‘Portugal acha que penalizar a criação de riqueza não faz mal nenhum’

O economista lamenta que vários assuntos económicos sejam debatidos em torno de questões ideológicas. E não hesita: ‘Uma das coisas que, às vezes, me faz questionar a sanidade mental de muitas pessoas é a discussão do IRC’.

‘Portugal acha que penalizar a criação de riqueza não faz mal nenhum’

Como vê a situação da economia portuguesa?

Os últimos dados do INE apontam para um crescimento, mas menor do que o do ano anterior… Há dois tipos de análise que se podem fazer. Temos uma análise conjuntural, podemos falar a curto prazo e do facto de estarmos a crescer perto de 2%, de termos atingido grandes equilíbrios macroeconómicos, quer seja do ponto de vista orçamental, quer seja do ponto de vista de contas externas. O país está numa situação de estabilidade macroeconómica como raramente se encontrou nos últimos 40 anos. Claro que a estabilidade é boa quando temos estas características positivas, mas também pode ser má quando está longe daquilo que seria o ideal. Quando fazemos uma análise mais estrutural, vemos claramente que Portugal não está numa boa posição face aos países com o mesmo escalão de rendimento e que estão a crescer muitíssimo acima. E aí podemos pensar em Polónias, em Roménias e em todo um conjunto de países que andam mais ou menos na casa entre os 70 e os 90% do rendimento médio comunitário em paridade de poder compra, mas que claramente estão a crescer mais do que nós. O único país que no relatório de outono do Eurostat está a crescer menos do que nós é a Estónia, porque teve uma crise grande no ano passado, mas as projeções para este ano já estão acima de Portugal.

Podemos ser ultrapassados por todos os países…
Observo com muita ironia a questão da discussão de Portugal com a Roménia: se estamos à frente, se estamos atrás. Lembro-me que, quando essa polémica surgiu pela primeira vez – e contribuí um pouco para isso porque, na altura, escrevi sobre isso, fui insultado de todas as maneiras e feitios e até me mandaram ir para a Roménia. Confesso que, por acaso, nessa semana tinha de ir à Roménia e vi in loco muito para lá daquilo que são as estatísticas agregadas que são sempre limitadoras na análise do que é a realidade de um país. Ninguém tenha dúvidas que na Roménia vive-se pior do que em Portugal e causa-me alguma ironia estar a discutir se estamos um bocadinho à frente ou um bocadinho atrás. É como apontar para a lua e discutir-se a ponta do dedo, porque o relevante não é se estamos um bocadinho à frente ou atrás, a questão é que há 20 anos não passava pela cabeça de ninguém comparar Portugal com a Roménia e agora essa discussão faz-se. Há 20 anos, a Albânia tinha um PIB [Produto Interno Bruto] 14 vezes inferior ao nosso e, neste momento, é três vezes inferior ao nosso. Se não nos metermos a pau, usando uma expressão mais corriqueira, daqui a 20 anos a discussão não é com a Roménia, é com a Albânia.

Os diagnósticos estão feitos. Somos pouco ambiciosos e ficamos contentes com crescimentos de 2%?
Há várias ordens de razões. Vou falar de três fatores tipicamente apontados pela literatura económica que são determinantes em fatores de crescimento. Em primeiro lugar, era de esperar que estes países do Leste europeu pudessem crescer mais do que nós porque do ponto de vista daquilo que é o capital humano, formação, etc., tinham uma taxa de educação e de literacia muito superiores à nossa à data da entrada para a União, mas com um rendimento muito abaixo do nosso. Se esses países eram mais pobres então esperava-se que houvesse um processo de convergência maior. A outra variável tem a ver com a carga fiscal. Se olharmos para a Europa conseguimos encontrar dois paradigmas de estruturas fiscais. Um são os países mais pobres, menos capitalizados, menos produtivos, com menor nível de produtividade, estados sociais, por vezes, mais fracos do que o nosso, mas com estruturas fiscais muito leves e com uma fortíssima dinâmica de crescimento. Depois temos um segundo paradigma dos estados ricos, bastante capitalizados e, por isso, também bastante produtivos e capazes de sustentar fiscalidades mais fortes, mais pesadas, em que os Estados sociais também tendencialmente são mais fortes. E depois temos o terceiro paradigma, que é o de Portugal, que tem impostos de rico, sendo um país pobre. Se olharmos para o crescimento das economias desde 95 até 2022 e compararmos com a carga fiscal média, durante esse mesmo primeiro período há uma correlação de 74% entre estas duas variáveis. Claro que esta correlação é injusta, no sentido em que apanha outras coisas. Os países de Leste, por exemplo, têm mais capital humano, são mais pobres e têm cargas fiscais mais baixas. Mas se corrigir os dados para as diferenças do nível de rendimento e para as diferenças de capital humano, ainda assim, a carga fiscal média explica quase 40% da diferença de performance de crescimento entre 95 e 2022. Um ambiente económico mais competitivo é um fator de crescimento e a fiscalidade faz parte dessa competitividade.

E em Portugal assistimos a um braço de ferro em torno da redução do IRC…
Uma das coisas que, às vezes, me faz questionar a sanidade mental de muitas pessoas é esta discussão do IRC, porque as sociedades foram construídas segundo o princípio de que os incentivos importam. Não queremos que as pessoas andem depressa na autoestrada, o que fazemos? Penalizamos monetariamente. Não queremos que as pessoas usem sacos plásticos, o que fazemos? Penalizamos monetariamente. Se queremos que as pessoas façam determinado tipo de coisas, então recompensamos monetariamente. Qual é a única atividade humana para a qual uma boa parte do espetro político acredita que os incentivos não importam? Na criação de riqueza. Achamos que penalizar a criação de riqueza não faz mal nenhum.

O entrave à redução do IRC teve como base os argumentos que iria beneficiar a banca e a distribuição…
Há quem ache que seja uma borla para as empresas de distribuição e para alguns ex-monopólios do Estado. Isso é o melhor argumento para baixar o IRC, porque são as empresas dos não transacionáveis, para os quais a competitividade e o ambiente económico não importam porque não exportam.

No caso da banca poderá agora criar um mal estar quando esta semana se soube que prescreveram as multas ao ‘cartel da banca’…
Temos de separar duas coisas. Uma são as práticas anti-concorrenciais. Uma das coisas que me surpreende é que, mesmo num cenário em que temos quase o oligopólio da banca, o regulador do Banco Central português diz que via com bons olhos uma concentração ainda maior e a fusão de dois dos principais bancos portugueses. Por outro lado, há mais dois ou três elementos a ter em conta. É um setor que paga uma contribuição extraordinária, e que já é extraordinária há 11, 12 ou 13 anos. Os impostos em Portugal, quando são extraordinários, têm tendência para ficar para sempre. Ponto dois: não podemos olhar para os lucros da banca num ano. Tudo acumulado desde 2011, só no ano passado é que, primeiro a Caixa e depois o Millennium, começaram a dar lucro. Terceiro: é preciso ter cuidado quando falamos dos lucros da banca. 2024 foi um ano excecional, mas em 22 ou 23, o BCP teve 260 ou 270 milhões de lucro, mas se quiser ficar com esse lucro quanto tenho de gastar? A capitalização bolsista do BCP, na altura, era de quase cinco mil milhões. Se tenho de investir cinco mil milhões para ir buscar duzentos e tal milhões de lucro, qual é a rentabilidade? O problema é que, infelizmente, a discussão está muito enviesada para os valores absolutos. É mais rentável meter 10 mil euros num quiosque de jornais e ir buscar dois mil euros de lucro ou meter quase cinco mil milhões no BCP para ir buscar 200 milhões? É o quiosque. E como é que as nossas estruturas fiscais estão organizadas? Temos progressividade através da derrama estadual. Ou seja, penalizamos o ganho de escala. Tudo isto está muito ligado ao debate que se tem tido e ainda agora se viu entre Inês Sousa Real e Pedro Nuno Santos sobre a questão da carga fiscal. O que é a carga fiscal? É lucros pagos sobre o tributável . Confesso que se não tivesse formação em economia e especialização na área fiscal ficaria muito confundido com o debate político, porque uns dizem: ‘Os impostos são elevados’ e pagamos os impostos maiores do mundo, depois vêm outros que dizem: ‘Estamos na média da Europa’. Está tudo maluco? Então os impostos são altos ou baixos?

É consoante a ideologia de cada partido…
Sim e não. A carga fiscal não captura a riqueza que não foi criada por os impostos serem altos. O que quero dizer? Imagine que tínhamos um sistema fiscal em que os cabeleireiros e esteticistas pagavam 1% e tínhamos 99% taxa de imposto sobre todos os outros setores. Que país é que íamos ter? Um país de cabeleireiras e de esteticistas, porque ninguém é maluco para abrir um negócio e pagar 99% ao Estado. Mas teríamos a carga fiscal mais baixa do mundo.

Quando lançou o estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos disse que uma redução do IRC em 7,5 pontos percentuais faria o PIB crescer 1,4%, mas surgiram muitas vozes contra…
Respeito a argumentação, mas o grosso do que ouvi foi sempre uma posição ideológica e nunca técnica. Este é um estudo técnico, não foi um manifesto político. O quadro conceptual da análise é aquele que o Estado português está obrigado a usar quando envia as previsões para Bruxelas. Tínhamos noção de que o estudo tinha um potencial de choque social e político grande e usámos um quadro conceptual acima de qualquer suspeita. Dito isto, é preciso um estudo para percebermos que temos de ganhar competitividade ao nível fiscal? Em 2000, Portugal estava mais ou menos dentro dos 50% dos países da OCDE com taxas mais elevadas, nos últimos 20 e tal anos todos estes países fizeram uma enorme desvalorização fiscal e Portugal não acompanhou. Se Portugal era competitivo há 20 anos, hoje não é.

É usado, muitas vezes, o exemplo da Irlanda…
A Irlanda tem uma taxa de 12%, mas boa parte do segredo não é só ter impostos baixos, é que nos anos 90 os partidos do arco da governação conseguiram gerar um consenso de definir um conjunto de estruturas fiscais e comprometerem-se a manter estáveis durante 20 anos. Em Portugal temos um colapso de incerteza. Tivemos este verão a discussão em torno da redução do IRC 1% e podemos baixar o IRC para zero. Sabe qual é o impacto? Nenhum, porque um dos fatores determinantes para o investimento é precisamente a estabilidade. O que é que este debate político passou para o ambiente económico? É que a estabilidade e a competitividade fiscal não são um consenso do arco da governação e que Portugal não é um bom sítio para investir, nem para criar riqueza. Em 2013, 2014, o Governo de Passos Coelho, com António José Seguro no PS, conseguiu um acordo para baixar o IRC. António Costa tomou conta do PS e rasgou o acordo. Gostava que Portugal ganhasse competitividade fiscal. É esse o caminho, mas também reconheço que as eleições não deram um mandato à direita para o fazer. Até estaria disposto a diminuir a magnitude da descida do IRC em troca de uma maior estabilidade, mas à esquerda do PSD está um partido que até para baixar em 1% o IRC foi preciso arrancar com alicate. Como também não há condições políticas para acabar com a derrama estadual, que é a que introduz progressividade no sistema. Se calhar queremos ser um país de pequenas empresas. Qual é o valor acrescentado bruto de um trabalhador numa microempresa? 23 mil euros. E o de uma grande empresa? 80 mil. Não podemos pagar salários para os quais as pessoas não estão a criar riqueza. Temos de levar as pessoas para estruturas onde possam ser mais produtivas e com isso pagar salários melhores. Os últimos dados que tenho, e que estão extremamente desatualizados, dizem respeito à década passada e indicavam que 50% dos jovens que emigravam iam ganhar dois mil euros, 26% iam ganhar três mil euros, e tivemos 194 mil licenciados a sair do país entre 2011 e 2021.

Medidas como o IRS Jovem podem evitar esta fuga?
Os jovens em Portugal têm um salário relativamente baixo, mas temos outro problema no nosso tecido laboral, que é uma grande clivagem geracional entre a geração da malta com 50 anos ou mais relativamente a direitos adquiridos e a geração que entrou já depois no mercado de trabalho. Os jovens em Portugal começam com um salário relativamente baixo, pagavam 18% de IRS e agora vão pagar zero? Não é isso que vai mexer a agulha. É um passo na direção certa, do ponto de vista estritamente económico, e há um princípio básico da economia que indica que as pessoas têm uma maior propensão a reagir aos incentivos. Mas enquanto cidadão não acho correto esse tipo de discriminação. A minha geração pagou a crise de 2008, a de 2011, a da covid e a da inflação. A minha geração vai pagar a crise da Segurança Social porque nunca irei receber o que descontei. E ainda vai pagar a crise de jovens? Quando é que deixo de pagar e começo a receber? Não acho aceitável. E depois isto é tudo um faz de conta. Achamos que queremos ter os impostos desta ordem de magnitude e depois temos uma coisa chamada PIN que são os projetos de interesse nacional.

É o caso do Data Center de Sines….
Esse é o exemplo perfeito. O que são projetos de interesse nacional? É o Governo a admitir que o país não tem um ambiente económico que por si seja capaz de atrair investimento e o que faz? Cria um regime de isenção. Em vez de serem os empresários, o ambiente económico e as necessidades das pessoas a definirem o tipo de investimento que se atrai é alguém num gabinete no Governo que concede exceções à lei para empresas não pagarem impostos e depois ficamos muito surpreendidos por encontrar maços de notas em estantes. Os lucros todos somados das grandes empresas em Portugal não chegam a metade da maior empresa da Dinamarca. Mario Draghi criticou a Europa por ter um peso excessivo das PME e das microempresas no tecido empresarial, Portugal tem 50% mais de emprego em microempresas do que a Europa que Draghi criticou. Isto é uma catástrofe. As grandes empresas têm 21% do emprego e sustentam 40% do valor acrescentado à economia, enquanto as micro têm 44% do emprego e criam 21% do valor acrescentado à economia. Se conseguíssemos pegar nos trabalhadores das micro e metê-las nas grandes, mantendo o valor acrescentado por trabalhador e mantendo o peso da quantidade de trabalho em cada tipo de empresa igual ao da União Europeia, o PIB português aumentaria 16 ou 17%. Ficávamos perto da França e da Itália.

E como vê o facto de o PRR ser apontado como o grande impulsionador do crescimento da economia?
Vai depender da taxa de execução, mas tudo isto faz-me um bocado de confusão. Encarámos este desafio de uma maneira um bocadinho peculiar. O PRR, em termos de volume, é o maior fluxo de entrada de investimento no país desde a altura em que vinha ouro do Brasil. Estamos a falar de mais 3% ao PIB. É o plano económico mais ambicioso da história moderna do país e entregámo-lo – com todo o respeito, apreço e até carinho que tenho por António Costa Silva – a um engenheiro de minas. Percebo que para muitos a economia portuguesa seja um buraco, mas isto foi levar a metáfora longe de mais. Não digo isto tanto por António Costa Silva, que é uma pessoa brilhante, super competente e muito conhecedora, mas toda a academia do país foi olimpicamente ignorada. A Grécia contratou um prémio Nobel da Economia, a França envolveu professores universitários, a Itália criou um conselho consultivo e, em Portugal, António Costa leu um livro no aeroporto, achou piada e meteu um engenheiro de minas à frente de tudo. E muito fez António Costa Silva, mas foi uma oportunidade perdida a todos os níveis.

Foram apostas erradas?
Portugal tinha um problema de dívida pública e um problema político para resolver porque os níveis de investimento público durante uma década foram miseráveis. O investimento público que foi feito não era suficiente para manter as infraestruturas que tínhamos e era preciso pagar o custo político de arranjar espaço no Orçamento de Estado para o fazer. O que é se fez? O investimento público passou para o PRR, fizemos a consolidação orçamental e o PS passou a ser o partido das contas certas. Honra seja feita a Fernando Medina que publicamente avisou quando ainda era ministro das Finanças e não se antecipava que o Governo anterior pudesse cair que, a partir de 2026, seria preciso arranjar espaço no Orçamento de Estado para investimento público porque o PRR acabava e quem estivesse no poder iria ter de pagar esse custo político. Também Mário Centeno admitiu numa conferência em fevereiro de 2022 ou 2023, onde participei, que o PRR serviu para Portugal fazer a consolidação da dívida.

Agora assistimos aos alertas de Mário Centeno quanto ao risco de voltarmos a ter défice e que caiu mal ao Governo…
Caiu mal porque foi ao arrepio de todas as previsões das outras instituições. Foi um pouco estranho, mas sobre Mário Centeno tenho algumas algumas reservas. Existe ou não uma perceção pública que Mário Centeno está muito ligado a um determinado espetro político? Acho que ninguém questiona isso.

Foi um dos nomes apontados para avançar para Belém…
E não só. António Costa falou dele para primeiro-ministro, como também saiu diretamente de ministro das Finanças para Governador do Banco de Portugal. É uma figura que para o bem e para o mal está extremamente politizada e associada a uma determinada força política. Isso dificulta em muito o excelente e o bom trabalho que o Banco de Portugal pode fazer, porque depois quando saem essas previsões perguntamos se saem porque dão jeito do ponto de vista político ou se saem porque, do ponto de vista técnico, foram análises corretas.

E como vê o dossiê da TAP?
Comento muito a atualidade económica, mas sempre me recusei a comentar a TAP. Parece uma novela mexicana de 70 temporadas e acompanhar a TAP do princípio ao fim é um trabalho a tempo inteiro. Do ponto de vista estrutural, o Estado deve ser dono de uma companhia aérea ou não? Se alguma coisa provou nos últimos anos é que o país não tem condições políticas nem institucionais para ter uma companhia aérea depois do que vimos com Galamba e com o adjunto que roubou o computador e da CEO que foi despedida. Se dúvidas havia que o país não tinha condições políticas, nem institucionais para ter uma companhia aérea, a história recente provou-a. Depois podemos discutir do ponto de vista do serviço público se faz sentido termos uma companhia aérea, mas o que todas as embrulhadas mostram é que se calhar não faz, ou então algo tem de mudar. E depois há ainda a questão da política económica, em que o Estado quer ter uma companhia aérea por questões estratégicas para manter ligações diretas aos PALOPs, Brasil, etc. Mas isso quer dizer que o Zé Maria dos anzóis que mora em Vila Real está a pagar os que vão andar de avião para Guiné-Bissau? Faz sentido? Se calhar faz, já paga para o metro de Lisboa, porque é que não há de pagar para a TAP?

E em relação ao novo aeroporto?
Aí já tenho responsabilidades porque fiz parte da comissão técnica independente, fiz a avaliação económica das diferentes opções estratégicas para o aeroporto de Lisboa. A decisão acabou por estar muito associada à decisão política sobre a terceira travessia. Se os custos da terceira travessia fossem imputados ao projeto Alcochete se calhar poderia não ser escolhido.

Outra dor de cabeça é a habitação, e assistimos à polémica em torno da Lei de Solos que pode abrir portas à especulação…
Percebe-se que poderá haver enormíssimos ganhos privados sem que estes tenham feito o que quer que seja de meritório. Se tenho um terreno que é rústico e de repente o Estado diz-me que passa a urbano, o meu terreno valerá dez, 30 ou 40 vezes mais. Não fiz nenhuma benfeitoria. Isto foi um ganho de uma decisão administrativa. Percebo que para muita gente seja um problema e estou a falar nisso sem ironia. Dito isto, hoje Portugal constrói um décimo daquilo que construiu há dez anos. Durante a década de 2000, em Lisboa, só de habitação pública e cooperativa construíam-se por ano mais de 900 fogos e durante a década de 2010 a 2020 construíram-se 13. Tivemos a crise financeira e do imobiliário, a crise da dívida soberana e tudo isso destruiu uma boa parte do nosso tecido empresarial da construção civil. Mas existem aqui problemas sistemáticos que impedem que o mercado da habitação funcione como deve ser. Existe todo um todo um conjunto de legislação, de ambiente económico à volta do setor da construção, que cria condições para que apenas o investimento e a promoção imobiliária em segmentos de maior valor acrescentado e a um nível de preços mais elevado seja atrativo e rentável. Por exemplo, o salário mínimo tem subido 9% ao ano – e isto não é um argumento contra a esta subida – mas 30% do custo da construção diz respeito à mão-de-obra. É óbvio que as casas vão ficar cada vez mais caras. Então o que é preciso fazer? Criar outros mecanismos para compensar, como a isenção de IMT, do imposto de selo e as garantias públicas. Apesar de haver algumas questões técnicas, a intenção da lei dos solos é boa. Se houver mais terrenos os preços têm de baixar. Onde é que vai ter impacto? Não é em Lisboa ou no Porto, que já não têm quase terrenos rústicos, nem é no interior, é à volta das grandes cidades: Oeiras, Cascais, Vila Nova de Gaia. E passa pela cabeça de alguém que é um problema para agricultura? O terreno até pode ser o mais espetacular para plantar couves, mas vamos querer plantar couves em Barcarena? Não há espaço no resto do território para plantar couves? É surreal. Às vezes, vivemos num país que seria um manancial de conteúdo para os Monty Python.

Mais uma vez, estamos a discutir problemas ideológicos?
Porque é que a derrama estadual não acaba? Porque é que o IVA da construção não baixou? Porque não temos um Governo de maioria absoluta, caso contrário poderíamos ter medidas mais ambiciosas. Também se o Governo PS não tivesse caído se calhar também tínhamos medidas mais ambiciosas para a economia e com maior capacidade de efetuar mudanças estruturais. Agora Governos de minoria, de minorias frágeis no Parlamento, extremamente expostas ao aproveitamento político de tudo o que se faz, é um ambiente extremamente negativo para fazer as reformas estruturais importantes que o país precisa porque podem ser aproveitadas de uma forma populista por partidos que querem retirar ganhos eleitorais.

E aí entra o caso da imigração…
A imigração é uma coisa bastante mais preocupante. A demografia e a imigração vão ser os dois grandes vetores que vão moldar as sociedades nos próximos 20 anos. Do ponto de vista demográfico, a Europa e o Ocidente estão a envelhecer de forma assustadora e, dentro da Europa, Portugal ainda mais. Ao mesmo tempo, noutras geografias do globo temos dinâmicas demográficas ainda muito fortes, o que faz com que a tensão migratória só vá aumentar e a fragmentação política relativamente à imigração também aumente. Portugal nunca quis tocar no tema da imigração e quem falasse de uma forma estruturada é fascista, é xenófobo, é racista. Mas o que é certo é que o espetro civilizado da política tem de ter uma oferta política neste tópico porque, se não tiver, vão ser os partidos extremistas que o vão ter. É preciso pensar na imigração de uma forma estruturada. Percebo que algumas das declarações de Pedro Nuno Santos tenham causado alguma celeuma, como o terem de respeitar os nossos valores e a nossa cultura. Mas isso parece-me óbvio. Fui emigrante durante 12 anos, vivi na Suécia, na Alemanha, nos Estados Unidos e em Itália, e sei bem o que é ser emigrante. O facto de as tendências demográficas serem as que são vai pôr mais tensão nos fluxos migratórios. Por outro lado, temos de ter políticas de integração, a França percebeu isso, a Suécia percebe isso e nós devíamos ter percebido isso com os erros que fizemos com a integração das ex-colónias. A integração é o desafio. Temos de ter políticas de integração, inteligentes e responsáveis que só são possíveis de fazer com controlo da imigração. E controlo não é dizer quem é que vem. É, pelo menos, termos informação de onde vêm e quem são.