A divisa dos carrascos era Só Deus e Nós: ninguém os tolerava, eram de tal forma destetados que estavam proibidos de viver dentro das muralhas das vilas e das aldeias. Moravam nos arredores, eram segregados com o mesmo asco com que se segregavam os leprosos, os assassinos ou os ladrões. Eram alvo da ingratidão das comunidades e populações que acorriam aos pelourinhos para verem rolar cabeças, mas detestavam quem as cortava. Alguém tinha de o fazer e, até ao século XIX, ser carrasco era uma função pública que, obviamente, não dignificava quem a assumia. Era também uma profissão que passava de pais para filhos, não havia escolha: filho de carrasco teria de ser carrasco. Só Deus e Nós mais do que um lema era uma tradição de família. A divisa queria dizer que só Deus os julga, que viviam num limbo entre o Céu e a Terra, fora do mundo mas ao serviço dos mortais, matando.
Salvaguardando as devidas distâncias, intensidade e funções, os políticos de hoje sofrem do mesmo mau olhado. É para aí que estamos a caminhar entre gritos, berraria e insultos. No debate público só é ouvido quem grita e, pior, quem enxovalhar políticos. O politicamente correto de hoje é ser politicamente inquisidor. Se a culpa é dos políticos, da comunicação social, das redes sociais, dos espetadores ou do sistema, é uma discussão que ficará apenas em discussão. A resposta, essa, serão os arqueólogos da democracia a dá-la.
Para já o resultado prático da desconfiança com os políticos é que sobram muito poucos os que querem dedicar a sua vida à política. Não há nada de racional em ser político: não se progride, não serve para o currículo, não se ganha tanto quanto no setor privado, não há qualquer privacidade e o risco de se ir ao chão porque a resposta não foi pronta nem certeira ou porque o cunhado tem um terreno rural é iminente. Ser rico, então, é fatal, tal como era ser carrasco. O novo chanceler alemão tem um avião, é um eminente advogado, é católico e é multimilionário às custas do seu trabalho. Por cá, não teria passado pelo crivo das manchetes; por lá, as manchetes só o chatearam porque o avião gasta muito combustível. Por cá, um chanceler destes não seria governante ou até seria, mas não poderia decidir sobre a TAP ou o novo aeroporto – estaria em conflito de interesses por possuir um avião – e seria obrigado a divulgar todos os negócios que fizeram dele multimilionário. Dizem os fariseus no século XXI que quem não deve, não teme. Errado: quem deve e quem não deve, teme. Dizem ainda que defendem o escrutínio, que em democracia tem de existir escrutínio sobre quem exerce cargos públicos. Certo. Só que escrutínio não é striptease e os limites devem obedecer à decência e não ao voyerismo.
Além da fuga dos jovens para o estrangeiro, temos a fuga dos jovens da política. Quem está tecnicamente bem preparado, os melhores alunos e os mais ambiciosos, não querem nem saber de partidos, política ou políticos. O serviço público, esse, cumpre-se em ações de voluntariado, na melhor das hipóteses. Ser político é cadastro, não é currículo.