O centro histórico de Tallinn é encantador e permite-nos passear pelo traçado de uma cidade medieval. Apesar da destruição dos bombardeamentos soviéticos no final da Segunda Guerra Mundial e a consequente ocupação comunista, a maioria dos edifícios foi erigida entre os séculos XIII e XVI e está excepcionalmente preservada.
Mesmo com as temperaturas negativas de Fevereiro, o mês mais frio do ano, há turistas nas ruas; visitam lojas locais, restaurantes temáticos, os museus e os tantos pontos de interesses histórico. O ambiente é de tranquilidade e recorda-me o que em tempos foi a minha distante Lisboa…
Maravilhado com a cidade e atento à arquitectura, noto uma placa à porta de uma pequena e acolhedora livraria. Leio que ali era a sede do movimento literário Siuru, nome do pássaro de fogo da mitologia fino-úgrica, fundado em 1917. Desconhecia e a minha curiosidade aviva-se. Era um movimento expressionista e neo-romântico, com afinidades com o futurismo e o impressionismo, cuja filosofia assentava na liberdade do espírito humano. Apesar de efémero, os seus membros tornaram-se figuras importantes da Literatura estónia.
A minha descoberta é interrompida quando na montra vejo uma edição de O Banqueiro Anarquista e outros contos em estónio. Entro e volto a ver o livro em destaque, junto ao balcão. Peço para tirar uma fotografia, dizendo que sou português. O dono acede e diz-me que é o editor do livro. As perguntas explodem na minha cabeça e começamos uma conversa sobre livros e livrarias, autores e editores, traduções e línguas, os nossos países e até o turismo.
Martin é alfarrabista e tem uma editora independente chamada Paradiis. Respeita a herança do Siuru e tem afixada a fotografia dos fundadores do movimento, August Gailit, Marie Under, Johannes Semper, Friedebert Tuglas, Artur Adson e Henrik Visnapuu. Gosta do seu pequeno canto e dos encontros, como o nosso, que a livraria proporciona. É crítico das grandes cadeias e diz que podem ser bonitas, mas que lhes falta o espírito bibliófilo. Concordo e digo que de manhã estive numa Rahva Raamat. Achei o espaço muito agradável, até lá tomei café, mas saí de mãos a abanar. Digo-lhe que chamo a esses locais «boutiques de livros», porque apenas vendem o que está na moda.
E o Pessoa? Martin diz-me que muito já estava traduzido, tanto na poesia como na prosa, nomeadamente o Livro do Desassossego. Mas tinha encontrado estes contos e livres de direitos de autor. O grande desafio foi encontrar tradutores à altura desta tarefa, isto porque, segundo me disse, estes textos não são apenas histórias, são também filosóficos. Pergunta-me sobre Pessoa, sobre as diferenças entre o português europeu e o do Brasil, os heterónimos, os textos em inglês do jovem poeta… E, por fim, se conheço a imagem da capa. Claro! É o famoso retrato feito pelo Almada Negreiros. Tinha sido escolha dele e até tinha descoberto que havia duas versões do quadro. Pede-me sugestões de autores portugueses para publicar e atiro prontamente o Eça e o Camilo, que ele não conhecia. O que é óbvio para mim, é uma descoberta para ele. E vice-versa.
Falamos de autores estónios, um mundo novo do qual nada sei, e recomenda-me Jaan Kroos, dizendo que é muito conhecido e traduzido. Agora, a descoberta é minha. Diz-me que eu seguramente tinha visto a estátua dele umas ruas abaixo. Respondo que sim, porque até a tinha fotografado. Estava com um cachecol com as cores nacionais estónias e em frente a um restaurante português chamado Tasca.
Percorremos autores e preferências literárias, numa óptima conversa. Lá fora tinha escurecido e era hora de partir. Com um saco de livros, despeço-me e trocamos agradecimentos. O Martin, com um ricto cúmplice, remata: «Foi por causa do Fernando Pessoa.»
Mas as histórias de livros nunca acabam…
No dia seguinte visito a Raamatukoi, uma livraria extraordinária no centro de Tallinn e compro alguns livros sobre a História e a Literatura estónias. De seguida, vou até ao Restoran Pegasus, mesmo ao lado, um local que abriu nos anos 60 e era um ponto de encontro de artistas e escritores. Tenho encontro marcado com Ruuben Kaalep, jovem político e antigo deputado, para uma entrevista a propósito do Dia da Independência da Estónia. No final, em conversa, conto-lhe o meu encontro pessoano do dia anterior. Para minha surpresa, diz-me que o pai era poeta e traduziu Fernando Pessoa. Incrível! Abre um dos livros que comprei e rapidamente descobre uma referência a Ain Kaalep, louvando o seu trabalho enquanto tradutor. Perante o meu espanto, responde-me que é natural, porque «a Estónia é um país pequeno». Digo-lhe que não é pequeno, é familiar. Como a Europa.