Amália Hoje: “O futuro é sempre mais inspirador do que o passado”

Nasceu há 15 anos como um projeto pop português criado por Nuno Gonçalves, em colaboração com Sónia Tavares, Fernando Ribeiro e Paulo Praça. Amália Hoje deu uma nova roupagem a algumas das músicas da diva portuguesa. Está agora de volta, mas com um repertório diferente que toca nos maiores êxitos da fadista.

No ano de 2009, para assinalar o 10.º aniversário da morte de Amália Rodrigues, Nuno Gonçalves foi surpreendido por um convite da editora Valentim de Carvalho a reinterpretar algumas canções da diva portuguesa. No princípio não aceitou acreditando não ser a pessoa indicada para fazer um tributo à fadista. No entanto, mudou de ideias e ainda bem. Formou um grupo composto por Sónia Tavares (The Gift), Fernando Ribeiro (Moonspell) e pelo cantor e compositor Paulo Praça (Turbojunkie, Plaza) e, com canções de Amália numa vertente da pop, vendeu mais de 60 mil cópias e levou os Amália Hoje a percorrer não só o país, como o mundo. Este ano, a banda está de regresso aos palcos com um novo reportório, mas a mesma vontade de surpreender. No dia 1 de Março, o grupo esteve no Coliseu do Porto e amanhã dará um espetáculo no Coliseu de Lisboa.

Um convite surpreendente

Mas voltemos ao princípio… Tal como referido, Nuno Gonçalves recebeu com surpresa o convite da editora. «Quando o convite me foi endereçado falou-se de uma homenagem a Amália Rodrigues… Um disco de  tributo à fadista. E geralmente eu acho que estas homenagens devem ser feitas por pessoas que conhecem muito bem o legado. Na altura, não era o meu caso.  Eu era uma pessoa que não estava dentro do fado. Nunca estive. Não era um estilo que eu ouvisse», admite à LUZ.

Quando precisava dessa melancolia presente no fado, recorria aos The Cure. «Então, esse convite foi recusado no sentido de eu achar que não era a pessoa indicada para o papel», continua. Depois, na primeira reunião, quando percebeu realmente o que é que se queria – explicar Amália à nova geração –, repensou. «Deram-me a discografia completa e, numa viagem à África, ouvia toda no avião. Escrevi no meu bloco de notas: ‘Hoje – Amália Hoje!’. Este foi o mote para toda esta aventura que já tem 15 anos», lembra o produtor do projeto.

Desconstruir o fado respeitando o legado

A sua ideia foi sempre «não seguir as regras do fado». «Se o fizesse estaria a condicionar o meu trabalho», justifica. Partiu para o projeto de «alma aberta». «E não me interpretem mal… Sem muito respeito por aquilo que era o passado. Eu quis inverter o processo, quis pegar naquelas notas, naqueles poemas e dizer assim: ‘Ok, agora vamos ver com esta base, com estes ingredientes, com esta matéria prima, o que é que se pode acrescentar? Que novas cores se pode pôr?’. Imaginemos um quadro branco com um barco desenhado a traço negro. Agora temos de pintá-lo, inventar… Foi isso que fiz. Comecei a pensar em coisas para fugir daquela tradição e daquela base rítmica, harmónica e vocal. Não me quis deixar levar pela rigidez do fado. Tive de puxar pela imaginação… Imaginar que cada música podia ter um ambiente pop», explica Nuno Gonçalves.

Segundo o mesmo, apesar de antes não conhecer o legado, acreditava que a sua geração tinha uma dívida para com a fadista. Ouvia Amália Rodrigues enquanto o seu pai fazia a barba ou tomava banho… «Recordo-me do último concerto que deu no Coliseu ter sido transmitido pela RTP e ter sido assim um momento grande. Eu devia ter uns seis ou sete anos. Fiquei com memória de uma música ‘O Fado Amália’, e andei a cantá-la durante uns tempos… Curiosamente só este ano peguei nesse fado», partilha. «A minha geração não reteve Amália Rodrigues com todo o expoente que foi», defende.

Através deste projeto, começou a pesquisar, a estudar e conseguiu «retornar esse caminho da grande diva do fado» e «apresentá-lo com uma roupagem diferente a novas gerações».

Nesse primeiro álbum, a banda reinventou temas como: Fado Português; Grito; Gaivota; Nome de Rua; Formiga Bossa Nova; Medo; Abandono; L’Important c’est la Rose e Foi Deus. «Acho que com a ‘Gaivota’, dos Hoje, houve milhares de pessoas que descobriram a música original. Portanto, o nosso objetivo é: por um lado, perdurar a memória – porque eu acho que as pessoas só morrem quando a memória se esquece –, por outro, em termos artísticos, evoluir com estas canções para um sítio que nos estimule artisticamente e que, de alguma maneira, traga alguma coisa nova às composições antigas», revela.

A escolha e disponibilidade dos membros

Interrogado sobre a escolha dos elementos do projeto e sobre o facto de cada um ser de universos musicais muito diferentes, Nuno Gonçalves adianta que os três aceitaram o convite imediatamente. «É curioso porque o Fernando sempre disse que, quando eu lhe liguei – para desafiá-lo –, estava a sair de uma sessão de filmes de terror no São Jorge, em Lisboa. Diz que foi tudo surreal. Depois de uma tarde como aquela, alguém lhe ligar para ser um dos vocalistas do projeto», recorda.

Nuno Gonçalves fez-lhes o convite sem que os artistas tivessem ouvido uma única música. Na altura, ainda não tinha material palpável ou audível para eles poderem refletir, «como se faz muito». «Mas eles disseram logo que sim! A Sónia disse logo que sim, porque confiava em mim. Vimos dos The Gift e conhecemo-nos desde pequenos… O Paulo Graça, também. Aí tive controlo total sobre a situação. Eles deram-me apoio nesse sentido. Admito que quando cheguei à editora e disse os três nomes que escolhi, ficaram surpresos, mas também confiaram em mim. Deram-me total liberdade e eu acho que foi essa liberdade que me fez estar tão despido de preconceitos e poder ter feito aquilo que fiz e faço com os Amália Hoje», conta.

A escolha do repertório

Segundo o produtor, o projeto pautou-se muito pela plena liberdade de escolha das composições, dos seus colaboradores, dos arranjos e toda a direção musical. E, ao contrário daquilo que se pode pensar, a escolha do repertório não foi complicada. «Para nós foi fácil, porque desde o início começámos a escolher as canções. Primeiro, eu não queria que fossem os fados ‘óbvios’. Se fossemos partir para ‘Estranha Forma de Vida’, ‘Povo que Lavas no Rio’ ou ‘Barco Negro’ – tudo canções emblemáticas, que a maior parte das pessoas conhecia –,  ia existir logo o termo de comparação (que eu não queria). Há 15 anos tínhamos o ‘Nome de Rua’, mais popular, até ao ‘Grito’, mais pesado que fala sobre tendências suicidas… São tudo temas muito sensíveis, muito deprimidos. Então, interessava-me ter uma palete mais colorida de emoções», explica.

Depois, também lhe interessava que as pessoas conhecessem um outro lado de Amália Rodrigues. Por um lado, fugir ao termo de comparação e, por outro, apresentar outro tipo de canções. «Outra das coisas que tentei foi que o formato de canção tivesse mais próximo daquilo que é o nosso universo. Ou seja, que houvesse um verso e um refrão. Muitas vezes não existe no fado. São sempre os mesmos três acordes até ao final e há pequenas variações de texto. Interessava-me ter essa estrutura mais de canção. Ter duas partes em cada música. Um refrão e um verso», detalha Nuno Gonçalves.

Agora, para estas novas canções que o grupo vai apresentar nos Coliseus, como «já possuem confiança» e «um estilo», ou seja, «as pessoas já sabem que quando vão ver um concerto dos Hoje, vão ver Amália revisitada e completamente refeita», o produtor decidiu arriscar e pegar precisamente nos temas mais emblemáticos. «Vamos estrear em primeira mão ‘Povo que Lavas no Rio’, ‘Lisboa Não Sejas Francesa’, ‘Estranha Forma de Vida’ e ‘Barco Negro’», adianta.

O êxito e as críticas

Sobre a forma como o público – em 2009 –, recebeu o projeto, Nuno Gonçalves admite que o grupo acreditava que se o disco fosse bem promovido, se as pessoas não tivessem preconceito para com o projeto e, apesar de haver muitas vozes discordantes, podiam chegar a um número grande de pessoas. «Se me perguntar se sabíamos que íamos estar quatro ou cinco meses em número 1 do top, não. Acho que foi ‘o grande sucesso de venda de discos’ antes das vendas caírem. Se formos a ver os últimos 20 anos, a banda que vendeu mais, fomos nós. No ano 2009/2010/2011, assistiu a uma grande quebra da venda de discos. As plataformas digitais até à altura eram meio piratas. Havia internet, mas não uma coisa legal como o Spotify, a Apple music, etc. Acho que foi a fronteira final de uma nova maneira de se vender e de se consumir música em Portugal», reflete.  

Mas Nuno Gonçalves está ciente que ainda existe muita gente com reticências sobre estas novas roupagens dadas ao fado. No entanto, está de consciência tranquila relativamente à forma como os Amália Hoje têm trabalhado. «Acho que o discurso de ‘bota abaixo’ está cada vez mais presente. Qualquer pessoa com um telefone na mão é ‘crítico’. Qualquer pessoa que queira pode ter 15 minutos de fama, nem que seja a dizer mal de alguma coisa só por dizer. Há pouco tempo, numa outra entrevista, constatámos um facto: fomos notícia da Billboard, porque fomos o único país onde Michael Jackson – quando morreu –, não foi número 1. Foram os Amália Hoje. Isto é uma coisa factual, nós não queremos com isto dizer que somos melhores do que ele! E claro que nos 400 e tal comentários da notícia, houve muitas pessoas a dizer que nós nos estávamos a comparar com ele, que nós éramos uns arrogantes… Hoje em dia, a crítica fácil existe. E nós artistas temos de viver bem com ela», lamenta.

Além disso, acredita que o lado mais conservador do fado possivelmente ainda não vê com bons olhos esta ideia. No entanto, «percebem que há aqui uma verdade». «Não há aqui um mau gosto nos arranjos, não há uma maneira desrespeitadora com Amália, antes pelo contrário», aponta, contando que o grupo é um tributo oficial da Fundação Amália Rodrigues. «Trabalhamos com eles, colaboramos… A cada concerto que fazemos ajudamos financeiramente a fundação. Portanto, se há uma banda que não está aqui para tratar mal o legado e a obra de Amália somos nós. Com essas críticas podemos bem. Temos a consciência tranquila. Só queremos apresentar e não deixar escapar a memória de Amália», frisa o produtor.

A vontade de regressar

O que é que fez o grupo regressar depois de 15 anos? Segundo Nuno Gonçalves, em primeiro lugar, o que se construiu nos Amália Hoje foi um espírito de banda. «Nós damo-nos muito bem como uma banda. Temos os The Gift, o Fernando tem os Moonspell, o Graça tem a sua carreira a solo, mas o certo é que quando nos juntamos em palco ou em estúdio, temos uma dinâmica de banda. Divertimo-nos, temos as nossas histórias, temos os nossos momentos, os nossos códigos… Somos amigos e somos uma família. Através dos Amália Hoje, o Fernando casou com a Sónia, nasceu o Fausto… Eu fui padrinho de casamento deles», revela.

Em segundo lugar, o grupo sentiu «a pulsão do público». Em concertos dos The Gift, dos Moonspell, do Paulo Graça, havia sempre alguém que perguntava pelo projeto… Ou pessoas que eram muito pequenas na altura e que não foram a nenhum concerto, ou pessoas que realmente gostaram do projeto… «Essa ideia de regressar sempre esteve presente. Contudo, nós somos muito críticos em relação às bandas que voltam só por voltar. Ou seja, não me cabia na cabeça voltar com o mesmo espetáculo que fizemos há 15 anos. Interessava-me renovar o alinhamento, a estética, o palco, o espetáculo de vídeo e, tudo isso foi um processo que demorou algum tempo», admite.

No ano passado, o grupo lançou o Fado Amália e começou logo a repensar… «Vamos ter estes coliseus como o quilómetro zero desta nova fase, onde vamos apresentar temas novos. O nosso objetivo era voltar com coisas novas! Voltar com coisas antigas está muito na moda e sei que há muitas pessoas a aproveitar-se disso. Não é por ai que nós mais gostamos de ir. O futuro é sempre mais inspirador que o passado», garante.

E o passar do tempo notou-se no processo criativo. «Notou-se sobretudo porque há 15 anos, quando os vocalistas entraram no projeto, as músicas já estavam todas mais ou menos feitas. Quando começámos a gravar as vozes, eu já tinha ido a Londres gravar uma orquestra, já tinha gravado baterias, guitarra eletrónica, metais, coro… As coisas estavam todas já emolduradas», conta. Desta vez, Nuno Gonçalves achou por bem partilhar as seis canções com os membros. «E foi logo decidido quem é que cantava o quê, qual o estilo de música que nós íamos canalizar para cada composição… Foi um trabalho muito mais corporativo», admite, acrescentando que isso não o desautorizou, mas aliviou um bocadinho a pressão de ter de estar a fazer tudo sozinho. «Parece-me que assim é mais apelativo. Lá está, o tal espírito de banda. Acredito que as canções depois também ganham um apelo diferente», frisa.   

As novas músicas e novos concertos

O lote de novas canções que a estrear nos coliseus inclui: Povo que Lavas no Rio (Pedro Homem de Mello/Fado Vitória, de Joaquim Campos), Lisboa Não Sejas Francesa (José Galhardo/Raul Ferrão), Estranha Forma de Vida (Amália/Fado Bailado, de Alfredo Marceneiro), e Barco Negro (David Mourão-Ferreira/Caco Velho/Piratini), além do Fado Amália. Do alinhamento fazem ainda parte três outras canções, todas musicadas por Alain Oulman: Rasga o Passado, poema de Álvaro Duarte Simões, Soledade, de Cecília Meireles, e Com que Voz, de Luís de Camões.

O Fado Amália é o único que tinha ficado na gaveta, porque Nuno tinha essa memória de criança. De acordo com o produtor, Sónia Tavares já tinha feito uma vez, num aniversário de Amália, uma versão em casa do Estranha Forma de Vida. «Adorámos e teve de entrar no repertório», afirma. Depois, quando estava a ouvir o Povo que Lavas no Rio,  imaginou os The Cure a tocá-lo. «Pensei, o Fernando é bom para isto», continua. E, quando o grupo estava a ouvir Lisboa Não sejas Francesa, Nuno Gonçalves imaginou «uma coisa tipo Gorillaz», mais pop e dançável. «Mandei logo para o Paulo. Foi muito natural… Não perdemos muito tempo com isso», sublinha.

Para o produtor, o mais desafiante é «contrariarmo-nos a nós mesmos». Não irmos pelo caminho mais fácil. «Essa tem sido a batuta dos The Gift: tentar não percorrer estradas que já percorremos. Tentar sempre inovar. Interessa-nos, sobretudo, que as pessoas quando entram na sala vejam um concerto acima da média e história a acontecer», partilha. «O facto de nós ouvirmos ao vivo canções pela primeira vez, é uma coisa que se perdeu. Todos nós quando éramos mais novos íamos ver os The Cure e sabíamos que eles iam estrear canções, porque o disco só saia meses depois. Hoje em dia é ao contrário. Só se faz um concerto depois de se lançar um disco…Perdeu-se essa ideia de surpresa», lamenta. Por isso, essa é uma das grandes motivações para esta nova fase de Amália Hoje.

«É isso que as pessoas podem esperar. A surpresa e a coesão da banda. Vamos ter excelentes músicos a trabalhar connosco», garante.

A banda vai ser acompanhada por um coro de sete vozes, um quarteto de cordas, composto por solistas da Orquestra Sinfónica do Porto-Casa da Música, o baterista Mário Barreiros, o baixista Carl Minnemann e o multi-instrumentista Israel Costa Pereira, nas guitarras elétricas e acústicas, teclados e xilofone.

Relativamente a um novo álbum, Nuno Gonçalves não garante nada. «Pode ser que sim, mas não vamos fazer disso um objetivo a curto prazo. Estamos a sentir um grande prazer em voltar a estas canções. Se continuar, logo se vê», remata.