova concreta da nossa mortalidade; jamais um fascista, ou todo aquele que acredita numa espécie de impulso agressivo reprimido (que explica, mas não desculpa), poderão mover-se no terreno que implica olhar o sofrimento dos outros. O mal viral por que todo o fascista está contaminado é o mal do indiferentismo, mesmo em relação a si próprio. Como Adrien Leverkuhn, essa alegoria da Alemanha nazi, o fascista, o totalitário pode, em nome de um plano transcendente (alcançar uma obra total, extravasar a condição mortal), infetar-se do próprio vírus, seja ele sífilis ou embriaguez política, antissemitismo ou anti-migrantes, ódio aos pobres ou ódio à humanidade pensando que, através dessa infeção, o próprio mal se torna um bem, uma energia de potência indestrutível. O mecanismo da guerra, uma das extensões mais terríveis do mal, uma das suas manifestações mais óbvias, assenta numa prerrogativa simples: em nome da segurança teremos de sacrificar princípios e valores humanos. É a aposta na segurança sem rede, numa espécie de niilismo da crença, pois que, sem olhar o sofrimento dos outros, todo o regime totalitário, na sua maquinaria abstrata, acabará por matar os homens em nome de um ideal de humanidade.
Vêm estas considerações a propósito de Donald Trump e da ascensão, um pouco por toda a parte, das tentações totalitárias, dos regimes que querem parar a História e voltar a uma política de agressão permanente daqueles que sofrem. Trump, Musk e os milhares de oligarcas que, dos Estados Unidos à Rússia, da China ao Brasil (os defensores de Bolsonaro, os arregimentados mentais da sociedade escravocrata), da Europa à África das guerras sem-fim, todos eles, na verdade, comungam de uma mesma visão de mundo: só interessa o lucro. Há aqui um debate a fazer, urgente, sobre olhar o sofrimento dos outros e que é, claro, um debate sobre as imagens, isto é, sobre a banalização das imagens da morte, das imagens (fotografias ou não) dos que fazem saudações nazis, mesmo que, depois, queiram fazer-nos acreditar que saudações romanas. Um debate, no fundo, sobre que olhar é este do homo amnesicus, esse homem-massa de novo tipo que, mergulhado de cabeça nas imagens de uma época violentíssima e preparatória da guerra, atua como os fascistas: deslumbra-se com o poder e a glória de Trump, aplaude a «coragem» e a «rutura» ou ousadia do gesto de Musk, e deixa-se levar por essa indiferença que lhe soa a vitória sobre o sentimentalismo.
No limite, todo o homem movido a raiva é tirano de si mesmo. Não importa nada a não ser a obtenção do poder e da glória, seja em que plano for. O fascista, por definição, é um fascinando pelo mal: as imagens de dor causam-lhe um prazer inexplicável. Susan Sontag, se no livro a que me refiro desenvolve, a partir da fotografia, a ideia de que o amortecimento da nossa compaixão se deve à banalização das imagens de morte, diz ainda outra coisa – que a política feita por insensíveis e insensatos, por brutais e ambiciosos, por ignorantes da História e oportunistas da democracia tem sempre o mesmo fim: não olhar jamais para o sofrimento dos outros.
Professor e crítico literário