Regressei há poucos dias da Islândia onde pude espeitar a fenda que separa as placas continentais norte-americana e euro-asiática e atravessar a ponte que separa os dois continentes. Uma alegoria adequada ao atual momento político. Depois do discurso de J.D. Vance em Munique e da emboscada a Zelensky em Washington, foi possível sentir as placas moverem-se e a ponte alongar-se, ao ponto de se temer um desabamento.
O discurso de Vance foi mais significativo e premonitório do que todas as tiradas provocatórias e exageros histriónicos da dupla Trump/Musk. Esse discurso, e a sua ferocidade na emboscada de Washington, agitaram as profundezas tectónicas. Não do que muito do que disse em Munique não fosse certeiro, mesmo descontando a falta de credibilidade democrática do mensageiro ou o claro exagero da extrapolação de alguns episódios isolados. A obsessão com o discurso de ódio ameaça, de facto, a liberdade de expressão. As elites ocidentais desprezam, realmente, o povo ‘deplorável’ que vota na direita mais extrema. A anulação da eleição presidencial romena foi, mesmo, mal explicada e estabelece um precedente preocupante. E, na verdade, a imigração maciça de gentes culturalmente muito diferentes constitui uma ameaça potencial à natureza profunda da Europa. Tudo isto é verdade, tudo isto é importante. Mas, agora, não é o mais importante: quando se vive uma ameaça expansionista e uma guerra de ferro e fogo, as guerras culturais são secundárias, (até porque, ao contrário do sugerido, a democracia liberal europeia não está na eminência de soçobrar).
O discurso de Munique refletiu uma diferença clara e importante entre Trump e Vance. Para o Presidente a Europa e a sua segurança são questões transacionais – tudo bem desde que o preço esteja certo ou desde que existam direitos patrimoniais norte-americanos a salvaguardar (é esta, aliás, a lógica da sua proposta para a segurança da Ucrânia). Para o vice-Presidente são uma questão de consciência. Segundo ele, os valores que a Europa Ocidental representa não são dignos de defesa, pelo menos não contra a Rússia. Trump é um ‘pato-bravo’. Vance é um cruzado do dark-enlightment. Na sua cruzada contra a influência islâmica, a degenerescência moral das sociedades modernas e em favor de valores cristãos reacionários, Putin é um aliado mais próximo do que as elites ocidentais. Se J.D. Vance vier a representar o pós-Trump, o estrangulamento da Europa Ocidental entre as garras da águia-careca e as patas do urso estará para durar.
À Europa resta apenas resistir – como o Reino Unido fez na segunda grande-guerra – e esperar que a maré mude, como necessariamente acontecerá se a democracia e as eleições livres continuarem a existir nos EUA. Contudo, a União Europeia não deve responder com a habitual procura de unidade. Tal não é possível nem necessário. Uma melhor estratégia é construir uma coligação de alguns Estados-membros e outros países que Trump está a alienar, como o Canadá, a Grã-Bretanha e a Coreia do Sul. Os europeus dispõem dos recursos, talentos e instrumentos necessários para garantir a sua soberania e restaurar a paz e a estabilidade. Devem inspirar-se na Ucrânia que sozinha susteve a marcha de agressão da Rússia.