Carlos Guimarães Pinto: “Não podemos ter políticos criados em cativeiro”

Numa entrevista por escrito, o antigo presidente da Iniciativa Liberal não foge a nenhum assunto e diz que Pedro Nuno Santos ainda está a tempo de aprovar a moção de confiança. Caso contrário, poderá não resistir a uma segunda derrota eleitoral.

Disse em tempos que é preciso ‘trazer’ humor para a política. Ainda acha que falta humor no Parlamento?                                
Humor voluntário, não há muito. Eu de vez em quando tento, mas nem sempre tenho sucesso. Já humor involuntário não falta. Aliás, hoje os humoristas em Portugal não precisam de trabalhar muito. Basta ligarem a ARTV e esperarem. Uma mina de ouro para pessoas como o Ricardo Araújo Pereira.

É de Espinho, terra do primeiro-ministro. Calculo que conheça a família. Como vê a polémica em torno do caso Montenegro?
Sendo de Espinho, nunca me cruzei com a família do primeiro-ministro. Éramos de meios diferentes. Ele cresceu nos meios mais afluentes e eu nas zonas mais modestas do concelho. Ao contrário do que diz o senhor Presidente, Montenegro não é rural, eu é que sou. Os amigos do primeiro-ministro jogavam golfe, já os meus faziam fila à porta do campo para serem caddies porque ser caddie pagava bem em gorjetas. A única vez que nos cruzámos foi num torneio de futebol de praia em que arbitrei um jogo da equipa dele. Lembro-me de a equipa dele ter ganho por muitos e mesmo assim ele me ter insultado… Mas não guardo ressentimentos… Fazia parte da vida de árbitro.
Mais a sério, sobre a polémica. Acho que a polémica teria durado um dia se ele tivesse esclarecido imediatamente quem eram os clientes e quem estava a prestar os serviços que eram da sua responsabilidade. A partir daí passaríamos a entender os conflitos de interesses que poderiam existir e eliminávamos logo a narrativa de que o primeiro-ministro estaria a receber avenças já depois de tomar posse. Teríamos evitado semanas de discussões inúteis e ter chegado a este ponto absurdo de termos eleições antecipadas por causa de uma questão que, pelo menos até hoje, não tem qualquer mínimo indício de ser do foro criminal.

As explicações dadas no sábado por Luís Montenegro são insuficientes?
O primeiro-ministro misturou uma série de assuntos não relacionados. Ele tem razão quando diz que é importante que um governante tenha um passado e um futuro fora da política, mas, pelo menos para mim, esse nunca foi o problema. Desde que seja tudo transparente, sejam conhecidos os potenciais conflitos de interesse, não há problema em ter tido vida profissional fora da política e voltar a tê-la. Pelo contrário, é desejável que tenham vida fora da política para trazerem essa experiência para a política e para não ficarem agarrados ao cargo. Também não há nenhum problema num primeiro-ministro ter participações numa empresa, desde que seja tudo claro e transparente.
A questão é que, neste caso específico, o primeiro-ministro tinha sido contratado diretamente por esses clientes para fazer o trabalho. Foi o próprio primeiro-ministro que o afirmou. A impressão que deu pela explicação inicial era que a empresa era só um veículo para o próprio Luís Montenegro prestar aqueles serviços. Quando se ficou a saber que as avenças continuaram após ele se tornar primeiro-ministro, podiam-se colocar dois cenários graves. O primeiro cenário seria ele continuar a trabalhar para essas empresas já enquanto primeiro-ministro. O segundo cenário, mais grave ainda, seria estar a receber avenças através da empresa familiar sem qualquer prestação de serviço.
Perante estas suspeitas legítimas, o primeiro-ministro deveria ter logo esclarecido tudo. Se as avenças eram mesmo contratadas a ele, deveriam ter sido logo extintas assim que se tornou primeiro-ministro. Se, pelo contrário, os serviços prestados eram transferíveis para outros colaboradores da empresa, ele deveria ter tornado isso logo claro no princípio. Não o fez, nem sequer quis revelar os clientes, permitindo que a suspeita se adensasse e o assunto se arrastasse até este ponto absurdo em que um Governo pode cair por causa disso.

Se tivesse fechado a empresa em vez de a passar para as mãos dos filhos poderia ‘acalmar’ a situação?
Eu acho que no lugar dele, dada a especificidade da empresa, teria extinto os contratos ou mesmo a empresa. Mas, passando para os filhos, a situação deixa de se colocar, porque os filhos são livres de terem atividade empresarial, e os seus clientes são livres de os quererem contratar. É verdade que se pode sempre argumentar que os filhos são apenas testas de ferro, mas quanto a isso não podemos, nem devemos, fazer nada a não ser que se prove de forma inequívoca, algo que é quase impossível, mesmo se fosse verdade. Os filhos não podem ser impedidos de ter atividade empresarial só porque o pai é primeiro-ministro. Tudo o que podemos fazer é ficar atentos a decisões futuras que possam afetar os clientes e escrutina-las.

Faz algum sentido ter um primeiro-ministro que não pode ‘pronunciar-se’ sobre determinados temas devido a incompatibilidades?
Acho importante estarmos atentos a questões de incompatibilidades, mas, por vezes, exagera-se. Chega-se a situações de completo absurdo. Quando se levantou com a questão das imobiliárias dos deputados e da lei dos solos, afirmei logo que não fazia sentido nenhum falar em incompatibilidades. É uma lei geral, que afetará todos os portugueses, tenham ou não imobiliárias, sejam ou não políticos.
Todos nós, como portugueses, somos afetados por muitas decisões que tomamos na nossa vida política. Não nos podemos afastar de todas as decisões apenas por elas nos afetarem. Quando legislamos sobre saúde ou educação, estamos a legislar sobre assuntos que terão impacto na nossa vida. Ainda há pouco legislámos sobre o IRS, que todos pagamos. Isto é muito diferente de fazer uma adjudicação direta a uma empresa específica ou fazer legislação que beneficia uma empresa em específico. Aí sim, é preciso estar atento aos conflitos de interesse. Se a lei dos solos fosse uma boa lei, não deveríamos ter deixado de a fazer só porque alguns decisores podiam eventualmente ganhar alguma coisa com isso por terem terrenos rústicos. Já para não falar que não é preciso ter uma imobiliária para comprar terrenos. Fez tudo muito pouco sentido nessa caça à imobiliária que os partidos nos extremos fizeram.

E, já agora. Os anteriores primeiros-ministros que eram advogados alguma vez falaram em incompatibilidades?
Lá está. Desde que isso seja transparente, e não estejam a trabalhar para os dois lados ao mesmo tempo, não me parece haver problemas. As pessoas têm de ter vida fora da política. Não podemos ter políticos criados em cativeiro. Temos de ter políticos que venham da sociedade civil, com experiência profissional, com sucesso fora da política. Depois é garantir a transparência nas declarações de interesses.

O pedido do primeiro-ministro à Entidade para a Transparência que audite as suas contas é suficiente para acalmar o caso?
São assuntos diferentes. A compra da casa, desde que seja com rendimentos declarados, não é problema nenhum. De repente, atirou-se tudo para a ventoinha sem critério nenhum, como se fosse tudo a mesma coisa. A casa até podia ter custado um milhão de euros. É irrelevante. Teve rendimentos legais que lhe permitiram pagar? Que faça o que quiser com eles. Não tenho nada a ver com isso.

Estranha o silêncio de Marcelo Rebelo de Sousa em relação a esta crise?
Acho que por esta altura, por uma questão de hábito, estranhamos sempre quando o senhor Presidente passa muito tempo sem falar, quaisquer que sejam as circunstâncias.

Como vê o anúncio do PS em avançar para uma comissão de inquérito?
O primeiro-ministro, ao ficar muito tempo sem esclarecer quem eram os clientes e quem prestava o serviço, deixou no ar a possibilidade de haver algo a esconder. O PS parece estar apostado nisso e acha que uma CPI poderá desgastar o Governo e o próprio primeiro-ministro de forma gradual.

Disse que há muitas pessoas com nojo da política. Com estes casos ainda haverá mais? A política corre o risco de ficar com os medíocres?
Acho importante que estes casos não sirvam de desculpa para se limitar ainda mais a vida profissional dos políticos depois da política e mesmo prejudicar a vida familiar de quem está na política. Nós já passamos um inferno para fazer coisas simples como abrir e manter abertas contas bancárias. Temos os nossos rendimentos e património à vista de todos, incluindo muitos que não o analisam com intenções de fazer escrutínio político, mas apenas por bisbilhotice. Temos clientes, família e empregadores expostos. Eu consigo imaginar pessoas decentes a olhar de fora e pensarem que nunca se meteriam numa vida destas, sabendo que poderão ter toda a sua vida, e a da sua família, exposta em público. Se continuarmos assim, só virá para esta vida quem não tem mais alternativa, quem gosta da exposição pública por uma questão de vaidade extrema ou quem espera fazer dinheiro ilegalmente, porque esses conseguem sempre dar a volta ao sistema. Arriscamo-nos a ter uma classe política constituída por medíocres, narcisistas e delinquentes.

Que ‘figuras’ portuguesas que vivem no estrangeiro gostaria de ver em Portugal em cargos políticos?
Assim, de repente, lembro-me do Ricardo Reis, que daria um excelente governador do Banco de Portugal. O Luís Cabral que também é das pessoas mais capazes na sua área. O Carlos Tavares ou o Horta Osório, que poderiam trazer a sua experiência empresarial. A Manuela Veloso que tem boa experiência em inteligência artificial. Até o Nuno Palma, que acho que não gosta muito nem da IL nem de mim, é uma pessoa inteligente e provocadora, do tipo que precisamos para mexer as coisas, mesmo se não concordarmos com muito do que diz. Devem existir muitos mais que eu não conheço. Perdemos mesmo muito bom talento.

A Iniciativa Liberal já revelou que irá chumbar a moção de censura do PCP mas o que fará se o Governo avançar com uma moção de confiança?
Já temos uma posição praticamente definida, mas terei a cortesia de deixar que seja o presidente do partido a anunciar. [Entretanto, a moção de censura do PCP foi chumbada e Rui Rocha já anunciou que vai IL vai votar favoravelmente na moção de confiança do Governo]

Rui Rocha já admitiu que Montenegro ‘se aproximou do fim de linha’ e que IL está tranquila com qualquer solução… Acredita que será inevitável um cenário de eleições antecipadas?
Esse cenário parece-me bastante provável neste momento, dados os últimos desenvolvimento, mas não acho de todo que seja inevitável. Ao PS basta uma abstenção para que a moção de confiança seja aprovada. O PS, indo agora a eleições, dificilmente ganha e mesmo ganhando, não terá maioria à esquerda. Também duvido que Pedro Nuno Santos resista a perder duas eleições legislativas. Acho que ainda existe a possibilidade de pensar melhor, aprovar a moção de confiança, permitir que tudo seja esclarecido numa CPI e não permitir que se vá a eleições por motivos que muitos portugueses veem como espúrios. Ir para eleições poderia ser uma decisão fatal para Pedro Nuno Santos, mesmo tendo ele 7 vidas.

Se houver eleições antecipadas, ao que tudo indica…, o PRR não ficará ainda mais em causa?
Não me parece que a execução do PRR esteja, nesta altura, dependente de estabilidade governativa. Estamos numa fase avançada da execução, mais dependente de haver trolhas e soldadores disponíveis para trabalhar do que de políticos para mandar.

Diz-se que há uma grande divisão na IL por causa de uma possível coligação com a AD nas próximas eleições legislativas, anunciadas para Maio. Acha que é aceitável a IL pensar em coligar-se com a  AD nas legislativas?
Não digo que isso nunca possa acontecer em circunstâncias muito específicas, mas um partido com ideias próprias, com um espaço ideológico único, é normal que vá sozinho a eleições. Especialmente eleições legislativas que são aquelas em que a ideologia é mais importante. Ficaria muito surpreendido se o partido decidisse ir numa coligação pré-eleitoral.

E, nesse caso, a IL poderá aumentar o atual número de deputados?
Claro. Não podemos sequer considerar outro cenário.

Nas últimas eleições legislativas, a IL ficou aquém do número previsto de deputados. O que falhou? E há risco de voltar a acontecer?
Foi bom aumentar o número de votos, mas, ainda assim, não foi o resultado que esperávamos obter. É difícil dizer o que falhou, mas possivelmente o facto de as eleições terem sido tão perto de uma transição de poder conturbada terá tido grande impacto. Durante o mandato do João, pelas suas características e pelas circunstâncias de ser deputado único, a comunicação do partido ficou muito dependente da sua imagem. Isso deixou o partido numa situação de fragilidade, o que depois se refletiu nos resultados eleitorais. Como sempre disse, aliás já o dizia quando era eu o líder do partido, devemos sempre evitar cultos de personalidade, estar dependente de uma pessoa. Isso deixa-nos numa situação frágil porque as pessoas são, elas próprias, frágeis e imprevisíveis. As ideias, pelo contrário, são sólidas, resistentes ao tempo. Alicerçar um partido nas ideias e não em pessoas concretas resulta numa construção mais forte e resistente. A comunicação do partido especializou-se em promover pessoas, algo que faz muito bem, mas enfraqueceu-se na parte de promover ideias. Conseguimos promover até aos limites do seu potencial pessoas como o João, o Mayan ou o Rui, mas deixamos de promover tão bem as nossas ideias. Em consequência disso, deixamos cada vez mais a discussão pública ser dominada por bandeiras de outros partidos, acabando por nos forçar a ir atrás dessas bandeiras quando antes eram os outros a vir atrás das nossas. Temos de voltar a focarmo-nos na comunicação das ideias. Pode ser muito mais difícil em termos de comunicação promover ideias do que promover pessoas, mas é uma estratégia muito mais resistente ao tempo e às mudanças de liderança.

Em relação às autárquicas, uma das hipóteses tem passado por um acordo com o PSD. Toda esta situação fragiliza um potencial acordo?
Tanto quanto sei, não há nenhum acordo nacional com o PSD e acho muito improvável que venha a haver. Quanto muito pode haver acordos pontuais em algumas autarquias onde isso faça sentido.

E a avançar seria um acordo para todo ou país ou apenas para as grandes cidades?
Não acho que avance de todo. Há ali pessoas nos núcleos que estão há anos à espera de uma oportunidade para mostrarem trabalho, mostrarem o seu talento político. Duvido que aceitassem com tanta facilidade a ideia de abdicarem da possibilidade de apresentarem uma candidatura própria, mas será mesmo uma opção dos núcleos. Depois há ainda o problema do outro lado, porque a AD não é só um partido, também lá tem o CDS que pode não gostar de, havendo coligações, passar para a posição de terceiro partido. Portanto, parece-me algo improvável, mas não é a minha pasta. Se há uma coisa que descobri na política é que o conhecimento é poder, mas a ignorância também. Não saber permite-nos não nos preocuparmos e, mais importante, não estar na lista de suspeitos de quebrar os segredos quando tal acontece. Hoje prefiro não saber nada dessas decisões. Sou um simples deputado de 2.ª linha que não está em nenhum órgão do partido.

Em Lisboa este possível acordo tem sofrido vários entraves…
Eu não me vou pronunciar sobre Lisboa ou algum núcleo em concreto. Acho que as pessoas com algum peso dentro do partido devem evitar falar em público de um assunto que apenas diz respeito ao núcleo de Lisboa. Qualquer coisa que digam, estarão a retirar poder negocial aos núcleos nas eventuais negociações que façam. Imagine que eu vinha aqui e dizia que sim, que deviam avançar e apoiar Carlos Moedas. Isso iria colocar o núcleo de Lisboa numa posição de desvantagem negocial porque o PSD já entraria para as negociações sabendo que existiam pressão internas para avançarem. O mesmo se dissesse o contrário. Não lhes vou fazer isso. Espero que qualquer coligação seja vendida muito cara, com muitas cedências programáticas por parte do PSD, e não ajudarei à perda de poder negocial de nenhum núcleo.

Quanto às presidências, o partido já avançou com o nome de Mariana Leitão… Porque acha que a Iniciativa Liberal ganha alguma coisa em lançar um candidato presidencial?
Aqui o ganho é muito claro: tempo de antena para as nossas ideias e dar a conhecer melhor outra cara do partido. As campanhas presidenciais são sempre um pouco esquizofrénicas, em que se fala de muitas coisas que não são competências do Presidente da República. Podemos não gostar desta realidade, mas a verdade é que durante dois meses não se falará de mais nada, pelo que estar presente pode ser importante. É uma oportunidade para falar das ideias do partido e essa marcação de terreno mediático acaba por ser sempre importante.

Internamente há quem tem apontado o seu nome para as presidenciais. Porque não quis avançar?
Não tenho perfil para esse tipo de campanha unipessoal. Tenho uma reação visceral a esse tipo de campanhas e nas presidenciais é inevitável serem assim porque são mesmo eleições unipessoais. Não tenho perfil para ir chorar para programas da manhã e detestaria ver cartazes espalhados pelo país com a minha cara. Iria ser uma campanha profundamente infeliz para mim e isso notar-se-ia. Além disso, com esta dispersão de candidatos, ainda me arriscava a ir à segunda volta, e depois sabe-se lá o que aconteceria… Sou demasiado novo para arriscar isso.

Quanto à IL, a reeleição de Rui Rocha contribuiu para dar uma maior estabilidade interna ao partido? Muitos opositores da atual liderança foram-se queixando de terem sido afastados do partido…
Eu estive bastante distanciado desta campanha. Estive quase sempre fora do país nas semanas anteriores. Além de achar que um ex-presidente se deve manter afastado da vida interna do partido, acho a política interna pouco estimulante. Agradeço a quem está disponível para a fazer, porque alguém tem de a fazer, mas não é o meu papel neste esforço. Desde que não me envolvam, por mim, podem fazer o que quiserem. O meu contributo para o partido passa por divulgar ideias e tentar resolver alguns problemas do país. Aliás, como parte dessa missão, enquanto decorria a campanha interna, acabei de escrever um livro sobre liberalismo que espero lançar nos próximos meses. Estou mesmo feliz por o ter conseguido acabar. Espero que as eleições não me estraguem o lançamento…

Como viu a expulsão de Tiago Mayan? Internamente há quem lamente a decisão apesar de criticar o ato de falsificação de assinaturas…
Eu vou ter sempre um enorme carinho pelas pessoas que estavam aqui quando ninguém acreditava e quando não tinham nada a ganhar com isso. Essas eu tenho a certeza absoluta de que aqui estão por convicção. Algumas já saíram, outras juntaram-se a outros partidos, algumas cometeram erros e até me fizeram coisas menos bonitas, mas vou ter sempre um carinho especial por elas, façam o que fizerem, porque fizeram parte do momento mais bonito, mais autêntico, do partido e da sua maior conquista. O Mayan está entre essas pessoas.
Eu disse na altura, e ainda acho, que o Mayan deveria ter saído do partido pelo próprio pé, pelo mesmo motivo que saiu da junta de freguesia e do movimento que liderava: porque há um efeito de contaminação e ter saído ajudaria a proteger o partido, como protegeu a junta e o movimento.
Toda a situação, mesmo com a atenuante de não ter sido para benefício próprio, foi uma desilusão para mim, porque o Mayan quando eu era presidente fazia o papel daquele jurista atinado que garantia que um grupo de amadores na política fazia tudo de acordo com as regras. Dizíamos até que era o grilo falante do partido porque era a pessoa que estava ali para garantir que na pressa de executar não fazíamos nada errado. Foi assim que o conheci e ainda é essa a imagem que tenho dele. Era a última pessoa que esperaria ter um descuido daquele, mesmo que não tenho sido para ganho pessoal.
Dito isto, não gosto muito da ideia de expulsão pelo mesmo motivo que não gosto de penas de morte ou prisões perpétuas. Não gosto de penas definitivas. Acho que aquilo que se justificaria nestes casos é uma retirada de confiança política – que não se aplicava porque ele não era eleito pelo partido – e um impedimento de se candidatar a cargos pelo partido durante um número elevado de anos. Infelizmente, os estatutos do partido não admitem este tipo de penas intermédias. Só admitem 6 meses de suspensão ou expulsão. Deveria haver ali alguma punição intermédia.

Em novembro chegou a acusar a liderança da IL de falta de apoio. Essa situação já está ultrapassada?
Foi uma infelicidade essa conversa ter saído para fora daquele grupo. Aquilo foi um desabafo quando soube que no grupo do meu núcleo estava a ser espalhada uma mentira sobre mim para desculpar uma opção legítima, mas contestada, da comunicação do partido.
Sabe, isto de ser figura pública tem aspetos bons, mas também tem aspetos maus. Um dos aspetos maus é termos de viver com boatos e mentiras. Termos de viver com a consciência de que muitas das pessoas que nos conhecem, com quem nos cruzamos em eventos, estão absolutamente convencidas de que fizemos ou dissemos coisas que não são verdade. Não podemos combater ou desmentir esses boatos porque ao fazê-lo publicamente apenas ajudamos a espalhar a mentira e a lançar a dúvida em mais pessoas. Então temos de viver com essa mentira, conscientes de que centenas ou até milhares de pessoas nos julgam por ela. Por isso é que o boato é uma arma tão eficaz em relação a figuras públicas. É a arma dos covardes, porque não permite defesa, porque a defesa só ajuda a propagar a mentira. Aquela mentira que foi dita naquele grupo não foi certamente das piores. A atitude certa da minha parte deveria ter sido ignorar, como faço com outras, porque ter respondido só prejudicou a imagem do partido e a minha. Mas custou-me dessa vez por ter sido dita por alguém com quem simpatizava e até tinha tido interações positivas no passado. Dessa desilusão resultaram um conjunto de desabafos desestruturados, prontos a serem descontextualizados. E acabou por ser injusto, principalmente para o Gabinete Parlamentar. É verdade que tinha menos apoio de assessoria do que o resto dos deputados, mas isso foi uma escolha racional face à escassez de recursos. Nós perdemos muitos assessores na transição entre legislaturas e depois mais alguns com a eleição para o parlamento europeu. O gabinete ficou muito desfalcado. Quando se começou a recrutar, priorizou-se o apoio a outros deputados, mas porque necessitavam mais. Eu, pela minha experiência académica e profissional, não era dos que precisava de mais apoio para cumprir as minhas obrigações. A minha comissão principal é de economia, obras públicas e habitação. Eu sou doutorado em economia, dei aulas de análise de investimentos públicos e escrevi um livro sobre habitação. Estou perfeitamente preparado para cobrir aquelas 3 áreas, mesmo com pouco apoio. Se estivesse responsável pela comissão de assuntos constitucionais ou educação, as minhas necessidades já seriam outras. Por isso, é perfeitamente expetável que se procurassem primeiros assessores para os deputados que tinham menos experiência nas comissões que cobrem. No fundo, acaba por ser um voto de confiança na minha capacidade enquanto deputado e não o contrário. O foco do meu desabafo nessa altura não foi de todo para me queixar de falta de apoio, foi mais de questionar da necessidade de espalharem uma mentira que prejudicava uma pessoa que tem um impacto positivo no partido, apesar de precisar de pouco apoio para fazer o seu trabalho.

Voltando ao humor. Como vê as divisões na Iniciativa Liberal sobre o fenómeno Milei?
É daquelas coisas que as pessoas só discordam entre si porque partem de premissas diferentes. Há umas pessoas que gostam do Milei porque o associam a um conjunto de políticas alinhadas com o partido e outras que não gostam porque o associam a políticas que não estão alinhadas com o partido. A diferença entre os dois grupos não é de valores, é na vertente de Milei para a qual estão a olhar.
Eu, em geral, acho um erro uma pessoa ou uma organização associar-se a algo que não controla. As pessoas são imprevisíveis, nunca se sabe o que irão fazer a seguir. Por exemplo, pessoas que até se associaram ao Milei por todos os bons motivos que existem para se associar a ele, depois acabam por também ficar associados àquelas coisas manhosas que ele fez com shitcoins ou quando apagou as fotos com o Zelenskyy só porque o Trump se chateou com ele. Associar-se a uma pessoa é arriscado. Prefiro associar-me a ideias. Há bastantes ideias que gosto nele. Aliás, até posso confessar que comprei obrigações da Argentina há cerca de um ano por achar que algumas daquelas políticas teriam um impacto positivo na capacidade financeira da Argentina. E deu-me bom retorno. Mas é diferente arriscar o seu dinheiro num conjunto de políticas económicas do que associar um partido a toda uma personalidade. As obrigações comprei-as com o meu dinheiro. Arrisquei aquilo que é meu. Associar um partido, que é de muitos, a algo que é necessariamente arriscado porque é um ser humano, com todas as falhas de um ser humano, já não o faria. Desde há muito tempo que tenho alguma aversão a cultos de personalidade. Não importa se são portugueses ou estrangeiros. Por isso é que gosto muito mais de falar e defender ideias. As ideias são muito mais confiáveis do que as pessoas.

O que pensa do futuro da Ucrânia e como viu a conferência de Trump com Zelensky e Vance?
A minha hipótese mais benevolente para este comportamento de Trump é ele ter uma visão diferente da função das palavras do que a maioria das pessoas tem. Enquanto a maioria das pessoas vê as palavras como uma forma de transmitir informação, Trump vê as palavras como uma forma de gerar uma acção. É irrelevante, para ele, se diz a verdade ou não, se é coerente ou não, importante é a ação que as palavras criam. Por exemplo, se eu quiser que alguém saia de um edifício, peço-lhe para sair. É a minha forma de usar as palavras. Já o Trump se achar que gritar incêndio é mais eficaz para atingir o objetivo de a pessoa sair do edifício, é isso que diz, mesmo que seja mentira. O que importa para ele é a ação que as palavras criam, não o seu conteúdo.
Esta é a versão benevolente que espero mesmo que seja a verdadeira porque a alternativa é bastante pior. Mas mesmo nesta versão benevolente, há problemas graves: as palavras têm impacto para além das ações e para além do momento presente. Têm impacto na credibilidade de uma pessoa e do próprio país. Têm impacto na confiança que as pessoas têm nas pessoas e nas instituições que elas representam. Alguma dessa confiança já não se recupera. Neste momento, a confiança dos aliados está irremediavelmente afetada. Mesmo que a NATO se mantenha, a confiança no artigo 5.º esvaneceu. Mesmo que tudo isto resulte numa Europa mais preparada para se defender, há um problema de confiança que dificilmente se recupera. Depois há, claro, o risco daquela versão benevolente não ser real, e a realidade ser muito pior.

Qual ao futuro para a Europa? É inevitável apostar no reforço militar? Até que ponto?
Eu acho inevitável que se reforce a aposta na Defesa. Não me parece é que o dinheiro seja o único, nem sequer o principal, problema. Segundo os dados que vi, a União Europeia já gasta mais em Defesa, bastante mais, em termos absolutos, do que a Rússia. Se passar a gastar 2% do PIB em Defesa, gastará cerca do triplo do que gasta a Rússia e até mais do que a China. Por isso, duvido que o dinheiro gasto seja mesmo o problema. Em geral, tenho sempre suspeitas de quem, vendo um problema, acha que se resolve atirando dinheiro para cima. Não sendo a minha área de especialidade, diria que há outras questões, nomeadamente de coordenação, que podem ser ainda mais relevantes do que o dinheiro para reforçar a capacidade de dissuasão.