O mundo Musk está perto

Já não são apenas excêntricos visionários criando produtos inovadores e acumulando fortunas; estão a adquirir poder real, iniciando uma nova fase da história cuja direção é difícil de prever.

Estamos a assistir a uma mudança profunda no mundo e nas sociedades, muito mais significativa e impactante do que as preocupações imediatas geradas pelo governo e pela visão de mundo da administração de Donald Trump e/ou das alegadas democracias liberais e desta U.E.. É certo que a reconfiguração da ordem política das últimas décadas desperta sobressaltos, inquietações e entusiasmos, seja relativamente ao papel da União Europeia, ao futuro do progressismo, do liberalismo e do globalismo. No entanto, as mudanças estruturais em curso transcendem o âmbito político e pertencem a outra esfera.

A tecnologia assume um peso cada vez maior nas nossas vidas. As inovações recentes atingiram um nível de desenvolvimento capaz de transformar o próprio ser humano e a natureza de maneiras inéditas. Sempre fomos inventores de ferramentas, mas, atualmente, as grandes empresas e as elites económico-financeiras tradicionais veem a sua influência política ser desafiada por uma nova força: os líderes da revolução tecnológica. O protagonismo de figuras como Elon Musk, Mark Zuckerberg e outros nomes menos conhecidos, mas igualmente influentes, evidencia essa transformação. Já não são apenas excêntricos visionários criando produtos inovadores e acumulando fortunas; estão a adquirir poder real, iniciando uma nova fase da história cuja direção é difícil de prever.

Essa nova fase será moldada, na maioria, pelos produtos e pelas inovações dessas mentes, que se tornaram indissociáveis da vida contemporânea. O ser humano moderno é, simultaneamente, usuário e base de dados. A sociedade parece amadurecer para acolher as ideias desses novos génios, abrindo caminho para uma nova Renascença — ou para um pesadelo tecnológico. No entanto, uma coisa é certa: estamos diante de um mundo totalmente novo. Como alertam alguns dos profetas dessa era, é escusado lutar contra o inevitável. Não se trata de um qualquer determinismo sem fundamento, pensemos no nosso mundo do presente e na relação com a tecnologia. A sociedade já não consegue funcionar sem a ‘internet’, os ‘smartphones’, a inteligência artificial e a automação. A digitalização da vida quotidiana já não é um fenómeno emergente, mas um fato consumado.

As ideias fundamentais que movem esses novos líderes tecnológicos moldarão a realidade do futuro. Entre elas, destacam-se conceções fortemente ligadas ao libertarismo, como a valorização máxima da liberdade individual, o incentivo ao potencial criativo e empreendedor e a crença de que o governo e o Estado são obstáculos à inovação e ao progresso. O otimismo tecnológico ilimitado e o uso da tecnologia como ferramenta de emancipação humana são princípios centrais dessa nova visão de mundo. Para muitos, o governo centralizado das democracias liberais tornou-se um entrave ao verdadeiro avanço da sociedade. A tecnologia, por sua vez, apresenta-se como o meio para libertar os indivíduos do estatismo e promover a autonomia pessoal.

Refira-se uma nota necessária, em tese o libertarismo como foi o comunismo (ideologias completamente diferentes) embora assentem em princípios idealizados admiráveis partem de um erro antropológico fundamental, ou seja, são incompatíveis com a natureza humana e só se podem implementar como violência. O homem sendo completamente livre não age necessariamente bem. No caso do libertarismo a sua fusão com a vertente tecnológica abre agora novas possibilidades de realização.

Estamos diante da possibilidade iminente de um novo modelo político, caso as ferramentas e princípios defendidos pelo libertarismo tecnológico se consolidem. Isso pode redefinir não apenas o papel tradicional do Estado e das corporações, mas também a própria conceção de liberdade e o modo de vida do indivíduo. O libertarismo tecnológico já não é uma ideologia exótica defendida por um pequeno grupo; ao contrário, tem o potencial de remodelar as estruturas de poder globais.

O otimismo tecnológico libertário baseia-se na ideia de que a inovação é a melhor resposta para os desafios sociais, políticos e económicos que os modelos clássicos já não conseguem solucionar. Tecnologias como inteligência artificial, ‘blockchain’, criptomoedas, biotecnologia e automação são vistas como ferramentas capazes de emancipar o indivíduo, reduzindo ou até eliminando a necessidade de Estados, reguladores e instituições tradicionais. O crescimento inevitável de redes descentralizadas para comunicação, sistemas financeiros sem bancos centrais (como as moedas digitais) e contratos inteligentes que eliminam intermediários promete aumentar a transparência e a segurança dos dados.

Já surgem as primeiras experiências concretas de implementação desses ideais, como zonas autónomas, cidades privadas e sociedades digitais baseadas em criptomoedas, que buscam minimizar a interferência governamental. A tecnologia emerge como a chave para um novo empreendedorismo e um livre mercado sem regulamentações, taxas e impostos tradicionais. No ideal libertário, empresas privadas e startups liderarão essa inovação sem as limitações da burocracia estatal. Além disso, as novas tecnologias não apenas transformam a economia e a política, mas também o próprio ser humano. ‘Interfaces’ cérebro-máquina, modificação genética e extensão da vida são alguns exemplos das mudanças que poderão moldar o futuro da humanidade. O indivíduo poderá desfrutar de maior privacidade, escapar da vigilância governamental e, ao mesmo tempo, tornar-se um ser “aumentado”, hibridado com as máquinas. O crescimento das redes privadas, da criptografia e das moedas digitais são apenas os primeiros indícios dessa nova realidade.

Exemplos concretos dessa transição já estão em curso: o desafio ao monopólio estatal sobre a moeda por meio do ‘Bitcoin’ e de outras criptos; a criação de cidades flutuantes projetadas para escapar às regulamentações estatais; e cidades privadas onde indivíduos e empresas vivem experiências libertárias, regendo-se apenas por suas próprias regras. Além disso, um novo ecossistema de comunicação autónomo, livre do controlo estatal ou corporativo, está se consolidando com o uso de tecnologias como Tor, VPNs e comunicações criptografadas. A institucionalização da inteligência artificial e da automação nos processos de decisão poderá, no futuro, tornar obsoletos os governos e as grandes corporações centralizadas. Estas possibilidades estão em muitos casos ainda num estágio experimental e enfrentam desafios significativos para se tornarem viáveis em larga escala, mas é uma tendência mais que possível.

Os riscos e impactos dessa mudança radical são significativos, é certo que falamos apenas de um caminho possível, pois poderá gerar uma desigualdade ainda mais brutal entre pessoas e povos numa fase inicial, aumentar o poder de uma nova elite tecnológica que lhe permita um domínio absoluto e impensável nas sociedades humanas e sobre os indivíduos, pois quem contra as máquinas e os dados detém o poder total.

Diante desse cenário, resta a pergunta: será o libertarismo tecnológico a alternativa ao totalitarismo digital já em curso nos modelos políticos tradicionais? Ou trata-se apenas de um novo caminho para a concentração de poder em outras mãos? Recordemos que mesmo no modelo tradicional estamos cada vez mais na presença de um modo de governança digital. A única certeza é que estamos diante de um novo mundo e de um novo ser humano — não apenas como uma utopia ideológica, mas como uma realidade técnica em rápida consolidação.

Este não é um futuro nem um conjunto de questões próprias da ficção cientifica mas o amanhã já bem presente.