A crise do Canal de Suez, em 1956, marcou o início do fim do domínio europeu sobre a política global, revelando um deslocamento do poder para os Estados Unidos e a União Soviética. Agora, quase setenta anos depois, o anunciado abandono da Ucrânia pelos EUA, em 2025, parece anunciar outro ponto de viragem na geopolítica global, desta vez colocando em questão a continuidade da hegemonia ocidental, liderada por Washington.
Em 1956, quando o Presidente egípcio Nasser nacionalizou o Canal de Suez, Reino Unido, França e Israel tentaram restabelecer à força a antiga ordem colonial. Os EUA, então emergindo como superpotência, impuseram uma retirada humilhante aos seus aliados europeus, mostrando claramente o deslocamento do poder para fora da Europa. Esse momento marcou o fim definitivo do ‘euromundo’ e estabeleceu Washington como nova sede do poder no Ocidente.
Agora, a decisão de Trump de retirar o apoio militar à Ucrânia representa outra rutura profunda. A escolha de abandonar Kiev é significativa, não apenas pelo seu impacto imediato na segurança europeia frente à Rússia, mas principalmente por indiciar uma mudança drástica na postura dos Estados Unidos perante aliados tradicionais. Se, em 1956, os EUA exerceram seu poder ao impor limites às potências europeias, agora parecem abdicar voluntariamente do seu papel na segurança internacional.
O poder, para além de um gosto é um fardo. Os EUA já não estão dispostos a arcar com o fardo, leia-se, com o peso financeiro e político da defesa europeia.
As duas crises revelam um paralelo crítico: ambas marcam momentos em que a ordem geopolítica vigente foi questionada por decisões norte-americanas contrárias aos interesses imediatos dos aliados europeus. Mas, se em 1956 os EUA emergiram fortalecidos como líderes do ocidente, em 2025, a decisão de não apoiar a Ucrânia tem o potencial oposto: enfraquecer definitivamente a unidade ocidental.
Se o Suez marcou o fim da hegemonia europeia e o início de uma nova ordem liderada pelos Estados Unidos (e União Soviética), o abandono da Ucrânia por Trump indicia o fim dessa mesma ordem ocidental. O cisma é, porém, substancialmente maior. Se a substituição de europeus por norte-americanos (e soviéticos) era dentro de um domínio ocidental do mundo (judaico-cristão), adiante teremos um sistema internacional não apenas multipolar, como vem sendo anunciado, mas também ‘multicivilizacional’, o que ainda até hoje verdadeiramente nunca conhecemos.
As últimas semanas têm sido ricas em encontros diversos de líderes europeus. Na verdade, a questão é apenas uma: como conciliar 27 interesses nacionais da União Europeia, mais o do Reino Unido, em torno de questões de segurança e defesa, percecionadas de modo diverso?
Vivemos as últimas décadas a acreditar, como Josep Borrel disse, que éramos «um jardim arrumado», e que à nossa volta era a ‘selva’. Mas tudo isto foi uma fantasia pedante, de uma geração de líderes fora da realidade, incapazes de organizar a Europa e de a preparar para os desafios que estavam à vista.
A sensação de murro no estômago que os europeus sentem é o choque de realidade descrito por Warren Buffet: «Só quando a maré baixa é que descobrimos quem nadava nu». A maré baixou.
Um murro no estômago dos europeus
A escolha de Trump abandonar Kiev é significativa, pelo impacto imediato na segurança europeia frente à Rússia, mas principalmente por indiciar uma mudança drástica dos EUA perante os aliados tradicionais.