‘Marquês’ ad nauseam  

Enquanto não se atacar na origem, e nas causas, o resto são só medidas paliativas, e algumas são erradas ou mesmo muito perniciosas, e subvertem o processo penal e até acabam por contaminar todo o sistema de justiça.

Uma revista colocou-me duas questões, a primeira sobre o que fazer para acelerar megaprocessos, a segunda pedindo que ‘avaliasse’ as alterações propostas pelo grupo de trabalho ‘Megaprocessos e processo penal’. Respondi, mas nunca há espaço para mais do que umas frases. Por isso, deixo aqui, ainda que nos carateres limitados de uma crónica mensal, aquelas frases e um pouco mais, e sob um título que se fica pela náusea apenas porque não encontro bonita expressão latina para estádios mais avançados de dispepsia.

A resposta à primeira questão é simples, sendo certo que me causa perplexidade que se faça tanto barulho, se mistifique e se complique tanto: o que é possível fazer, e aliás é determinante, é não fazer megaprocessos, é acabar com eles ou pelo menos reduzi-los aos casos em que é mesmo impossível fazer de outra maneira. A solução é aplicar corretamente os artigos 24 e seguintes do CPP (conexão), em especial o artigo 30 do mesmo (separação); artigos que já existem, e que não precisam de revisão, nem de grupos de trabalho. Enquanto não se atacar na origem, e nas causas, o resto são só medidas paliativas, e algumas são erradas ou mesmo muito perniciosas, e subvertem o processo penal e até acabam por contaminar todo o sistema de justiça. Aliás, outra coisa que me causa perplexidade, e desgosto, é o facto de a discussão estar dominada por este tema, quando ele diz respeito a uma dúzia de processos, duas dúzias se tanto, e quando temos milhares de processos e problemas reais, sérios e muito transversais que não respeitam a este pequeno grupo de processos mediáticos e sexy que ocupam a novela judiciária, noticiosa e política. É lamentável que Portugal esteja quanto ao processo penal refém do noticiário-entretenimento, da luta política e da vocação historiográfica e da húbris de alguns procuradores, polícias e não polícias que gostariam de o ser (que em vez de processos tentam apreciar décadas da história de Portugal e/ou mudar a sociedade e/ou governar ou gerir através dos processos), e gire em volta dessa tal dúzia de processos. E, em especial, em volta de um único processo, que infelizmente serve – e serve mal, porque é singular a vários títulos – de modelo para o pensamento sobre o processo penal em Portugal, e refiro-me, claro, à chamada ‘Operação Marquês’, que é em quase tudo (e com muitos responsáveis disso, e de todos os lados e setores do processo) um exemplo péssimo e não serve de exemplo nem de tema de reflexão para quase nada, pela sua singularidade. É um processo que presta bem para fogo de artifício, mas isso não serve nem o processo penal, nem o Estado de Direito. E sobretudo faz com que se esqueça muitas outras coisas, bem mais importantes, sérias e transversais. E, já agora, uma última nota: em tempos onde sancionar e punir parece ser uma das palavras de ordem, que tal olhar também com severidade para os autores e as causas dos megaprocessos, em vez de glorificar o que está do lado na nascente e só criticar e prejudicar o que está do lado da foz? Já vai sendo tempo disso também, e só assim se pode realmente reclamar seriedade, que é – tal como a moral – coisa que deve tocar a todos, e não apenas a alguns (mesmo que alguns desses alguns se ponham muito a jeito).

Quanto ao segundo tema, a resposta exigia quase escrever um livro (pelo menos), porque cada proposta ou pelo menos muitas delas têm muito que se lhe diga, e espero que haja por parte do legislador cuidado a analisar e a porventura verter em Lei. Sintetizando, digo quatro coisas: uma, em geral avalio positivamente a maior parte das propostas, em especial as que respeitam a questões tecnológicas, à assessoria dos magistrados, ao modo de organização dos processos, et cetera; outra, infelizmente junto com boas ideias há as três ou quatro do costume, que tomam a parte pelo todo e que tiram sempre e só (e mal) do mesmo lado, refiro me às questões da instrução (uma moda quase tão rápida a conquistar mercado como a minissaia), dos recursos, dos prazos; terceiro, apresentam-se como soluções inovadoras coisas que já existem e podem ser aplicadas (para o que não é preciso mais lei, mas sim senso, coragem e universalidade, e estes três em doses iguais), como sejam os poderes de disciplina processual e da audiência em particular ou o sancionamento da prevaricação dilatória (sendo que esta convinha ser sancionada quanto a todos e desde o início do processo, não apenas quanto às defesas e a partir do momento em que procuradores, polícias e afins, às vezes com a dócil conivência de juízes de instrução, já produziram Pirâmides de Gizé ou Colossos de Rhodes em vez de processos); finalmente, apesar da enorme qualidade profissional e da indiscutível seriedade dos membros do Grupo de Trabalho, o mesmo tem uma visão que espelha a sua composição “desequilibrada”, pois só tem juízes e um procurador, quando há outros atores igualmente relevantes no sistema de justiça, a começar pelos advogados; custa-me, aliás, compreender que o CSM, que é um órgão colegial com uma pluralidade de membros, e até uma maioria constitucional e legal não oriunda ou designada por magistrados, tenha feito um Grupo de Trabalho tão monocromático, que nem teve a preocupação de incluir membros do CSM sem beca, talvez até um singelo advogado, ou mesmo um estudioso da academia, se não em Direito, pelo menos noutras artes que interessam a estas coisas – em tempos de diversidade e inclusão, e em democracia, custa a entender, diria eu. Embora também seja verdade que muitos advogados e quem os representa nem sempre se deem ao respeito e ao crédito que deveriam.

Advogado