A recente venda em leilão, em Lyon, de Descansando durante a fuga para o Egito (1824), de Domingos Sequeira (1768-1837), catalisou a já minha intenção de dedicar uma coluna ao pintor britânico J. M. William Turner (1775-1851), de quem, em abril, se assinalam os 250 anos do nascimento.
Perguntarão, e bem, por que razão isso apressou a minha escrita. Respondo: por todas! Para além de terem vivido maioritariamente no mesmo período e sido os maiores pintores dos seus países no século XIX – ou até, talvez, de sempre – foram ambos exímios no tratamento da luz. A isso soma-se o facto de serem paradigmáticos do desenvolvimento das nações que os viram nascer. Enquanto os céus de Turner são palco das forças da Natureza em ação e dos fumos dos engenhos a vapor, os de Sequeira encontram-se povoados por anjos e santinhos. Enquanto os clarões e os breus de Turner refletem o esplendor científico e tecnológico de Inglaterra, com a Revolução Industrial em curso, as luminosidades de Sequeira, místicas e transcendentais, denunciam o atraso e a obscuridade de Portugal, que, como Nuno Palma refere em As Causas do Atraso Português (Dom Quixote, 2023), em meados do século XIX já era o país menos desenvolvido da Europa Ocidental, situação que perdurou até aos nossos dias.
Não resisto a transcrever o texto de 1815 do Pe. José Agostinho de Macedo, que Luís Miguel Bernardo nos revela em Sobre as Causas do Atraso Científico em Portugal (UMinho Editora, 2021): «Deixai que a gravitação seja dos ingleses […]; deixai que Galileu perca os olhos em buscar novos astros, Flammesteed em os contar, Herschel em os aumentar, Newton em os pesar; […]; deixai no vórtice de tanta confusão, sempre vária, sempre nova, sempre discorde, sempre incerta, os loucos que não podem sentir o melhor, o mais sólido, o verdadeiro, ou por defeito orgânico, ou porque são forçados da ínsita vaidade a estas infrutuosas indagações […]». Salvo raras exceções, esta era a mentalidade predominante no país na época de Sequeira. Apesar de todos os esforços para combater o problema, incluindo a muito apregoada Reforma Pombalina da Universidade – que, como assinala L. M. Bernardo, ficou aquém das expectativas – a ciência portuguesa permaneceu na cauda da Europa Ocidental até ao final do século XX, só avançando graças à ação governativa de Mariano Gago.
Turner, por seu lado, teve a oportunidade de conviver com figuras proeminentes do mundo da ciência, como Mary Somerville, John Herschel e Michael Faraday. Enquanto a primeira se notabilizou como divulgadora, Herschel foi um polímata que, entre muitas contribuições, incluindo na fotografia, catalogou as nebulosas e aglomerados estelares, dando continuidade à obra do pai, William Herschel. Já Faraday, além de se destacar na eletroquímica, demonstrou a relação entre eletricidade e magnetismo. O seu trabalho seria crucial para a teoria do eletromagnetismo, formalizada matematicamente na década de 1860 por James Clerk Maxwell, que demonstrou que a luz é composta por dois campos, um elétrico e outro magnético, que oscilam perpendicularmente entre si, propagando-se através do espaço como ondas.
Com uma visão positiva da ciência e da tecnologia, Turner mantinha discussões com Faraday sobre a composição química dos pigmentos e os efeitos da luz na atmosfera. Na nova técnica da fotografia, não encontrou uma ameaça, mas, antes, uma fonte de estímulo. Todo esse fascínio reflete-se nas suas telas, onde incluiu barcos e comboios a vapor. E quem não reconhece, no turbilhão de ondas do seu Tempestade de neve: Barco a vapor à entrada de um porto (c. 1842), na imagem, uma evocação das linhas de força de um campo magnético, conceito introduzido por Faraday?
Para cúmulo, tivesse o genial Faraday tido o azar de crescer em Portugal, o mais provável seria nem sequer ter aprendido a ler e a escrever. De origens muito humildes – o pai era ferreiro – frequentou unicamente, como a maioria da população britânica, a escola primária. Fez, porém, toda a diferença não ser iletrado, pois foi como autodidata, a partir dos 13 anos, quando começou a trabalhar como aprendiz de encadernador, que adquiriu a sua formação científica. Nas horas vagas, lia os livros que o rodeavam, desde a Enciclopédia Britânica até ao célebre Conversas sobre Química (1806), de Jane Marcet. Em 1870, em Portugal, como destaca N. Palma, havia apenas 2 300 escolas oficiais (das quais somente 350 eram para raparigas!), número esse que, em relação à população do país, deveria ter sido 12 000 para se equiparar ao número de escolas na Inglaterra. No início do século XX, 75% dos portugueses eram ainda analfabetos.
Resplendores
Enquanto os céus de Turner são palco das forças da Natureza em ação e dos fumos dos engenhos a vapor, os de Sequeira encontram-se povoados por anjos e santinhos