O confronto de David e Golias na sala oval

Zelensky tomou consciência desse destino, pelo que agora está disposto a arriscar um novo encontro com Trump, sabendo, de antemão, de que, desta vez, terá de ser mais astuto do que corajoso.

A coragem jamais será a principal virtude necessária a David para lograr vencer Golias. Aliás, aquela de nada lhe servirá, caso não faça uso também da inteligência e da astúcia.

Se ousar enfrentar o gigante Golias de peito aberto e sem o recurso a nenhuma arma que o possa derrubar, acabará espezinhado por este!

Por mais corajoso que seja!

Foi precisamente isto que aconteceu recentemente na sala oval da Casa Branca, quando Zelensky se predispôs a desafiar Trump, mas fazendo apenas uso de uma inegável coragem,  esquecendo-se, no entanto, de que o seu interlocutor não cede sob pressão e somente se permite deixar abater através da astúcia.

O confronto entre os dois, inevitável a partir do momento em que o presidente ucraniano, tendo como assistência um público à escala mundial, quis deixar bem vincada uma posição diametralmente oposta à da apregoada pelo inquilino da casa onde fora recebido como convidado, foi objecto das mais acaloradas discussões, sendo que a generalidade daqueles que nelas se envolveram deixaram-se embalar pelo coração, em prejuízo de pensarem com a cabeça.

Acresce que a quase totalidade dos opinadores se limitou a apreciar os escassos minutos do confronto entre os dois homens que as televisões disponibilizaram, quando o bom-senso aconselha a que se visione a totalidade do filme para daí podermos retirar as devidas conclusões.

O que juntou Trump e Zelensky naquele dia no principal gabinete da Casa Branca não foi uma reunião de trabalho, mas sim a apresentação à imprensa do decidido em encontros anteriores, sendo que o tema em questão tratava a assinatura do acordo sobre a exploração de minerais e não, propriamente, assuntos directamente relacionados com a guerra em curso em solo ucraniano.

O filme completo dos acontecimentos tem a duração aproximada de quarenta minutos, sendo que a conversa decorreu quase sempre em tom cordial e respeitoso, apenas descambando para um clima hostil nos minutos finais da sessão.

A primeira parte do encontro consistiu na apresentação das decisões anteriormente assumidas pelas delegações dos dois presidentes, tendo ambos feito uso da palavra sem qualquer tipo de polémica.

Foi já nas respostas às perguntas dos jornalistas que o clima de harmonia até então presente se transformou numa disputa feia e desnecessária, porque desencadeada perante uma assistência ávida de captar momentos de tensão, e com culpas para ambas as partes envolvidas, já que nenhuma delas agiu com a sensatez que lhe era devida.

Zelensky quis mostrar a tal coragem que a generalidade dos observadores lhe apontaram, desafiando quem, na verdade, está investido do poder da força.

Começou por deixar bem vincada a sua posição de não aceitar um cessar-fogo, condição obrigatória imposta pela administração norte-americana para que o acordo em debate fosse assinado; depois desmentiu Trump, de forma acintosa, quando este, com a habitual soberba que lhe é reconhecida, se vangloriou de que a ajuda por ele prestada à Ucrânia foi superior à da conferida pelos europeus; e, finalmente, exigiu outras garantias de segurança para uma pausa nos conflitos, que não as que lhe tinham sido propostas pelos norte-americanos, por desconfiar da capacidade destes em controlar os ímpetos russos.

E foi aqui que o caldo entornou, com a ríspida intervenção do vice-presidente, episódio este já do conhecimento geral.

O presidente ucraniano tinha como interlocutor um negociador conhecido pela sua ferocidade e pela incapacidade de lidar com lucidez quando contrariado, razão pela qual teria sido seriamente recomendado que tivesse sido astuto e inteligente, ao invés de se ter apresentado como um homem corajoso e incapaz de ceder a qualquer pretensão que considere desvantajosa para o seu país.

Além de mais, foi ele quem se apresentou de mão estendida, pois a sobrevivência da Ucrânia como país soberano e independente depende, cada vez mais, da ajuda e da generosidade dos EUA, sendo que esta está obviamente condicionada à boa-vontade de quem muito recentemente os norte-americanos confiaram o governo do país.

Trump, com a agressividade que o caracteriza, lembrou-lhe que é ele quem tem as cartas na mão, ou seja, ou Zelensky se submete à sua vontade ou os norte-americanos lhe esticam o tapete e cessam qualquer tipo de apoio à guerra que o dirigente ucraniano insiste em continuar a travar.

Sejamos práticos, tendo como obrigação a de analisarmos a situação actual da Ucrânia no conflito em está envolvida com lucidez e razoabilidade e sem nos deixarmos dominar pelas óbvias simpatias por quem mais sofre: os ucranianos estão a perder a guerra!

Estão com falta de soldados para lutarem na frente de combate e com uma cada vez maior escassez de equipamento militar, realidade de que é prova os revezes que sofrem de momento em Kursk, considerado o último ponto de negociação territorial de que Kiev ainda dispõe para eventuais conversações de paz com Moscovo, preste a cair para o lado russo.

A este desaire não será estranha, certamente, a represália de Trump ao ordenar o fim imediato da assistência militar à Ucrânia, incluindo a indispensável partilha de informações.

Perante este cenário, e para que a Ucrânia não perca toda a capacidade de resistência ao avanço das tropas russas, somente se vislumbram duas soluções possíveis para manter o seu esforço de guerra: uma intervenção militar dos países aliados, ou seja, da OTAN, com a deslocação de forças armadas para o terreno; ou a manutenção do auxílio militar por parte dos EUA.

A primeira hipótese é irrealista, porque a sua concretização iria implicar um conflito militar aberto com a Rússia e com as naturais repercussões que daí poderão resultar para a humanidade, por via da utilização de armas nucleares de que nenhuma das partes se compromete a não recorrer.

Por essa razão, nem a Europa nem os EUA ponderam enviar tropas para combaterem ao lado dos ucranianos.

Zelensky já se apercebeu, também, de que a sua sobrevivência não pode ficar apenas vinculada à benevolência europeia, tendo em conta de que um eventual rearmamento da Europa, conforme preconizado pela nomenclatura de Bruxelas, vai demorar anos a ser concretizado.

Nos dias de hoje, a única oferta de que os países europeus estão em condições de oferecer a uma angustiada Ucrânia, são mais sanções à Rússia, conforme o decidido na passada semana em mais uma hilariante cimeira dos fracos líderes europeus, punição essa que representa somente ligeiras cócegas na campanha militar de Putin.

Resta o segundo caminho, o de ficar de mão atadas com a administração Trump!

O presidente ucraniano compreendeu essa fatalidade quando, logo após o motim na sala oval, partiu para a Bruxelas e veio de lá com as mão a abanar, apenas com as tais irrisórias sanções.

Zelensky caiu em si e prontificou-se a reatar o diálogo com Trump e trabalhar sob a sua direcção, disse querer assinar o mais breve possível o acordo de minerais que ficou em banho-maria e admitiu a sua quota-parte de culpa no fracasso na conferência em que se travou de razões com a cúpula da administração norte-americana.

Trump é um negociador nato, que joga duro e não tolera contrariedades. Mais ainda, não dá tréguas aos seus adversários enquanto não atinge os objectivos a que se propõe.

Para ele, a Ucrânia não passa de um negócio e, por essa razão, tomou a decisão de que a guerra tem de acabar, custe o que custar.

Sejamos realistas, a bem ou a mal vai mesmo acabar, porque essa é a vontade inabalável de quem é detentor desse poder decisório!

Zelensky tomou consciência desse destino, pelo que agora está disposto a arriscar um novo encontro com Trump, sabendo, de antemão, de que, desta vez, terá de ser mais astuto do que corajoso.

E a tarefa que tem pela frente é inglória, porque se não dispõe de meios suficientes para escorraçar os militares russos dos territórios que estes ocuparam e sendo conhecedor, à partida, de que Trump não lhe vai disponibilizar a assistência sem a qual não obterá êxito nessa sua ambição, apenas lhe resta a alternativa de se conformar com a perda das províncias conquistadas pelo invasor, na totalidade ou de grande parte delas, e limitar-se a assegurar a restante integridade territorial que lhe sobra.

Para isso vai precisar de garantias de segurança de que esse restante solo ucraniano não estará à mercê de novas aventuras de Putin, sendo que essa protecção somente conseguirá obter junto dos norte-americanos.

E as garantias que Trump tem para lhe oferecer são económicas, baseadas na tese de que os russos não vão ousar atacar áreas sob influência de interesses estratégicos dos EUA.

Ora foi precisamente esse o ponto da discórdia que levou ao confronto verbal na sala oval onde se posicionam as peças do tabuleiro no qual se joga o destino do mundo, quando Zelensky questionou a validade dessas mesas garantias que então lhe estavam a ser oferecidas.

Agora, assim que estiver de novo em frente a Trump, vai ter de negociar uma vez mais, só que então terá de o fazer em privado, longe das câmaras perante as quais o presidente norte-americano se agiganta e vendo-se forçado a apresentar-se com uma humildade a que não está habituado.

Desta vez com mais astúcia do que coragem!