Ser presidente da Assembleia da República tornou-se uma profissão de alto risco?
Diria que é uma atividade exigente, porque acho que nós vivemos no mundo – na Europa e em Portugal -, tempos exigentes, no que diz respeito a dados que tínhamos como adquiridos, como seja a democracia e a liberdade. E, portanto, como aqui na casa da Democracia é onde se deve construir todos os dias, preservar todos os dias essa dimensão, apesar de uma fragmentação grande que existe no nosso Parlamento, como em vários outros parlamentos: em Espanha, França, Itália. Não é uma realidade só portuguesa. É mais exigente para o presidente da Assembleia da República ter a equidistância, ter a moderação e ter o cuidado para que todos possam exprimir-se e todos possam respeitar-se. Efetivamente, com a fragmentação que existe, é um trabalho exigente.
Mas é só um problema de fragmentação, ou também de novas tendências políticas que têm uma forma de fazer política diferente daquilo a que estávamos habituados?
Nós não podemos ignorar essa realidade, sendo que na base sabemos que é uma representação do povo português. Os deputados não são escolhidos, nem convidados, são eleitos por sufrágio livre, direto, universal. Exprimem aquilo que é a vontade das diversas sensibilidades da nossa sociedade. Não podemos perder isto de vista, porque a democracia não funciona só quando é para situações do nosso agrado. Nós temos de cuidar do respeito à diferença, cuidar da contradita que as ideias devem ter no debate democrático. E é por essa via, no julgamento político que os portugueses fazem do que se passa na Assembleia, no julgamento que os eleitores fazem sobre os seus representantes, que reforçam, sancionam ou penalizam, conforme foram ou não ao encontro das expectativas do voto. Vivemos um tempo exigente porque sabemos no mundo, na Europa e também em Portugal, que esta dimensão do direito à diferença, do respeito pelas regras das maiorias, por aquilo que é a liberdade de cada um se exprimir, mas também com a urbanidade com que isso deve acontecer.
Urbanidade é uma palavra que tem sido muito usada nos últimos dias, como uma fronteira que foi ultrapassada. Os portugueses que viram os episódios da semana passada no Parlamento ficaram atónitos com o nível de debate que se atingiu?
Devo deixar muito claro que não podemos confundir o que é liberdade de expressão e a garantia de que essa liberdade não é condicionada num debate político. Por isso é que o nosso regimento, e bem, diz que qualquer discurso agressivo, ou qualquer discurso injurioso de um deputado em relação a outro deputado, pode ser em si condicionador do debate democrático, criando coação na forma como outro deputado pode fazer a contradita democrática. É uma situação que permite ao presidente da Assembleia da República retirar a palavra, fazer uma advertência.
E não foi isso que aconteceu a semana passada?
Não estava eu a presidir, mas não tenho dúvida alguma que aquele momento em que há uma imputação direta a uma senhora deputada, neste caso a Ana Sofia Antunes, é uma situação que se enquadra precisamente, não na liberdade de expressão, mas sim, precisamente, numa atuação que é condicionante da liberdade e da livre expressão com que o deputado deve fazer o debate democrático no Parlamento. É evidente que isso é inadmissível.
Mas não aconteceu nada, não foi cortada a palavra àquela deputada?
Não se pode retirar uma palavra quando ela já foi dita. O deputado Rodrigo Saraiva, que era o presidente em exercício, fez desde logo uma advertência no sentido de fazer a observação de que aquela situação não era aceitável. No dia seguinte, voltou a reforçar, e até aconselhou que devia haver um pedido de desculpa por parte da senhora deputada em relação à deputada Ana Sofia Antunes. O que o presidente da Assembleia em exercício fez, foi o que era adequado e é o que o regimento prevê.
Há pedidos, nomeadamente do Partido Socialista, para se rever o código e as normas do Parlamento. Está disponível e aberto para fazer alguma alteração, ou acha que as regras que existem são suficientes?
A dinâmica de alteração do regimento é dos grupos parlamentares. O presidente da Assembleia da República tem de viver com o Regimento que temos em vigor. Há um grupo de trabalho que tem estado atento, a fazer a reflexão e a trabalhar no âmbito de possíveis alterações ao código de conduta ou do regimento. A única conclusão que se tirou foi de que não deveria haver propriamente sanções. O grupo parlamentar do Partido Socialista apresentou um conjunto de sugestões, diria, de melhoramento, ou de ajustamento no código da conduta dos deputados, mas sempre num esforço de autorregulação, e de autorresponsabilização, e de poder afinar alguma destas modalidades muito cirúrgicas para o presidente poder admoestar.
Mas há a proposta de o presidente da Assembleia da República poder obrigar o deputado a retirar-se pelo menos daquele ponto da discussão?
Está previsto, para reflexão concreta da conferência de líderes, mas essa situação, foi desde logo considerado que talvez não fosse a mais adequada e, portanto, eu diria que há muito cuidado em mexer nestas matérias, porque, e com razão, é preciso ter muito cuidado. Cada um dos senhores deputados é um representante do povo português, tem um mandato, foi eleito, tem uma lógica diferente, é membro de um órgão de soberania. Nós não podemos olhar para estas matérias como se fosse uma empresa, como se fosse um instituto ou como se fosse uma qualquer instituição onde não houvesse a representação do povo português. Cada um de nós tem uma legitimidade exatamente igual e nós temos de ter cuidado e atenção, porque isso tem a ver com a própria responsabilidade que o povo português depositou em cada um de nós, para exercemos o mandato da forma mais aberta, sem filtros. Depois compete aos eleitores ajuizar se aquele mandato foi cumprido de acordo com as expectativas que foram criadas pelos eleitos.
Essa leitura no exercício do seu mandato decorre de lições aprendidas com a forma como decorreram os mandatos dos seus antecessores?
Não, as regras são relativamente claras: ofensa, injúria, discurso agressivo, coação, bullying, o que se quiser fazer entre quem está num debate democrático, isso tem de merecer uma intervenção que seja inibidora.
E isso inclui os apartes?
Tenho feito esta dimensão pedagógica por várias vezes. Um aparte não pode ser confundido com um insulto. Se formos ver o que diz o regimento, um deputado, numa intervenção, não pode ser interrompido. Não se considera interrupção uma manifestação de concordância ou discordância em relação ao que está a dizer. Isto é o conceito do que é o aparte. Quando se vem legitimar que outro tipo de expressões, faz parte da retórica parlamentar, os insultos não entram na retórica parlamentar. Nós não confundimos situações de insultos, ou intervenções injuriosas que acontecem, ou podem acontecer, entre senhores deputados e que, estando com o microfone desligado, nós na mesa não ouvimos.
Mas não existe um canal de denúncias no Parlamento? Isso não ajudaria?
Mas, tal como eu disse uma vez e também foi dito na anterior legislatura, essas situações podem ser reportadas ao presidente da Assembleia da República formalmente, e ele pode encaminhá-las para a Comissão de Transparência para fazer a avaliação. Se aquelas situações que são objeto de denúncia ao presidente da Assembleia da República merecem uma advertência, ainda que seja uma advertência verbal, é uma advertência, fica registado que há uma advertência que foi ponderada pela Comissão de Transparência. Havendo essas situações que são denunciadas, que eu ouço e vejo por alguns deputados na comunicação social, porque é que não as fazem chegar também ao presidente da Assembleia, dizendo qual foi o dia, a hora e quem, para que o presidente da Assembleia possa fazer o envio para a Comissão de Transparência?
Uma das originalidades desta legislatura é que o senhor só foi eleito para meio mandato. Mantém-se tudo na mesma? Daqui a um ano, no dia 23 de março do próximo ano, põe o lugar à disposição? Porque, entretanto, o candidato do Partido Socialista já não está cá nesta casa.
É verdade. Só que eu farei aquilo que são os meus compromissos, como é óbvio. Portanto, à época foi a solução possível. E mais uma vez, até lhe digo, num exercício de esforço democrático para não bloquear aquilo que era logo a entrada em funções da Assembleia da República, houve também maturidade política – tirando agora os fait divers que conduziram a isso -, para se encontrar uma solução. Eu próprio aceitei, num exercício daquilo que era prioritário.
Fez um sacrifício pessoal para aceitar esta situação?
Eu fiz a minha opção porque achei que era importante na lógica do que acabei de dizer. Não iria eu, naquele momento, ser um problema.
Foi um sacrifício?
Se fosse um sacrifício inultrapassável não tinha aceitado. Significa que, na prioridade das coisas, nós colocamos o interesse público. Quando eu me candidatei foi para os quatro anos e era essa a normalidade que devia ter acontecido. Mas também não queria que houvesse um bloqueio, porque aparentemente, pelas sugestões também que na altura indicavam, eu era o nome mais consensual para o exercício de funções. Era um facilitador mesmo para esta solução que foi encontrada. É verdade que na altura a ponderação que estava em cima da mesa seria o Dr. Francisco Assis a ser. Depois ele já cá não está. Eu cumprirei a minha parte, logo se verá. Nessa altura será bom sinal porque a Assembleia da República estará a trabalhar com o novo Presidente da República.
E se lhe pedirem para continuar?
Será avaliado tudo na altura.
E no fim desses dois anos, regressa à bancada do PSD ou abandona o Parlamento?
Sinceramente é tema que não me ocupa neste momento. Eu acho que nesse aspeto tenho histórico suficiente de vida e de vida política para que a minha palavra não precisa de estar escrita, basta a palavra dada. E, portanto, quando eu assumi que naquela altura apresentaria o meu lugar a disposição… falou das condições políticas que existirem à época, elas podem enunciar muitas coisas, logo se verá.
E foi esse compromisso que fez com que tivesse resistido aos pedidos, que sei que teve, quer para se candidatar à Câmara do Porto, quer para uma eventual candidatura a Belém?
Manifestei logo que a Câmara do Porto não se enquadrava naquilo que era o meu horizonte. Se eu estou a cumprir um mandato, estou com este mandato. Desejo cumprir bem o mandato. Acho que quando a pessoa está a exercer uma função e pensa em mais do que a função que está a exercer, faz mal as duas coisas.
E em relação às presidenciais?
Tal como eu disse e continuo a dizer, acho que esse não é o tema que preocupa os portugueses e não devia estar na agenda. Aliás, está na agenda de uma forma um bocado manca, no sentido em que até agora só há os candidatos assumidos e outros hipotéticos. Como digo, a discussão não está na agenda dos portugueses, só está no que diz respeito aos cientistas da política.
Não é bem assim porque o próprio Dr. Marques Mendes decidiu antecipar o anúncio da sua candidatura…
Obedece a um critério dele. O meu critério é o critério de que não é tempo. Não era, nem é o tempo de a questão das presidenciais estar na agenda. Não andarei longe da verdade ao dizer que esta não era a primeira das preocupações dos portugueses.
Acha que Marques Mendes devia ter esperado mais tempo para se apresentar?
Não. Cada um apresenta no tempo que entende. A minha agenda não é essa. Portanto, quando a questão se colocar para eu me pronunciar sobre as presidenciais, falarei. Este não é o momento.
O exercício deste lugar de presidente da Assembleia da República é um passo que pode ser importante para uma candidatura presidencial?
Acho que vivemos circunstâncias onde o exercício desta função é muito importante para a qualidade do nosso regime democrático falhar ou não falhar. Acertar ou não acertar nas múltiplas facetas que tem o exercício da função de Presidente da Assembleia da República, quando o Parlamento é o foco de muita atividade política, de muita sensibilidade e atenção e, inclusivamente, na dimensão da diplomacia parlamentar. Porque hoje – como em muitos parlamentos que estão hoje tão fragmentados como o português -, o debate de matérias de natureza ideológica que estão em cima da mesa, mais para a direita ou a extrema-direita, ou mais para a esquerda ou a extrema-esquerda, é um debate que tem a ver com a capacidade de falar mais ou menos livremente. As teorias do cancelamento, as teorias de bloqueamento, etc. Todas essas matérias estão hoje muito centradas também no debate parlamentar. Significa que esta função eleva a visibilidade que um presidente da Assembleia da República tem, desde o momento do seu discurso de tomada de posse, de todos os momentos em que tem feito intervenções, é realmente politicamente muito relevante. E, portanto, eu diria que hoje é uma função muito importante no quadro do que é a defesa do Estado de direito democrático, da construção permanente da democracia, da pedagogia do respeito pela diferença, do confronto das ideias, da igualdade social. Exige capacidade de chegar a consensos e ser moderado.
É um bom currículo para quem depois quer ter essas funções no Palácio de Belém?
Se calhar é um bom currículo, não sei. As pessoas é que terão que depois fazer a avaliação daquilo que é o nosso currículo, em tudo o que fazemos na vida e, portanto, o que nós somos não é um bocadinho do que nós fazemos na vida. O que nós somos é o depósito que nós, ao longo da vida, vamos fazendo na nossa garrafa.
Já marcou para o dia 11 de março a famosa reunião com os agentes de justiça para proporem medidas para melhorar a justiça. O que espera que resulte desse encontro?
Ajudar a que, no âmbito da Justiça, se pudesse ter contributos que ajudem a resolver os muitos problemas que a Justiça tem. O objetivo é o de juntar aqui na Assembleia da República – órgão de soberania legislativa por excelência -, os agentes judiciais e ouvi-los sobre quais são as cinco ou dez prioridades que vêm e depois, acolhermos os vários contributos e recolher aqueles que possam ser consensuais.
Disse num dos seus discursos: ‘Quem não reforma é reformado. Quem não transforma é transformado. Quem não apresenta soluções torna-se o problema’. Estamos quase com um ano de Governo, acha que estas palavras foram ouvidas? Acha que alguma coisa mudou?
O que eu quis dizer é que acho que nós vivemos tempos exigentes para o reforço da intervenção cívica, de reforço da participação, de reforço da responsabilidade de todos em não só fazer diagnósticos, não só constatarmos, em qualquer área da nossa intervenção política. Não basta dizer, desresponsabilizando-nos de quem é que vai fazer. O que eu quero dizer com isso, quer seja nas dimensões sectoriais, quer seja na defesa da qualidade da nossa democracia, é que corremos o risco de um dia acordarmos com situações que não desejamos. A liberdade e a democracia não são um dado adquirido.
E acha que o eleitorado tem dado esse recado aos políticos?
A abstenção não é solução porque, como disse o senhor Presidente da República no 5 de Outubro, a democracia pode ser muito imperfeita, pode ter muitas imperfeições e até pode ser, às vezes, uma má democracia, mas a má democracia, ainda assim, é melhor que a melhor das ditaduras e, portanto, isto é um referencial que nós não devemos perder nunca de vista. E como é que em democracia se consegue ultrapassar os obstáculos? Não é com a abstenção, não é com o não fazer aquilo que a mim me compete, que é a de ser um elemento participativo, interventor. É esse apelo que eu ando sempre a fazer. A democracia dá muito trabalho. As pessoas acham, ou achavam algumas, que é trabalho de outros, ou dos políticos.
Mas quando as pessoas olham para o parlamento, em que os entendimentos e os consensos são essenciais, isso não acontece?
O governo não tem maioria, muitas vezes, para fazer aprovar leis com menos importância aqui no Parlamento. Mas também é injusto dizer, em boa verdade, que a democracia não está a funcionar em Portugal. Um diploma tão importante quanto é o orçamento foi aprovado com grande sentido de maturidade política.