Europa investe 350 mil milhões em IA mas arrisca repetir erros do passado

A Cimeira de Ação sobre IA (“AI Action Summit”) reuniu líderes mundiais em Paris

A União Europeia prepara-se para investir massivamente em inteligência artificial (IA), numa tentativa de recuperar terreno face aos Estados Unidos e à China, mas corre o risco de sacrificar a sua maior vantagem competitiva: a capacidade de criar um modelo de inovação responsável e confiável.
Na Cimeira de Ação sobre IA (“AI Action Summit”), que decorreu em Paris nos dias 10 e 11 de fevereiro, os líderes europeus anunciaram um pacote de investimentos de 350 mil milhões de euros, combinando fundos públicos e privados. O programa InvestAI mobilizará 200 mil milhões de euros, sendo que 20 mil milhões serão destinados à construção de “gigafactories” – enormes centros de computação essenciais para o desenvolvimento da IA avançada.
Estas infraestruturas são fundamentais porque o treino dos modelos mais sofisticados de IA requer um poder computacional equivalente ao consumo energético de uma pequena cidade. A “Iniciativa EU AI Champions” complementa este esforço, prometendo atrair mais 150 mil milhões do setor privado nos próximos cinco anos.
A declaração final da cimeira, assinada por 60 países, estabelece uma nova direção assente em três pilares: avanço científico, desenvolvimento de soluções focalizadas em modelos abertos de IA e estabelecimento de padrões políticos alinhados com marcos internacionais. Significativamente, os Estados Unidos e o Reino Unido optaram por não assinar esta declaração, sinalizando uma divergência profunda na visão sobre como esta tecnologia deve ser desenvolvida e regulada.
Do encontro emergiram várias ações concretas. Foi lançada uma Plataforma e Incubadora de IA de Interesse Público, destinada a reduzir a fragmentação entre iniciativas públicas e privadas e apoiar projetos em áreas como o desenvolvimento de modelos, a transparência e a capacitação técnica. Estabeleceu-se igualmente a criação de um Observatório sobre o Impacto Energético de IA, em parceria com a Agência Internacional de Energia, para avaliar e promover sistemas energeticamente sustentáveis. Foi ainda decidida a criação de uma Rede de Observatórios sobre o Impacto Laboral para antecipar as implicações da IA nos locais de trabalho, formação e educação.
Os participantes comprometeram-se também com o desenvolvimento de uma IA multilingue que aproveite a diversidade linguística europeia e concordaram em estabelecer um Painel Científico Internacional Independente sobre IA para alinhar os esforços de governação em curso.
No entanto, a mudança de tom em relação às cimeiras anteriores de Bletchley Park e Seul é preocupante. O Vice-Presidente dos EUA, JD Vance, defendeu que «regulação excessiva do setor da IA poderia matar uma indústria transformadora». Este posicionamento encontrou eco em Sundar Pichai (Google) e Sam Altman (OpenAI), que apelaram a menor intervenção regulatória. A recente revogação pela administração Trump de uma ordem executiva de Biden sobre testes de segurança em sistemas de IA críticos que exigia a partilha dos resultados de testes de segurança para sistemas de IA críticos, exemplifica esta tendência desregulatória. A Europa, pioneira com o AI Act, parece agora hesitar entre manter a sua liderança regulatória ou ceder à pressão por maior flexibilidade.
As visões sobre o futuro da IA na Europa dividem-se. Emmanuel Macron apresentou uma ambiciosa estratégia “Notre-Dame”, focada em acelerar autorizações e atrair investimento. «Temos de nos ressincronizar com o resto do mundo», defendeu. Em contraste, Ursula von der Leyen, Presidente da Comissão Europeia, manteve um tom mais cauteloso: «A corrida da IA está longe de terminar. Estamos apenas no início».
O último ano de desenvolvimento caótico da IA – marcado por alucinações de modelos, processos de direitos de autor e escândalos de viés – demonstrou que o modelo mais rápido nem sempre é o vencedor. No ambiente empresarial, a confiança supera o entusiasmo momentâneo, sendo que a Europa tem uma oportunidade única de dominar este espaço, desde que não tente igualar a velocidade americana, mas antes se foque na liderança em termos de segurança e fiabilidade.
As implicações setoriais são significativas. Para a banca, a prometida simplificação regulatória poderá acelerar implementações, mas aumenta riscos sistémicos. Na saúde, onde a segurança é um requisito fundamental, faltam padrões específicos para validação de modelos. A indústria, apesar do investimento em “gigafactories”, permanece sem um roteiro claro para a integração segura da IA.
Paris poderia ter estabelecido uma infraestrutura europeia de IA na escala necessária – uma cloud que permitisse às empresas desenvolverem-se sem dependência externa. Poderia ter criado uma “via rápida” para IA que cumprisse elevados padrões de segurança, transformando a regulação numa vantagem competitiva em vez de um obstáculo. Não foi esse o caso!
A implementação das iniciativas anunciadas será acompanhada através de uma série de encontros internacionais cruciais, nomeadamente a Cimeira de Kigali, o Fórum Global sobre Ética da IA na Tailândia e a Conferência Mundial de IA 2025. Este calendário intenso demonstra a necessidade de coordenação internacional, mas também levanta questões sobre a capacidade de transformar declarações em ações concretas.
A Europa tem as fundações certas – forte tradição em segurança, instituições de investigação reconhecidas e um mercado linguístico diverso que força a IA a trabalhar além do inglês. Esta diversidade cultural e linguística poderia tornar-se um trunfo no desenvolvimento de sistemas de IA mais inclusivos e adaptáveis. O que falta é um plano para desenvolver e comercializar IA nos seus próprios termos, transformando requisitos éticos em vantagens competitivas reais.
Como alertou von der Leyen, «não haverá maior barreira ao potencial transformador da IA do que uma falha na confiança pública». Se a Europa não encontrar rapidamente o seu próprio caminho, combinando inovação com segurança, os críticos estarão finalmente certos pelo único motivo que verdadeiramente importa: a IA será construída noutro lugar. l