Nascido em Luanda em 1970, é um dos escritores portugueses mais lidos e respeitados lá fora. A propósito de Museu Imaginário, fala-nos sobre a velocidade da vida nas cidades, recorda como surgiu a devoção pela literatura e revela que ainda tem muitos livros escritos guardados na gaveta. Primeira parte de uma entrevista que continua na próxima edição.
Começou a publicar em 2001 e desde então tem sido uma verdadeira enxurrada – de livros e de prémios. A crítica e os seus pares não lhe regateiam elogios. José Saramago disse dele que escrevia tão bem que dava «vontade de lhe bater»; Enrique Vila-Matas chamou-lhe «escritor genial»; Lobo Antunes considera-o «o mais cotado» dos autores portugueses. Mas Gonçalo M. Tavares parece manter-se estranhamente imperturbável face a esse coro de louvores. Isola-se no seu bunker todas as manhãs para trabalhar – estar só é para ele uma necessidade – e continua a produzir a uma velocidade vertiginosa.
Sentamo-nos para uma conversa a propósito do seu mais recente livro, Museu Imaginário da Europa e Outras Ideias (ed. Relógio d’Água), uma encomenda de Aveiro Capital Portuguesa da Cultura 2024. O local escolhido é o Luanda, um dos cafés históricos de Alvalade, que foi ponto de encontro de figuras das letras. E continua a ser…
Viveu sempre em Lisboa?
Não, eu nasci em Luanda em [19]70. O meu pai estava a construir uma ponte em Angola.
Engenheiro?
Engenheiro. Voltámos em 75, por aí. Toda a vida dos meus pais foi em Aveiro. Estiveram em Angola aquele período que durou o projeto e depois voltaram. E eu nasci nessa conjuntura.
Ficou com algumas memórias de Luanda?
Não sei… Há uma memória afetiva que tem a ver não propriamente com a linguagem, mas com o corpo. Recordo-me, tanto quanto é possível de coisas mais físicas, isso sim. Realmente há qualquer coisa que tem a ver até com a cor da terra e com o cheiro, que também é diferente. Sempre que vou a um país africano há qualquer coisa que toca, mas não sei bem o quê. Tenho umas imagens da baía de Luanda, mas já nem sei se são imagens que resultaram de ver fotografias dos meus pais.
E voltou lá?
Não voltei. Fui algumas vezes convidado, mas nunca tive muita vontade. Havia ainda uma certa violência, uma pobreza extrema. Talvez agora as coisas estejam ligeiramente melhores, qualquer dia gostava de voltar.
É um país com tantos recursos e no entanto…
Há uma maldição em relação aos países que têm muita riqueza natural – e Angola é riquíssima. Acaba por se gerar uma desproporção em que a grande miséria está ao lado de grandes riquezas. Mas ao mesmo tempo Angola hoje é uma produtora de música, de arte, de escritores… Há ali uma força criativa que a paz tem permitido. De repente apareceram escritores de diferentes gerações, artistas, etc. E só é possível fazer arte quando há um nível económico base, porque criar arte é uma espécie de luxo.
Primeiro é preciso assegurar a sobrevivência.
No Jerusalém e no Aprender a Rezar [na Era da Técnica] eu falava um bocado de uma energia-base que existe no ser humano. Uma energia para a sobrevivência. Quando sobra energia, a pessoa pode fazer uma série de coisas, desde namorar a fazer artes. Até namorar é de alguma maneira um luxo, porque pressupõe que a pessoa tenha um tempo que pode dedicar ao amor. Tenho um amigo que diz, de uma forma muito cínica, que não tem dinheiro para se apaixonar.
Para levar a namorada a jantar fora? [risos]
Para ir jantar fora, sair. Dinheiro e tempo. Estar apaixonado exige uma quantidade de tempo. Se a pessoa anda sempre a correr, se tem dois empregos… Seria interessante ver, em Portugal, até que ponto o facto de algumas pessoas trabalharem que nem loucas afeta as relações amorosas. Como é que a pessoa tem tempo para se apaixonar? Não há, não existe.
O tempo é todo absorvido pelo trabalho.
No Ocidente as pessoas estão ‘atafulhadas’, sempre a correr de um lado para o outro. Chegam a casa absolutamente cansadas, extenuadas. É uma espécie de transfusão sanguínea, como se a cidade e as exigências sugassem as pessoas. O sangue ou a energia podem ser utilizados para se apaixonar, para criar, etc. E é muito triste ver que mesmo em países europeus como o nosso muitas pessoas estão apenas a responder a urgências do dia, urgências económicas.
Muitas vezes criam-se também ‘necessidades’ artificiais, e as pessoas acabam por tornar-se escravas disso.
Há uma teoria do tempo muito forte, vários autores que falam sobre a ideia de não vivermos todos na mesma época. Nós, no centro de uma capital europeia, estamos a viver em 2025. Mas, à medida que nos vamos afastando, não apenas nos afastamos no espaço, mas também no tempo. Se alguém não tem acesso à internet, é como se vivesse antes do aparecimento da internet, como se estivesse em 1990, por aí. Se alguém não tem, e há casos disso até em Lisboa, água canalizada, ou eletricidade, é como se vivesse no século XIX ou no início do século XX. A ausência destas pequenas coisas, que aparentemente são materiais, faz com que a pessoa esteja noutro tempo. E mesmo nós, como é evidente, não estamos no mesmo tempo que o Elon Musk ou o Bill Gates. Eles já estão noutro tempo. Não a nível de ideias, mas a nível de condições médicas, por exemplo. Estes magnatas têm acesso a tecnologia e a apoio médico de que nós não temos sequer ideia. De alguma maneira, se eles estiverem em 2025, nós estamos lá para trás. E isto é terrível. É quase como se o dinheiro definisse o ano em que nós estamos. Os milionários estão em 2025 e nós estamos, se calhar, em 2018 ou 2017. E há pessoas que infelizmente ainda estão em 1900 e tal ou 1800 e tal.
Em Portugal ainda há quem tenha de acender uma fogueira para fazer o jantar.
Ou de ir buscar água ao poço, como os nossos bisavós faziam. E por isso a questão da falta de tempo, de que se queixam os contemporâneos, é quase ofensiva em relação aos nossos bisavós, que muitas vezes, só para uma coisa simples, como ir buscar água ou fazer uma refeição, precisavam de horas. Nós hoje, mal ou bem, podemos fazer uma refeição em cinco minutos. A tecnologia também foi encurtando esses tempos.
Só que nós próprios depois temos de corresponder a esse ritmo. Não somos só beneficiários, andamos sempre a correr atrás do tempo.
Há pouco tempo escrevi um texto sobre isso. Uma perversão que existe na cidade é transmitir a sensação de que estamos sempre atrasados. É raro ver uma pessoa no centro de Lisboa que esteja a caminhar calmamente. Esta ideia de estar sempre atrasado é uma ideia de quase inculcar uma culpa.
Como se estivéssemos em dívida…
Uma dívida quer funcional – no trabalho, ‘ainda não fiz o suficiente’ -, quer amorosa – ‘não estou a dar o suficiente’. Muitas das pessoas que vivem na cidade de alguma maneira abandonaram a religião, mas a máquina funcional da cidade foi inscrevendo novas culpas. Quase como se precisássemos agora de novos batismos para sermos salvos da nossa culpa. Um batismo que nos salve da culpa de não produzirmos o suficiente.
Acha que as pessoas são apenas peças na engrenagem dessa máquina, que cumprem uma função mas podem ser substituídas sem grande prejuízo?
Na primeira parte do Museu Imaginário falo um pouco sobre a questão da velocidade como um dos tópicos contemporâneos. Realmente a cidade é uma máquina que aumenta a velocidade dos seus organismos, das suas peças. Basta existirem novas pessoas para de repente a velocidade aumentar, e basta afastarmo-nos da cidade e ir para o campo para termos uma outra lentidão. Gosto muito da ideia da cidade como máquina global. Tem algumas características criticáveis, mas outras absolutamente incríveis. Por exemplo, se nós virmos de cima uma estação de metro, de repente saem mil pessoas ao mesmo tempo. Dessas mil pessoas – há duas saídas – 500 vão para um lado, 500 para o outro. Saem cá para cima e, simplificando, vão 250 para um lado e 250 para o outro. Depois há uma esquina, vão 125 para um lado e 125 para o outro. Às tantas ficam só dois, vai um para cada lado. Em certa altura, um daqueles 1000 mete a chave à fechadura do prédio, abre a porta da sua casa, deita-se no seu lado da cama e vai adormecer. Por um lado parecemos quase peças, mas por outro lado é incrível como isto está organizado, como é que a máquina-cidade consegue distribuir uma grande massa de pessoas de uma forma orgânica. E o facto de não se matarem todos uns aos outros diariamente às dezenas é quase surpreendente, porque as pessoas querem sempre coisas diferentes, vão para sítios diferentes, vão a velocidades diferentes. O que eu acho espantoso é não haver muito mais violência. Apesar de tudo, a cidade está organizada para que diferentes pessoas possam ir em diferentes direções e velocidades – um que vai para uma farmácia, outro vai para uma igreja, outro vai para um bordel, outro que vai comprar maçãs, outro que está atrasado… e parece que quase por magia as pessoas não se tocam, ou raramente se tocam.
Disse que a concentração de pessoas aumenta a velocidade. Por isso é que os eremitas se retiravam para o deserto…
Acho que há uma energia qualquer elétrica que se transmite quando a pessoa entra na cidade. Mesmo que não ande mais rápido. Por exemplo, o facto de haver muitas pessoas até pode fazer com que ele tenha que parar. Mas o seu coração está acelerado, há uma aceleração interna muito maior do que se a pessoa estiver num espaço vazio.
A escrita é uma coisa que exige tempo, que exige solidão.
Sim, sim.
Passa muito tempo sozinho, retirado?
Sim, eu tenho uma espécie de bunker temporal e espacial.
Um escritório?
Chamo-lhe ateliê, é um sítio onde eu desligo a internet, estou mais ou menos fechado, e é um bunker temporal no sentido em que as manhãs para mim são mais ou menos sagradas. É o espaço onde estou isolado a ler, a escrever, etc. E tento defender ao máximo esse bunker espacial e temporal – é mais difícil até defender o bunker temporal. Não sei se falou de termos esta conversa de manhã…
Então foi por isso que marcou para a tarde.
Posso nem todos os dias escrever, mas pelo menos tenho de ter três, quatro horas de isolamento. Estar sozinho, para mim, é uma necessidade básica, e estranhamente joga com a ideia de estar na cidade. Já tive alguns convites para ir para uma montanha escrever, numa cabana, e não consigo.
Já fez essa experiência?
Já fui um ou dois dias e depois recuo rapidamente, porque precisamente, para mim, escrever e ler remete para um isolamento de três, quatro horas. E depois preciso de sair à rua e sentir essa energia elétrica das pessoas. E se estiver isolado de repente saio…
E está sozinho na mesma.
Isso cria-me uma angústia… Eu necessito de uma espécie de energia da multidão. Aliás, há um conto famoso do Edgar Allan Poe que é precisamente um homem que vai procurar as multidões porque tira uma espécie de energia dali. E eu preciso dessa energia humana, às vezes quase anónima. Gosto imenso de andar na rua e sentir as pessoas – não é necessariamente estar com pessoas, é sentir as pessoas a caminhar de um lado para o outro. Isso dá-me uma espécie de energia elétrica que na manhã seguinte eu retransformo em energia literária, se possível.
Por falar em energia anónima, consegue manter o anonimato? Não lhe acontece querer passar despercebido e perguntarem-lhe se não é o Gonçalo M. Tavares?
Aos 20 e tal anos escrevi muito nos cafés, desenhava, etc. A partir de certa altura, às vezes estava a escrever e aparecia uma pessoa e isso baralhava-me um pouco. E deixei de escrever em cafés. Sou muito recolhido e vou conseguindo fazer o que quero fazer… Acho que o importante é a pessoa canalizar toda a sua energia mais potente para a criação e tentar que tudo o resto não interfira demasiado. Mas claro que depois há consequências. E por isso é que também escrevi muito entre os 20 e os 30 sem editar, porque realmente há sempre depois coisas que aparecem que nada têm a ver com a escrita e que eu senti que me podiam perturbar.
Solicitações, compromissos…?
Quando escrevo de manhã vou para o mundo muito disponível. Quando não escrevo, fico mais irritado e menos disponível. Portanto, são coisas que estão ligadas.
Quando descobriu que o que queria mesmo era escrever, que a criação para si ia ser na escrita e não noutro campo qualquer?
Não sei, foi uma coisa gradual. Eu, como muitas pessoas, tinha interesses muito diferentes. Por exemplo, jogava futebol, adorava matemática – tinha uma intuição para a matemática que era engraçada. Aliás, os colegas dos meus 14, 15 anos lembram-se de mim da matemática. Sempre li bastante, mas de repente a leitura começou a ocupar um espaço… Eu comparo com uma espécie de infiltração. Primeiro apareceram umas gotinhas, foi como se as paredes – até da matemática, etc. – começassem a ficar húmidas. De repente começa a entrar água e depois é uma inundação. A certa altura a pessoa está ali a nadar. E mais do que ler ou escrever, se não estou um período sozinho, fico mesmo irritado, porque é uma coisa já mesmo…
Uma necessidade.
Sim, e não é uma decisão intelectual. Levanto-me e o meu organismo precisa daquele momento sozinho. Não é que o meu organismo precise de escrever, apesar de para mim ser muito natural escrever, mas preciso de estar aquele período da manhã sem ver pessoas.
Agora lembrei-me do filme O Pianista, em que o protagonista, um pianista judeu, está escondido num apartamento vazio onde há um piano, e às tantas sente uma necessidade quase irreprimível de tocar. Mas sabe que não pode tocar porque isso iria denunciá-lo, e fica numa tensão enorme. No caso da escrita não há esses constrangimentos.
Tenho amigos músicos que já mudaram algumas vezes de casa por causa dos vizinhos. Em relação à literatura, sim, é muito silenciosa.
Não incomoda ninguém.
Felizmente, mesmo que alguém escreva terrivelmente, não faz muito som. Lembro-me daqueles agudos do clarinete quando alguém falhava as notas… E é interessante isso. As artes silenciosas são artes que de alguma maneira podem ser feitas quase em qualquer espaço. Realmente a literatura é uma arte pobre no melhor dos sentidos. No limite, não pensando num computador, que já exige algum investimento, pensando em caneta e papel, é a coisa mais barata que possa existir. Se pensarmos no cinema, teatro – arquitetura nem se fala – são tudo artes pesadas… A literatura é por um lado uma arte pobre, com meios pobres, e é por outro lado uma arte que não incomoda os outros. O ato de publicar pode incomodar, mas o ato de escrever não.
Nessa altura, entre os 20 e os 30 anos, não sei se escrevia para a gaveta ou se já pensava em publicar, mas via-se a si com um escritor meio clandestino, meio secreto? Um escritor que um dia ia ser descoberto?
Nesses anos li e escrevi brutalmente, mesmo. Foi o período mais… quase alucinado. Em termos de leitura era muito impressionante. Agora continuo a ler bastante, mas naquele período eu lia como um animal, e escrevia. Era uma coisa mesmo doida. E o que aconteceu foi que fui escrevendo muitos livros e a certa altura pus claramente a ideia de só publicar a partir dos 30. E foi o que aconteceu.
Porque queria também ter um certo distanciamento, deixar amadurecer?
Por escrever muito e ter estado quase uma década sem publicar, quando publiquei o primeiro livro tinha dezenas de livros já feitos. Julgo que o Jerusalém saiu em 2004, mas devo tê-lo escrito em 1999. O Viagem à Índia saiu em 2010 e escrevi-o em 2002. Eu tenho um método um bocado maluco, que é escrevo a matéria bruta e depois esqueço-me do livro. Passado um ano ou dois revejo e portanto, muitas vezes, entre o momento de escrita inicial e o momento de publicação são seis anos, sete. Esta é a norma. E isto faz com que eu olhe para os livros com um sentido crítico muito grande, cortando tudo sem piedade…
Faz muitas alterações?
Mudo muito, muito, muito. Vou tornando o texto cada vez mais curto, cortando, limando… Quando passado alguns meses volto a ler o livro e sinto que está final é que publico. Mesmo hoje, em 2025, tenho montes de livros que ainda não publiquei, coisas que acho que são fortes. Isso dá-me uma tranquilidade muito grande. Claro que se eu morrer é uma chatice – morrer é chato, no geral, mas é uma chatice porque há coisas que não estão organizadas. Mas sim, tenho muita coisa que acho importante que ainda não saiu e isso dá-me tranquilidade.
Ficheiros no computador?
No computador, mas também em cadernos, de quando eu escrevia em cadernos.
Durante esses cerca de dez anos em que não publicou vivia de quê?
Comecei a dar aulas na faculdade, mas tentei sempre reservar esse espaço que foi crescendo.
Roubava ao sono…?
Tentava organizar-me de uma maneira a que essas horas fossem protegidas, tentava ter as coisas [obrigações] mais da parte da tarde. E consegui sempre respeitar esse espaço de escrita.
Acaba de dizer uma coisa que me parece bastante reveladora. Porque existe aquele arquétipo do escritor desregrado, que bebe imenso, que não respeita nada, que não cumpre horários. O seu caso parece a antítese disso. Parece que tem tudo muito controlado.
Não tenho tudo controlado, era bom que tivesse. Não tenho, a vários níveis. Muitas vezes associa-se o artista a alguém que tem um modo de vida ou um comportamento ‘artístico’, digamos. Eu nunca percebi isso. Lembro-me de quando às vezes ia ao Bairro Alto e via uma data de pessoas que se mexiam como artistas, vestiam-se como artistas, etc. Mas depois não tinham um quadro, não tinham uma sinfonia, não tinham um livro, não tinham nada.
Se calhar não tinham uma ideia.
O Lobo Antunes escreveu uma crónica muito engraçada, estou a recordar de memória, não sei se é exatamente assim, mas é esta a ideia: ele queria muito ser escritor quando era novo, e havia um escritor que ele admirava que era gordinho. E ele, como queria ser escritor, começou a comer muitas sanduíches com gordura e não sei quê para também ser escritor. Às vezes há pessoas que querem ser artistas pela parte exterior. Eu sou muito antiquado nesse particular. Para mim, um pintor é alguém que tem bons quadros; um músico é alguém que tem boas músicas; um escritor é alguém que tem bons livros. Esta ideia de que alguém é escritor porque anda como escritor ou alguém que é pintor porque se veste como pintor…
Ou tem um comportamento extravagante.
Isso é absurdo. E nesse aspeto há outro particular: a mim não me interessa nada o que as pessoas fazem, se um escritor anda de mini-saia ou de calças grandes, se faz performances assim ou assado. O Balzac e o Proust andavam em festas. Não interessa. O que interessa é que livro a pessoa escreveu. É bom ou não? É um pintor? Que quadro é que fez? É um músico? Que música é que fez? Isso é que interessa. Se ele anda todo desgrenhado, todo direitinho, se aparece muito ou aparece pouco não é importante. E até a nível ético mais geral. O Céline, alguém muito próximo da extrema-direita, absolutamente abominável em algumas questões, é para mim um dos cinco grandes escritores franceses de sempre. Ou estamos no campo da estética ou estamos noutros campos. E, no campo da estética, não é uma estética do artista, como é que ele veste ou como é que se comporta – é o que ele fez, quais são as suas obras. Porque se se entra numa competição da ética, então os santos ganham. Se é uma coisa ética, então o santo é o melhor dos artistas, porque é o mais ético. Não é. É do campo da estética. Não da estética do artista, se ele é bonito ou feio, se se deita à meia-noite ou não, mas dos livros.
É esse o campeonato que interessa.
Claro. Quando alguém começa com muitas conversas, a questão é: ‘Mostra-me lá o teu livro, mostra-me lá o teu filme, mostra-me lá a tua música, mostra-me lá o teu quadro’. É insuportável às vezes a quantidade de discurso que existe à volta de quase nada. O escritor escreve livros – que livros é que tem? O pintor pinta – que quadros é que tem? l
(continua na próxima edição)