Marta Pereira da Costa: “É como se fosse um portal para a minha alma que gosto de abrir, libertar e partilhar”

O seu mais recente álbum ‘Sem Palavras’ foi editado em 2024 e, no mês passado, foi apresentado pela primeira vez no Tivoli, em Lisboa.

Aos quatro anos aprendeu a tocar piano. A partir dos oito começou com a guitarra clássica e, só 10 anos mais tarde,  a guitarra portuguesa apareceu na sua vida. É a mais afamada intérprete da atualidade e tem levado «a voz» desse último instrumento – que considera a nossa bandeira –, a todo o mundo. O seu mais recente álbum ‘Sem Palavras’ foi editado em 2024 e, no mês passado, foi apresentado pela primeira vez no Tivoli, em Lisboa.

A música entra na sua vida quando inicia a formação no piano, aos quatro anos. Já disse em várias entrevistas que o seu sonho era ser pianista. Em sua casa ouvia-se muita música?
Não se ouvia muita música, alguma, Beatles, Beach Boys, Tina Turner, fados… O meu pai tinha umas coleções de cassetes gravadas por ele. Eu com 17/18 anos gastava a minha mesada a comprar CDs: Nirvana, Caetano Veloso, Chico Buarque, Queen, e muita música clássica. Vários CDs da Maria João Pires (Mozart, Schubert, Chopin), vários de Beethoven, Tchaikovsky…

Também já confidenciou que não ligava muito ao fado, mas o seu pai era um grande amante do género. Como é que se apaixonou também por esse estilo de música? A partir do momento que tive contacto com a guitarra portuguesa, nas minhas primeiras aulas com o Carlos Gonçalves, quis conhecer mais sobre o que estava a aprender e depois a curiosidade fez-me procurar outras coisas. Comecei a ouvir mais Carlos Paredes, a ir ver as cassetes de fado do meu pai…

A partir dos oito começou com a guitarra clássica e, só 10 anos mais tarde, apareceu a guitarra portuguesa. Como? O que é que a apaixonou no instrumento?
Eu comecei a tocar guitarra portuguesa apenas por iniciativa do meu pai. Não foi algo que lhe tivesse pedido para fazer. Ele disse-me que gostava que aprendesse e fui experimentar, adorei desde a primeira aula e quis continuar. Pelo desafio, pela dificuldade do instrumento e, depois, o timbre da guitarra portuguesa é mágico… Essa sonoridade conquistou-me.

O Clube de Fado foi a primeira casa de fado onde foi. Passou a tocar lá com o Mário Pacheco. O que recorda desses tempos?
Adorava lá estar. E estava lá todos os dias praticamente. Ia cedo, jantava com o Mário e os empregados, adorava os fadistas que lá cantavam: Carlos Zel, Maria da Nazaré, Alcindo de Carvalho, Rodrigo Costa Félix, Miguel Capucho, Joana Amendoeira, Ana Sofia Varela, José da Câmara, etc. Durante os fados sentava-me ao lado do Mário e tentava aprender e tocar. A guitarra portuguesa aprendia-se por tradição oral: ver fazer e imitar. Nos intervalos entre fados, o Mário ensinava-me coisas para fazer no set de fados seguinte. Gostava de ir para lá praticar e aprendia imenso todas as noites. Era mesmo a minha segunda casa. Adorava o ambiente e sentia-me mesmo bem e feliz.

Quais as suas maiores inspirações? Tem tido a oportunidade de trabalhar com vários artistas, tanto nacionais como internacionais… Na guitarra portuguesa Carlos Paredes, a sua música e linguagem únicas são a minha maior referência. Mas também José Nunes, Armandinho, Mário Pacheco, Fontes Rocha, António Chaínho, Alcino Frazão. No piano, Maria João Pires e Bebo Valdés. Na composição, Ennio Moriconne, Beethoven, Bach, Piazzolla…

Ingressou numa licenciatura em Engenharia Civil. Ainda exerceu durante oito anos. Essa é outra paixão que tem?
Não! (risos) Eu sempre quis estudar música, mas o conselho era que tirasse um curso primeiro. O meu pai era Engenheiro Civil. Eu tinha média de 18, sem saber que curso tirar para além de música. Gostava de Matemática e Física e de Educação Física. Escolhi Engenharia Civil.

Fados de Amor’, do fadista Rodrigo Costa Félix, foi o primeiro disco na história do fado onde a guitarra portuguesa é integralmente tocada e gravada por uma mulher. Foi durante algum tempo a única. Isso trouxe-lhe alguma responsabilidade acrescida?
Na altura, nem me ocorria se era a única a tocar guitarra portuguesa nos fados, ou se isso me traria alguma responsabilidade. Estava a aprender e focada nisso. Mais tarde, quando comecei a pisar palcos com concertos meus, comecei a sentir essa responsabilidade. Só aí. A responsabilidade de não falhar, de mostrar o meu máximo empenho em cada convite.

Como surgiu a oportunidade? Na verdade, como eram casados, já deviam ter vários planos musicais, não?
Quando o Rodrigo me convidou eu nunca tinha tocado sozinha, tocava sempre ao lado do Mário Pacheco ou de outro guitarrista mais experiente. Foi um desafio para o qual não estava de todo preparada. Mas o combinado era que iria tentar sem qualquer pressão e, depois, se achássemos que não estava bem o suficiente, outro guitarrista iria gravar o disco. Trabalhei muito sem descanso nesse período. Aprendi muito e tive muitas ajudas dos músicos do disco. Ouvi muitas versões de outros guitarristas e criei as introduções e os acompanhamentos e ainda compusemos um fado a quatro. Foi uma experiência transformadora e que mudou a minha vida. Nesse período intenso de preparação para o estúdio e depois de gravação, notei que aprendi e evolui muito. E queria ter mais tempo para continuar a aprender e evoluir… E aí tive que tomar uma decisão, que demorou um ano a pôr em prática: deixar a engenharia e voltar a estudar música para me dedicar à guitarra. Os planos começaram a surgir com a promoção do disco.

Já admitiu que não se sentia muito confiante na altura. Essa insegurança estava relacionada com a falta de formação? Com o facto de ser um meio muito masculino?
A insegurança na altura relacionava-se mesmo com a falta de domínio do instrumento, falta de técnica e de anos de estudo e prática. O facto de passar a estar exposta num meio masculino, sentia a pressão de que não podia dar parte fraca. Tinha bastante medo de não ser aceite, de ser criticada com preconceito, então sentia que tinha que provar muito mais. E trabalhei sempre de forma incansável para aprender e melhorar depressa, para fazer face às limitações técnicas, de velocidade e força. É um trabalho continuo, tive muitas lesões por não escutar os limites do meu corpo. Agora já tenho outra maturidade e outra consciência.

Então já se sente mais segura enquanto artista…
Sim, já estou mais em paz comigo e a aceitar que estou a fazer um caminho. Onde estou agora é fruto de uma aprendizagem diária… Ainda não é onde quero estar, mas não tenho que sentir essa pressão de estar onde não estou. Esse lugar chegará continuando a dedicar-me com o mesmo empenho. Tenho as minhas fragilidades técnicas e também as trabalho para melhorar. Encontrei um espaço só meu através das minhas composições e aí sinto-me segura. A experiência ao longo dos anos, os vários palcos por onde passo, os músicos com quem toco, dão-me essas aprendizagens que, por sua vez, também me dão mais segurança.

Foi em 2012 que decidiu dedicar-se exclusivamente à música e à guitarra. Foi uma decisão difícil?
Foi. Trocar o certo pelo incerto. Mas era uma decisão que estava em standby há tanto tempo que, quando senti que era altura, já não havia volta a dar. Foi meter toda a determinação no futuro… Depois da decisão tomada, demorei um ano a juntar dinheiro e a preparar-me para a mudança. Trabalhava em engenharia, dava aulas de piano, era mãe de dois filhos pequenos, tocava algumas noites em casas de fado. Ia passar a trabalhar para mim e a depender de mim, e do trabalho que viesse. Mas o universo encarregou-se de me mostrar que foi a decisão mais acertada que tomei e tudo estava a acontecer – concertos, viagens, entrevistas –, num crescendo até à pandemia.

Em 2016, lançou o seu álbum de estreia, em nome próprio. No ano passado, surgiu o segundo disco ‘Sem palavras’ com o pianista cubano Iván Melon Lewis, vencedor de um Grammy Latino. Qual a relação que tem com os seus trabalhos?
As minhas composições são muito pessoais e contam histórias, relações da minha vida, viagens e sentimentos. ‘Minha Alma’ foi a primeira composição que fiz e o título diz tudo. ‘Memórias’, fala das minhas memórias com a minha avó materna, ‘Sem Palavras’ sobre os meus filhos, ‘Tempo Parado’ sobre a pandemia… Os meus trabalhos pretendem ser um registo do momento em que me encontro quando os componho. É como se fosse um portal para a minha alma que gosto de abrir, libertar e partilhar.

O primeiro foi um disco de apresentação, onde quis partilhar as minhas grandes referências e fazer parcerias com elas. Procurei também apresentar as minhas composições e contei com a participação de muitos músicos e cantores. Neste segundo álbum procurei fazer o processo inverso, de recolher e buscar a simplicidade no som de dois instrumentos e quatro mãos, e de dar mais espaço à guitarra portuguesa, afirmar-me como compositora e intérprete. O projeto de um álbum é muito desafiante e estimulante. Mais do que ir para estúdio, adoro o processo de construção da ideia e dos arranjos.

É mãe de gémeos. É difícil conciliar uma carreira como a sua – está fora muitas vezes –, com a maternidade?
Muito complicado. Hoje os meus filhos já têm 15 anos. A primeira vez que saí depois de ser mãe eles tinham quatro meses. Custou-me horrores. As ausências de casa e dos filhos é o que mais custa neste trabalho. As saudades, fazer uma call a meio de uma tournée e ouvir os meus filhos a pedir para ir para casa, parte um coração em mil pedacinhos… Chorei em muitas viagens de avião. Quando eram mais pequenos era bem mais difícil. Fomos aprendendo a adaptar-nos a esta realidade. Agora já está tudo muito mais fácil e as viagens são cada vez mais. O ano passado estive 35 dias a dar a volta ao mundo e não houve um dia que não tivesse falado com os meus filhos, cheguei a por despertador para conseguirmos falar. Dei sempre o meu melhor para estar presente à distância, até acompanhar os TPC por videochamada, etc. E à medida que vão crescendo e estando mais autónomos é mais fácil. Em breve espero poder trazê-los em alguma das viagens.

A Marta compõe. Já revelou que em piano nunca o conseguiu fazer. O que é que há de mais desafiante na composição de músicas?
Os momentos criativos ou de inspiração não se explicam. Já me aconteceu compor uma música de rajada, que soava na minha cabeça, ou que se ia desenvolvendo à medida que ia tocando, como também já estive meses de volta de uma ideia que não conseguia dar seguimento. O truque é meter as mãos na guitarra e tocar e gravar. E há temáticas – viagens, sentimentos… –, que podem servir de inspiração.

E os nomes? É fácil nomear as músicas? Já que estas não têm letras?
Tenho imensa dificuldade em dar nome às músicas! (risos) Mas tento ir pelas sensações e também pedir ajuda. Já cheguei a desafiar o público para dar nome a uma canção minha e foi muito giro ver como cada pessoa fazia a sua leitura da mesma música.

Também já compôs para o cinema e já participou num projeto de moda. É diferente a nível de composição?
Para cinema a vantagem é que o guião serve de inspiração. Foi assim que saiu a ‘Minha Alma’. Adoraria continuar a compor para cinema.

Apesar de já serem mais as mulheres guitarristas, esse meio continua a ser dominado por homens. Porquê?
É uma questão cultural que teve que ser alterada, e que agora leva o seu tempo, mas está a mudar. Temos a Mariana Martins a ser a primeira mulher a formar-se com uma Licenciatura em Guitarra Portuguesa, temos a Fernanda Maciel a tocar como guitarrista residente na Tasca do Chico, temos a Joana Teixeira que canta e toca, a Mafalda Lemos que se apresentou na Casa da Música. E, em Coimbra, já tínhamos a Luísa Amaro, mulher de Carlos Paredes, entre outras. Nos próximos anos irão aparecer mais mulheres a tocar guitarra portuguesa, com garra, vontade e paixão por este instrumento.

Sente que tem conseguido levar «a voz» da guitarra portuguesa além fronteiras? É esse o seu principal objetivo?
A guitarra sempre esteve muito cingida ao Fado, que é a nossa forma de expressão cultural mais conhecida pelo mundo. Este projeto instrumental de dar voz à guitarra tem como objetivo dá-la a conhecer ao mundo como instrumento tradicional do nosso país, da mesma forma que outros instrumentos tradicionais de outros países já alcançaram essa notoriedade. A guitarra no Flamenco, o bandolim no Chorinho, o bandoneón no Tango, a Sitar indiana, a gaita de foles na música Celta, etc. entre muitos outros. Gosto muito da ideia de levar a nossa guitarra portuguesa, que é a nossa bandeira pelo mundo, e criar pontes e encontros com outros músicos e instrumentos, sonoridades, e trazer um pouco do mundo para a nossa guitarra com essas aprendizagens.

O concerto do Tiny Desk, da NPR, foi um sucesso. Como aconteceu o convite?
O convite surgiu em Austin, no Festival South by Southwest, onde o programador do Tiny Desk assistiu ao meu concerto e no final entregou-me um cartão e disse: «I want your concert on Tiny Desk». Infelizmente teve que ser cancelado por causa da pandemia e, mais tarde, quando atuei no Blues Alley em Washington o convite foi reforçado e já não deixei escapar mais a oportunidade.

Em 2024, fez mais de 50 concertos, Austrália, China, Brasil, Estados Unidos, Inglaterra, Espanha, entre outros países. Os públicos são todos muito diferentes?
Os públicos são diferentes, os contextos também… Mas o que é comum a todos é que se rendem à beleza do som e à alma da nossa guitarra portuguesa. Nos últimos anos noto é que há um conhecimento muito maior do nosso país, mais pessoas que já visitaram Portugal e que conhecem o Fado.

Sente que aqui em Portugal é mais difícil que as portas se abram?
Por estranho que pareça, sinto. Sinto que é muito difícil comunicar música instrumental. Não passa nas rádios, nem é aceite na maioria dos programas de TV que estão abertos a outros géneros musicais. A música instrumental ainda tem um travão. Procuro apresentar-me pelas salas de Portugal, mas as programações estão fechadas. No entanto, arriscando e fazendo produções próprias, como aconteceu o ano passado na Casa da Música e este ano no Tivoli, as salas esgotam. O que me faz acreditar que ainda há esperança e que o público gosta de assistir a concertos instrumentais. Por outro lado, os convites internacionais continuam a chegar e a permitir-me ir abrindo portas pelo mundo.

O que espera para o futuro? Quais os próximos projetos?
Espero continuar a aprofundar os meus conhecimentos e melhorar a minha técnica, espero continuar a levar a guitarra portuguesa mais longe, conhecer novos países e culturas. Mas gostava muito de poder ter mais oportunidades de tocar em Portugal para os portugueses. Vou também trabalhar no meu próximo álbum.