Manuel Laureano Rodríguez Sánchez, el IV Califa del toreo, nasceu em Córdova, na Andaluzia, capital do Califado, essa cidade fantástica a beijar o Mediterrâneo, de história tão antiga e tão ancha que tudo pode, de um momento para o outro, tornar-se um drama. Mas, para já, o drama fica para mais tarde.
Dentro do Califado, outro Califado: o bairro de Santa Maria de Aguas Santas, com o arvoredo do Campo deLa Merced onde as crianças lidam as sombras da tarde. A frase do poeta Manuel Quiroga Clérigo: «Quem nasce em Córdova nunca é músico porque Córdova é calada e as suas melodias são de luz e de sombras. Nem operário porque Córdova é espiritualmente aristocrática e selecta. Nem aristocrata enfim, porque Córdova é intimamente humilde e simples, soberana na graça de serenidade e quietude». Ah, pois.Quem não for assim vá nascer para outro lado. Manolete só podia ser cordovês! Como falo de vida e morte na arena, é justo que esta crónica tenha música de fundo como nos filmes: Pasodoble, composta por Antonio Rodríguez Salido e com letra de Jose Luis Cuevas, ambos toureiros, habituados portanto a muitas mortes – «llevas sangre de valiente/ por tu ar a ti te aplaude el mundo entero/ De Guerrita y Machaquito/ eres honra y tradición/ de tu tierra cordobesa/ eres tú su mejor galardón». Se pudesse acrescentava OLÉ!, e pelos vistos já acrescentei.
Aos cinco anos, Manuel já era órfão. Ele e as suas quatro irmãs. De pai, no caso. Desculpem ter dado a notícia assim de supetão mas afinal ela já era notícia há 95 anos. O luto encheu a casa dos Rodríguez, na calle Benito Pérez Galdós, esse escritor realista que tratava as frases por tu. Manuel Rodríguez Sánchez, tal qual o filho, e também Manolete, partiu para a arena eterna da saudade na qual só cabem os toureiros e precisara de ir ao México para matar pela primeira vez. Diz a lenda que nunca houve destros com óculos e bigode. Houve sim. Este Manolete que sofria de uma doença ocular degenerativa que o obrigou a usar óculos e a sair da vida cego. Foi ele que levou o filho pela primeira vez a ver os touros, foi ele que lhe ensinou a dinastia da família à qual pertenceram alguns grandes como Pepete (José Rodríguez, seu tio), Bebe Chico (seu irmão) e Manuel Rodríguez y Rodríguez (seu pai, o primeiro Manolete), foi ele que lhe segredou os hábitos do matador cordovês: sobriedade, indolência, sangue frio. E o filho teve tudo isso e mais e mais. O menino, enfermiço e frágil, medrou ao sol quente do sul de Espanha, quase África. A mãe, Angustias Sánchez, albacetenha, ficava viúva pela segunda vez. E novamente de um toureiro porque fora casada com Rafael Molina Martínez , El Lagartijo Chico. Angustia passava a ser o seu nome do meio enquanto Manuel aprendia o sabor da morte sem sangue. «Suenan clarines/se adivinan faenas de ensueño/ Un toro negro/ retador sale inquieto a la plaza/ Es una lucha/ donde el triunfo y la muerte se funden».
Um destino a cumprir
É fundamental deixar falar quem sabe. Por exemplo Leopoldo Nunes. Jornalista, crítico tauromáquico e escritor, filho de forcado e sobrinho de bandarilheiro, toureiro amador, natural de Montemor-o-Novo, fundador do programa radiofónico Sol e Toiros, colaborou na Emissora Nacional, foi vereador da Câmara Municipal de Lisboa e autor de diversos livros, entre os quais Madrid Trágica e Vida e Morte de Manolete. Apanho da sua verve algumas notas soltas. Dos quatro Rafaéis de Córdova – Rafael Guzman, fidalgo de estirpe que abandonou a carreira das armas e o convívio dos salões para ser toureiro; de Rafael Molina Sanchéz, Lagartijo, o maior de todos, o grande Califa que durante vinte e oito anos mostrou nas arenas a sua excecional elegância e o milagre de uma nova estética aplicada ao toureio; de Rafael Guerra Bejarano, Guerrita, inteligente, manhoso e hábil; de Rafael González Madrid, Machaquito, o homem que durante uma só época matou 235 touros, 200 dos quais à primeira estocada – recolheu Manolete a conjunção da técnica, da plástica, da harmonia e da beleza, a perfeição na sorte suprema e a nobre galhardia perante o touro. O resto é dele.
Mas falo do toureiro enquanto jovem. Tenham paciência. À morte do pai segue-se uma pneumonia espampanante que só por pouco não o obrigou a ir ter com ele. A falta de recursos da mãe deu-lhe uma infância de escasso cuidado que contribuiu para manter a sua figura diminuta, esguia, própria de quem vem do Planeta Fome. Fugia do colégio e gritava: «Não quero estudar! Quero ser toureiro!». Era uma força por dentro, talvez o Destino. Recusou-se a estudar mas não era nenhum tolo, não senhor. Fugiu igualmente da vida de rua, dos colegas que o desviavam, da enfermidade. Quem o olhasse, enfiado num corpo raquítico, não deixaria de reclamar: «Vai ser toureiro assim lá para os infernos!». Mas foi. Ganhou corpo, corria como um gamo, alimentava-se como e quando podia o mais regradamente possível. Espreitava as arenas, fremia do desejo de saltar para a terra batida em redondo, à sua frente. Tinha ânsias de glória e sofria com desgosto se qualquer cavalo de má sorte caía fulminado por uma cornada infeliz. Aos onze anos é considerado lá no bairro como um promissor jogador de futebol. Destreza no drible; velocidade no pique; um certo jeito molenga de perna atrás quando enfrenta um adversário. Ninguém é capaz de adivinhar mas todos esses gestos não são quotidianamente repetidos e ensaiados para ser melhor no campo. Guarda-os, cioso, para a arena.
Cresce e o jogo dos ingleses já não o entretém. Tem primos como ele, aficionados. Manuel Rodríguez, filho de Bebe Chico, os irmãos Saco, Fernando e António, Rafael Luque a quem todos chamam Curro Camará. Imitam passes à sombra dos chaparros de La Merced. Se os colegas levam os gestos como divertimento, Manolete franze o sobrolho e sente que aquele é o seu futuro.E a sua morte com ele, mas essa é a única certeza o que o futuro nos dá. Não tarda a colocar-se à frente de um bezerro num campo de festa de um fidalgo das redondezas. Segura pela primeira vez o capote. «Recibiste la gloria por gracia de Dios/ MANOLETE/ MANOLETE/ Vive ardiente tu recuerdo en la afición/ Y el ejemplo de tu muerte/ tiene el eco de tus tardes de valor».
Manuel Laureano Rodríguez Sánchez deita-se para sonhar sonhos agitados. Ouve os murmúrios das bancadas e visualiza o touro enorme perante a sua figura entanguida. Enorme e negro como o buraco para o qual os seus pensamentos o conduzem. Pela janela sobem vozes da rua até ao silêncio absoluto do oco das estrelas. Córdova adormece a pouco e pouco e o nariz estremece-lhe com o odor das gitanillas.